O segundo dia do 11º Congresso da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), que acontece no contexto de um “genocídio televisionado” na Faixa de Gaza, foi marcado por uma série de mesas de debate que reuniram intelectuais, militantes e figuras representativas na luta em prol da libertação palestina.
A programação deste sábado (21/09), no Hotel Panamby, no bairro da Barra Funda, em São Paulo, teve como objetivo “dar um grau maior de organização e atuação da comunidade palestina no Brasil”, conforme explicou a Opera Mundi o secretário-geral da Coplac (Confederação Palestina Latino-Americana e do Caribe), Emir Mourab, um dos participantes destacados do evento.
“O genocídio afeta profundamente não só a comunidade palestina. A causa mexe com uma questão das injustiças, ela representa todas as injustiças mundiais”, pontuou, destacando a presença no Congresso de delegados, observadores e convidados especiais, tanto nacionais quanto internacionais.
Mourab ainda falou sobre a importância do evento ser realizado no Brasil, mencionando a atuação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em apoio à causa palestina. O líder brasileiro foi um dos primeiros chefes do Executivo a reconhecer a Palestina como um Estado, em 2010, e incentivou que os outros países da América Latina fizessem o mesmo.
“Isso tem uma importância histórica óbvia e o povo palestino nunca vai se esquecer desse gesto do Brasil e do presidente Lula, assim como não vai se esquecer das declarações claras do presidente em relação ao que acontece atualmente na Faixa de Gaza. Uma declaração que não deixa dúvidas de que o que está acontecendo em Gaza é um genocídio”, declarou Mourab.
Ao todo, o Congresso contou com oito mesas de debate, sobre os quais foram abordados assuntos como a importância da solidariedade à Palestina, a relação entre o direito internacional e o genocídio no Estado palestino, o “antissemitismo” como arma do sionismo para a ocupação, o apartheid e suas implicações, o funcionamento do movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) ao longo do massacre em Gaza, entre outros.
O apartheid na Palestina e suas implicações
A mesa “O apartheid na Palestina e suas implicações” contou com a participação de Fábio Bacila Sahd, secretário geral da Fepal e professor de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e de Bruno Huberman, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), também autor do livro Colonização Neoliberal de Jerusalém.
Durante a exposição, Bacila Sahd centrou-se na necessidade de se entender, de fato, o conceito de “apartheid”, ao destacar que seu entendimento se faz essencial para a luta pelo fim do genocídio em Gaza.
“O genocídio não se configura como a concretização imediata do sonho de pureza étnica (do apartheid), mas sim como o genocídio repressivo, como medida punitiva, para manter a dominação racial”, explicou.
Segundo o docente, nos termos do direito internacional, o apartheid se torna uma tipificação penal e se define como um regime de dominação racial voltado a impor e manter essa dominação, oprimindo grupos étnicos por meios desumanos.
Embora seu conceito seja resultado de uma disputa discursiva no âmbito jurídico, Huberman considera importantes as discussões cada vez mais frequentes envolvendo o termo.
“[O reconhecimento do apartheid] não é resultado orgânico das mentes ilustradas de qualquer lugar do mundo. São os próprios palestinos entendendo sua própria realidade, e são eles que passaram a expressar que vivem um apartheid”, apontou o professor, acrescentando que as narrativas construídas desde 1948 pelas nações ocidentais foram “tão bem sucedidas” que fizeram com que apenas em 2024 se pudesse reconhecer que a Palestina sofre de um regime de apartheid.
Segundo os especialistas, é preciso ultrapassar as fronteiras do âmbito jurídico. Ou seja, são necessárias ações práticas como o boicote e sanções que possam enfraquecer a agressão sionista no território palestino.
“No âmbito de uma sociedade civilizada, a gente adota meios antirracistas. Não basta falar de apartheid. Não dá para estabelecer parceria com instituições racistas e fingir que está tudo bem”, afirmou Bacila Sahd. “Com racista não se dialoga. Falou de Israel? Falou de racista. Lula, rompa relações com Israel”.
Boicote, Desinvestimento e Sanções contra o apartheid na Palestina
A mesa “Boicote, Desinvestimento e Sanções contra o apartheid na Palestina” somou-se às considerações anteriores de Bacila Sahd e Huberman. Com a participação de Arlene Clemesha, professora de História Árabe da Universidade de São Paulo (USP); Andressa Soares, advogada de direitos humanos e internacionalista; e Pedro Charbel, internacionalista e mestre em Sociologia pela USP, também militante do PSOL e do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), o evento esclareceu o funcionamento do BDS e as estratégias adotadas pelo movimento para frear a máquina sionista.
“O que tem na Palestina desde o dia um da criação de Israel é o apartheid”, disse Clemensha, abrindo o debate.
De acordo com a docente, o BDS foi e segue sendo um instrumento fundamental para a resistência palestina. Um dos primeiros “grandes sucessos” do movimento foi o impacto educacional, que impulsionou o entendimento de que os palestinos vivem sob um regime de apartheid protagonizado por Israel.
E esse reconhecimento é essencial, uma vez que ele pressiona a comunidade internacional a tomar posicionamentos “mais assertivos” frente ao “genocídio televisionado”.
O debate abordou os acontecimentos desta quarta-feira (18/09), quando a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou uma resolução que segue o parecer da Corte Internacional de Justiça (CIJ) e exige o fim da presença ilegal de Israel nos territórios palestinos dentro de 12 meses. O texto obteve 124 votos a favor, 14 contra e 43 abstenções.
“Nas sessões preliminares da Assembleia Geral da ONU, sete países mencionaram o apartheid. Agora temos 40 que falam de apartheid. Isso avançou por conta do genocídio televisionado”, afirmou Soares.
“Temos países que diminuíram relações com Israel. A ruptura diplomática é boa, mas não suficiente. Há países que continuam negociando a partir de autarquias. Tem que continuar pressionando”, acrescentou a advogada, citando o exemplo da Colômbia, que cortou parcialmente suas relações com Tel Aviv.
Além do embargo militar, o BDS incentivou o país sul-americano ao embargo de carvão. A nação sozinha era responsável pela exportação de 60% da matéria-prima em Israel. Quando o presidente Gustavo Petro anunciou a decisão, argumentou que “com carvão colombiano, Israel faz bombas para matar as crianças da Palestina”.
Soares esclareceu que o BDS não impõe, nem orienta as pessoas sobre o que elas “devem fazer”. O objetivo é incentivar que movimentos de diversas frentes e grupos internacionais de solidariedade à causa palestina se organizem de forma autônoma para construir uma “campanha estratégica”.
Uma das maiores conquistas do movimento foi impedir a construção de uma nova fábrica da gigante norte-americana Intel, de produção de chips, em território ilegalmente ocupado por Israel. O investimento custaria US$ 25 bilhões.
De acordo com Charbel, essas vitórias são possíveis porque existe uma “força da unificação”.
“A força da unificação é como um chamado de ação. Essa coisa do boicote individual é legal, mas a gente precisa se organizar para ter vitórias, ao ponto de Israel considerar uma ameaça”, apontou o internacionalista. “Quando disseminamos a solidariedade palestina, é preciso vinculá-la com os problemas da sociedade brasileira.”
Partindo de um ponto de vista estratégico, Charbel reforça a necessidade de mapear possíveis aliados, analisar com quem é mais “fácil” de se gerar uma “conexão” – mesmo que com divergências ideológicas – para, de alguma forma, contribuir na luta do povo palestino. Em seguida, estudar quais são as estruturas e empresas mais fáceis “de quebrar” e se concentrar em um alvo específico.
Charbel também fez críticas em relação ao governo brasileiro pela continuidade das trocas comerciais com Israel. O Brasil segue vendendo petróleo e comprando armas do Estado israelense.
Para o militante do PSOL, quando Lula é denominado “persona non grata” por Israel por comparar o Holocausto com o massacre provocado pelas forças israelenses, o presidente está reconhecendo que o que ocorre em Gaza é um genocídio.
“Se você acabou de falar que é genocídio, por que que você não efetiva essa leitura? Inclusive, você vai ser responsabilizado eventualmente. O Brasil hoje é cúmplice do genocídio”, afirmou.
“A gente tem que ir na fonte geradora. A fonte geradora é a cumplicidade internacional e a grana que move a indústria bélica do apartheid de Israel. É uma indústria extremamente lucrativa que usa o povo palestino como laboratório e exporta isso para o resto do mundo. A gente tem que sair da falsa caridade e efetivar a solidariedade com campanhas efetivas. E para ser efetivo, a gente tem que ser estratégico”, acrescentou.