O geólogo e historiador José Carlos Barreto de Santana estudou as relações entre o escritor e os cientistas de sua época; nesta entrevista, discute-se como ele, formado em engenharia, utilizou seus conhecimentos em ciências naturais para compor sua obra-prima, publicada em 1902.
Esta entrevista foi publicada, originalmente, no jornal O Estado de S.Paulo, em 14 de julho de 2002.
Não é uma cena incomum nas salas de aula: o professor de literatura, depois de falar sobre Os Sertões e Euclides da Cunha (1866-1909), vira-se para os estudantes do ensino médio e dá uma sugestão – caso o aluno pretenda se aventurar pelo livro, talvez seja mais fácil começar pela terceira e última parte, “A Luta”, para depois chegar a “O Homem” e, finalmente, à primeira parte, “A Terra”.
José Carlos Barreto de Santana, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana, é classificado, entre os estudiosos da obra de Euclides de Cunha, de “geólogo e historiador”. Sua especialidade é justamente o – com o perdão do trocadilho – considerado mais árido trecho de Os Sertões.
Seu doutorado, lançado em livro (Ciência & Arte –Euclides da Cunha e as Ciências Naturais, Hucitec/UEFS), discute a relação entre as ligações entre o jornalista e escritor (que até 1895, pelo menos, assinava num cartão de visitas “Euclides da Cunha, bacharel em Matemática, Ciências Físicas e Naturais”) e os “homens de ciência” de seu tempo.
Barreto de Santana, também organizador da nova edição de O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina (Companhia das Letras), de Teodoro Sampaio, falou sobre a formação de Euclides e sobre o que o próprio escritor, em artigo que respondia a crítica de José Veríssimo, publicado em 1902, chamou de “consórcio da ciência e da arte”. Também discutiu o significado do discurso científico em “A Terra” e a relação entre essa primeira parte e as outras duas. Ele reconhece que sua posição é parcial, mas defende que a leitura “de trás pra frente” da obra leva a uma perda “da perspectiva da construção do livro”.
Abaixo, os principais trechos da entrevista.
O geógrafo Aroldo de Azevedo (1910-1974), analisando Os Sertões, aconselhou os leitores a deixarem de lado o esboço geológico de “A Terra”. Também é comum se recomendar uma leitura inversa da obra O que o sr. acha disso?
José Carlos Barreto de Santana – Ainda hoje há quem sugira isso, que se leia primeiro “A Luta”, depois “O Homem” e, finalmente, “A Terra”. De fato, na primeira parte de Os Sertões, o discurso científico é muito forte, o que toma sua travessia um tanto difícil. Porém, em “A Terra”, encontram-se elementos que ajudam a constituir as partes seguintes. Por isso, a crítica literária Walnice Nogueira Galvão (autora de uma edição crítica do livro) considera seu início um “índice narrativo”. Euclides, quando fala, por exemplo, da cabeça-de-frade, uma planta do semiárido, apresenta um elemento fundamental do episódio da degola, com quase 400 páginas de antecedência. Pular a primeira parte, assim, leva a uma perda da perspectiva da construção do livro. Mas é claro que minha leitura é parcial – desde o início dos anos 1990, especializei-me em história da ciência, mas sou formado em geologia e a primeira parte do livro foi um grande atrativo para mim.
Qual o significado de Euclides para a história da ciência no Brasil?
Barreto de Santana – Euclides se forma como engenheiro do Exército num momento especial. Em torno da década de 1870, pouco depois de seu nascimento, há uma crescente institucionalização da ciência no país. Além dos institutos de pesquisa, também passam a circular periódicos, divulgando as principais pesquisas e teorias em voga na época. É ainda um momento de ecletismo, de franca concorrência entre as diferentes correntes científicas. As teorias darwinistas, por exemplo, encontraram muito mais facilidade para se estabelecer no Brasil do que na França e nos EUA. A elite intelectual estava muito a par do que se passava no mundo, e essa elite se permitia recorrer ao que considerasse útil para a realização de suas interpretações.
E qual é o papel de Os Sertões nessa história da ciência?
Barreto de Santana – A mais conhecida obra de Euclides não é propriamente um marco na história da ciência no Brasil. Mas é bastante representativa e reflete bem o momento histórico pelo qual passava o conhecimento científico no Brasil, entre o fim do século 19 e o início do século 20.
Na sua opinião, o livro é mais literário ou mais científico?
Barreto de Santana – Trabalho mais com a ideia de que Os Sertões é um livro de múltiplos recursos, um livro de mais de uma inserção, como já defendia José Verissimo (1857-1916), logo após a sua publicação, e também acreditam Walnice e o professor de literatura da USP Roberto Ventura, que prepara biografia sobre o escritor: Euclides não apenas realizou uma obra múltipla, mas o fez exatamente com essa intenção. Na resposta à crítica de Veríssimo, que reclama do uso excessivo de temas técnicos, ele afirma que “o consórcio da ciência e da arte, sob qualquer dos aspectos, é hoje a tendência mais elevada do pensamento humano”.
Essa é uma questão bastante controversa em uns artigos recentes. O ensaísta Luiz Costa Lima defende que o livro se divide “em uma parte central, movida por urna explicação científica, e uma borda, a amamentação literária”. Já Afrânio Continho (1911-2000), nos anos 1950, comparou a obra a epopeias, da família de Guerra e Paz, ressaltando suas características ficcionais.
A botânica e a geologia são os ramos das ciências naturais mais importantes em Os Sertões…
Barreto de Santana – Sim, ele circula principalmente nessas áreas, é delas que tira as metáforas. A zoologia, por exemplo, praticamente não faz parte das descrições. Isso porque, na visão determinista de Euclides, o tipo humano se forma a partir da terra, do clima e da flora. E possível identificar o ecletismo da ciência de sua época no País, combinando correntes deterministas diversas.
O que ocorre com a zoologia? Ela não tem importância para os deterministas?
Barreto de Santana – Assim, de memória, não me lembro de nenhum teórico importante que privilegiasse a zoologia em suas análises deterministas e que tenha influenciado Euclides. Por outro lado, a fauna da caatinga, composta principalmente de animais de pequeno porte e por animais domésticos, não parece colaborar para teses deterministas. Mas a ausência dos animais parece mesmo mais ligada à formação de Euclides. Quando de sua viagem à Amazônia, a fauna, muitíssimo mais exuberante, mantém-se distante de seus escritos, ele não passa a dar mais importância a ela. Também reforça essa tese a justificativa de Euclides para não se tomar professor da Escola Politécnica, um sonho que não conseguiu realizar – não gostaria de substituir um professor de veterinária.
Euclides, apesar de toda a sua relação com a ciência, nunca foi um cientista. Ele tinha essa vocação? O que o impediu de realizá-la?
Barreto de Santana – Não sei se ele de fato tinha talento para a ciência, mas ele tinha uma formação básica que permitia pensar nesta possibilidade e certamente preenchia todos os requisitos para se tornar um professor da Escola Politécnica. Não por acaso, é aceito pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, ou seja, é reconhecido como um par pela comunidade científica. É quase certo que ele não se tornou professor da Politécnica por conta de sua oposição inicial ao projeto da Escola. Paula Sousa, seu fundador, dominou a escola por um quarto de século. Ele deve ter vetado o nome de Euclides – que tentou entrar para a Politécnica desde a sua fundação em 1893 até o ano de 1904, quando teve seu nome submetido à apreciação da Congregação em quatro das seções da escola e recebeu apenas um voto para três delas – e nenhum voto para a outra.
Euclides deve quanto a seus amigos cientistas?
Barreto de Santana – O papel deles é muito grande. Euclides conheceu trabalhos geológicos de Orville Derby (1851-1915), seu amigo, e Charles Frederick Hartt (1840-1878), mas também contou com a colaboração direta de Teodoro Sampaio (1855-1937), por exemplo, que chega a lhe emprestar um caderno de anotações – aliás, também anotado por Euclides e nunca devolvido. Teodoro Sampaio, depois de percorrer o São Francisco, trabalha como engenheiro na construção da estrada de ferro que liga Salvador a Juazeiro, e escreve sobre a geologia dessa região. Antes de ir para Canudos, Euclides publica no Estado dois artigos comparando a resistência dos sertanejos à vendeia (“A Nossa Vendeia”), rebelião camponesa ocorrida na França no fim do século 18. O detalhe é que Euclides descreve uma natureza que não conhecia pessoalmente, mas que Teodoro Sampaio estudara. Euclides, sempre que está em São Paulo, frequenta a casa e lê trechos do que está escrevendo para Teodoro Sampaio, que é seu principal interlocutor nos assuntos de ciências. Eu concordo com o professor José Calasans (1915 -2001), que escreveu, e causou uma enorme polêmica, que Os Sertões era obra de uma “equipe”. Não que tenha sido feita a várias mãos, mas no sentido de que contou com a colaboração de muitos amigos de Euclides.
Aroldo Azevedo também aponta alguns erros de Euclides da Cunha, como chamar de Planalto Central o que era na verdade o Planalto Brasileiro. O sr. discorda dele. Por quê?
Barreto de Santana – Euclides usa fortemente a produção e a reflexão científica no Brasil. Não era um cientista típico, mas ele retrabalhava os conceitos. Acho que há uma intenção de fundar uma nova geografia em muitos pontos. Ele conhecia o trabalho de Derby e tinha elementos para não cometer esse suposto erro. Mesmo que o tivesse feito, poderia tê-lo corrigido em outras edições, o que não o fez. Gosto de pensar que a geografia e a paisagens apresentada por Euclides guardam estreita correspondência com o que será encontrado ao longo do livro, ainda que seja necessário, para isso, criar um conceito que revela sentidos insuspeitados e, assim como não cabia falar que o Brasil lutava contra Canudos, não poderia ser outro que não o central o planalto que descamba sobre a terra ignota, por mais que isso viesse a soar como erro geográfico. Euclides parecia querer, com isso, dizer que não era uma luta de todo o Brasil contra o sertão, mas de parte dele.
Qual o papel da natureza na narrativa de Os Sertões?
Barreto de Santana – Na construção de Euclides, a natureza é dotada de vontades, tem ânimo, fornece munição, agride o Exército, protege o sertanejo. A natureza é uma barreira e, como ele mesmo defende, mais do que os fanáticos do Conselheiro, às vezes é ela que combate os que a invadem. Ele a estuda, a analisa e a narra – porque ela é um dos personagens principais de Os Sertões.
Divulgação/Rádio Senado
Euclides da Cunha: conhecedor das ciências naturais