Entrevista publicada originalmente no jornal O Estado de S.Paulo, em 1 de dezembro de 2002.
Valentim Facioli, professor aposentado de literatura brasileira da Universidade de São Paulo, analisou, em seu doutorado, o trabalho de Euclides da Cunha. Embora nunca tenha publicado na íntegra a tese, intitulada Euclides da Cunha: A gênese da forma, tornou-se um nome bastante presente nos debates e discussões em torno de Euclides (uma síntese do estudo foi publicada em O sertão e Os Sertões, organizado por Beth Brait).
Para Valentim, Os Sertões mostra muito das contradições do país, mas não pode ser vista como uma obra “vingadora”, capaz de pôr a limpo a violência cometida contra os sertanejos. “Afinal, suas premissas principais constituem alienações científicas”, escreveu ele num artigo recente.
Ainda neste fim de ano, ele lança, em parceria com o historiador José Leonardo do Nascimento, Os Sertões – Juízos Críticos (Nankin/Editora da Unesp), um livro que reúne textos publicados em 1902 e 1903 sobre a obra mais conhecida de Euclides.
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Euclides escreveu Os Sertões buscando “o consórcio da ciência e da arte”. A ciência de Euclides foi superada. Os problemas científicos, como o determinismo e o racismo, são compensados pela literatura?
Valentim Facioli – Talvez; certamente o pathos apocalíptico da narrativa da luta continua presente na escritura do livro e isso é uma sobrevivência importante, de impacto e comoção dos leitores. Ademais a presença forte da massa pobre sertaneja, lutando heroicamente contra um Exército muito poderoso, resulta numa antinomia que ainda escandaliza: os vitoriosos (o Exército republicano) sofreram derrota e os derrotados ao fim e ao cabo são hoje vistos como vitoriosos.
A retórica tortuosa tem um papel especial na concepção de Os Sertões?
Facioli – Estou convencido de que a retórica tortuosa opera, em inúmeras passagens, leitura e interpretação delirantes, que parecem compensar a carência de pesquisa e de ciência. Assim, a retórica tortuosa diz inclusive por que as contradições brasileiras não são verdadeiramente detectadas por Euclides. E as contradições da leitura e interpretação do próprio escritor são, em parte, escamoteadas, especialmente as teorias raciais, resultando num livro que pode ser adjetivado com os mesmos termos que ele aplicou a Castro Alves, em 1907: monstruoso, paradoxal, quimérico. E isso parece ter muito a ver com o próprio país.
Reprodução/euclidesite
Obra de Euclides é, ao mesmo tempo, um “documento de cultura como autêntico documento da barbárie”, na opinião do professor da USP
Por que, na sua opinião, o livro continua a ser tão importante para a cultura brasileira?
Facioli – Essa importância precisa ser posta no seu lugar. O fato é que esse livro está fora dos saberes canônicos seja das ciências exatas, seja das ciências humanas, e mesmo da literatura. A importância que lhe é atribuída, a meu ver, decorre da purgação da culpa pelo bárbaro e inútil massacre dos sertanejos, culpa que se articula com a culpa presente pelos cerca de 50 milhões de miseráveis que estão inutilmente no país e sem solução. Os Sertões, com seu tom apocalíptico e ruinoso, parece permanecer como emblema dessa questão não resolvida.
O episódio de Canudos é hoje um marco da história do país. Na sua opinião, o livro cumpriu seu desejo de realizar uma denúncia do massacre?
Facioli – Muitos outros conflitos ocorridos no país, dese pelo menos o século 18, não contaram com uma narrativa, escrita quase no calor da hora, que lhes desse notoriedade como ocorreu com Canudos e Os Sertões. Por isso, a força do livro parece relacionar-se com suas circunstâncias e por ele atualizar o problema do pobre rural do país, inclusive com o tom de denúncia e sua força irônica e às vezes satírica, além de momentos trágicos e heroicos que são fortes. Parece certo que o massacre de Canudos teria sido melhor esquecido, como a Guerra dos Farrapos, entre muitos outros exemplos, se Euclides não tivesse escrito seu livro. Mas como o livro existe, ele tende a ser oficializado e mesmo domesticado para purgação de culpa. Foi um erro histórico, isto é, do passado, mas que não mais existiria hoje. Será que basta o “mea-culpa”?
O professor da Universidade de Brasília Flávio Kothe, num artigo publicado no livro O Clarim e a Oração, chega a sugerir que a obra deve ser olvidada, e não celebrada. O que acha dessa posição?
Facioli – Não posso concordar, mesmo porque o livro de Euclides, “monstruoso, quimérico, paradoxal”, tem talvez um mimetismo complexo, mas evidente com as dores e sofrimentos do povo brasileiro, vitimado pelo processo de nossa modernização conservadora. Seria excessivo esquecê-lo, já que ele é também um testemunho vivo das nossas misérias, bem nos termos de Walter Benjamin: é um documento de cultura como autêntico documento da barbárie. Se for assim, melhor não santificá-lo, mas também não esquecê-lo.