O pernambucano Alessandro Candeas, de 58 anos, será o próximo cônsul-geral do Brasil em Lisboa. Antes de assumir o novo posto em Portugal, país que hoje abriga a maior comunidade brasileira em solo europeu, ele é o atual chefe do Escritório de Representação do Brasil em Ramallah, na Cisjordânia.
Candeas esteve à frente do consulado na região ocupada por Israel durante quatro anos. Foi nesse período que ocorreu uma das mais importantes missões de sua carreira: o diplomata foi o responsável por coordenar a retirada de brasileiros e palestinos-brasileiros da Faixa de Gaza após Israel iniciar as operações militares em outubro de 2023.
Diante de uma zona onde tanto o direito internacional quanto os direitos humanos são vilipendiados sistematicamente, ele explicou como a sua experiência em Bogotá, capital da Colômbia, o ajudou a traçar o plano de repatriação em um cenário que o próprio presidente Lula denominou como genocídio.
“O objetivo [da repatriação] era livrá-los da catástrofe humanitária que se abateu sobre Gaza”, disse.
Confira a entrevista de Opera Mundi com o embaixador Alessandro Candeas na íntegra:
Opera Mundi: O senhor encabeçou a operação para repatriar os brasileiros que estavam na Faixa de Gaza. Como foi aquela missão?
Alessandro Candeas: estávamos preparados para a operação há alguns meses. Estávamos monitorando o crescimento das tensões. Em maio de 2021, tínhamos passado por uma experiência um pouco semelhante, embora em escala consideravelmente menor. Tínhamos preparado um plano de contingência com o objetivo de proteger os nossos cidadãos e, em último caso, o que ocorreu, fazer uma operação aérea pelo Egito. Quando tivemos a notícia dos ataques de 7 de outubro, entramos em contato com a comunidade brasileira que morava em Gaza e que já conhecíamos, porque, duas vezes por ano nós realizamos visitas no contexto dos “consulados itinerantes” que efetuamos naquela Faixa para atender às necessidades de documentação e assistência consular.
Quase todos manifestaram desejo, já naquela data, de saírem de Gaza. Fizemos, então, imediatamente, a preparação logística. O objetivo inicial era retirá-los da zona de confronto, no norte da Faixa, e colocá-los em segurança no sul, perto da fronteira com o Egito. Enquanto aguardávamos a abertura da fronteira e a autorização de saída, alugamos casas para os nossos cidadãos e enviamos recursos para compra de alimentos, água, remédios e gás de cozinha. O objetivo era livrá-los da catástrofe humanitária que se abateu sobre Gaza. Graças a Deus deu certo.
Houve obstáculos impostos pelas autoridades palestinas e por Israel?
Informamos às autoridades israelenses a lista dos brasileiros, dos veículos de deslocamento e das casas e apartamentos onde eles estavam para que não fossem bombardeados. Não houve obstáculos impostos por Israel, nem pelo Egito, e muito menos pelos palestinos. Apenas aguardava-se, como disse, a abertura da fronteira, que ficou mais de um mês fechada, e a inclusão dos brasileiros na lista aprovada para evacuação.
Este último aspecto foi objeto de intensas negociações de alto nível com autoridades de Israel, Egito, Catar e outros países, inclusive com gestões pessoais do presidente Lula e do ministro Mauro Vieira e do assessor especial da Presidência Celso Amorim.
Você também atuou em países sul-americanos, como Argentina e Colômbia. A realidade e a experiência nessas regiões te ajudaram de alguma forma neste período em território palestino?
A experiência na Colômbia, onde servi de 2010 a 2014, foi muito útil para enfrentar a questão da evacuação dos brasileiros de Gaza. Ali fizemos, juntamente com os adidos militares, um plano de contingência para caso de evacuação por via aérea. Da mesma forma, naquele momento, o país ainda enfrentava a questão da guerrilha e o início do processo de paz com as FARC. Trouxe alguns elementos do plano de contingência na Colômbia para a elaboração de um plano semelhante na Palestina (Gaza e Cisjordânia), que fizemos no início de 2023, meses antes do início da conflagração (7 de outubro).
Da mesma forma, a visão estratégica que assimilei de um conflito assimétrico como o da Colômbia em minha experiência como chefe de gabinete do Ministério da Defesa (2016-2018) e chefe do Departamento de Defesa do Itamaraty (2018-2020) me ajudou muito a compreender a estratégia da guerra de Gaza, retirando os brasileiros dos teatros de enfrentamento (no norte da Faixa), trazendo-os para a fronteira com o Egito (no nul) e colocando-os em lugar seguro até a abertura da fronteira com autorização para as suas saídas.
Sabemos que Portugal não reconhece o Estado da Palestina. Você continuará auxiliando de alguma forma os trabalhos da representação brasileira para os territórios palestinos estando em Lisboa? Tem conversado com o João Marcelo Queiroz Soares (ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em Abuja)?
Não, a minha função será estritamente consular, não político-diplomática, e certamente não ligada à questão palestina. Sim, tenho conversado constantemente com os meus colegas que vão assumir a representação do Brasil na Palestina, incluindo João Marcelo Queiroz Soares, que deixa o posto de ministro Conselheiro na Embaixada do Brasil em Abuja (Nigéria) para exercer o cargo que ocupo atualmente em Ramallah, na Cisjordânia. Tenho conversado muito com ele para transmitir todas as informações a fim de que ele dê continuidade às diretrizes de apoio à comunidade brasileira no acompanhamento da complexa situação da região e no aprofundamento das relações bilaterais Brasil-Palestina.
Como é a relação do Brasil com as diferentes autoridades palestinas, na Cisjordânia e na Faixa de Gaza? Como eram antes do massacre iniciado em outubro de 2023 e como ficaram depois?
A melhor possível. O Brasil é muito querido na Palestina, e o presidente Lula é considerado em alta como um estadista corajoso pela forma como se posiciona em defesa da chamada “solução de dois Estados”, da paz e da segurança para todos os povos da região.
O Brasil está sem embaixador em Israel após entraves entre os dois países. Como analisa essa situação? Acredita que haja possibilidades do Brasil cortar relações diplomáticas com Israel?
Talvez seja melhor indagar ao Itamaraty, o tema foge à minha competência.
Na sua visão, a situação em que Tel Aviv colocou Frederico Meyer foi vexatória diplomaticamente? Você teve contato com ele durante o seu período em Ramallah?
O embaixador Frederico Meyer e a sua equipe na Embaixada em Tel Aviv foram extraordinários em darem todo o apoio ao nosso Escritório do Brasil na Palestina para viabilizar a evacuação dos brasileiros de Gaza. O que aconteceu posteriormente foge às regras universais da diplomacia, que é regida pelo respeito aos dignitários estrangeiros.
Atualmente, Portugal é o país europeu com a maior presença de brasileiros. Quais serão os principais desafios à frente da pasta? Tem conversado sobre o tema com o atual cônsul-geral em Lisboa, o embaixador Wladimir Valler Filho?
O embaixador Wladimir e a sua equipe fizeram nos últimos anos um excelente trabalho à frente do nosso consulado em Lisboa. Tenho conversado com ele e os funcionários do Itamaraty que atuam naquele posto para aos poucos conhecer bem a realidade e os desafios da nova missão. O consulado em Lisboa é um dos mais importantes de nossa rede e um dos mais eficientes.
O primeiro desafio, portanto, será dar continuidade ao elevado patamar alcançado pelo consulado no atendimento das necessidades de nossa imensa comunidade brasileira. O segundo será continuar na trilha da modernização, inclusive tecnológica, buscando uma maior aproximação com a própria comunidade expatriada para melhor aferir as demandas e possibilidades de resposta. Uma das demandas mais importantes, por exemplo, é o atendimento à mulher brasileira.
Muitos brasileiros reclamam da falta de amparo em episódios de xenofobia, racismo e violência doméstica em Portugal. E, agora, com a mudança na Lei de Estrangeiros, há uma preocupação com a sobrecarga no serviço consular. Existe algum plano para atender essa demanda?
Ainda estou em Jerusalém acompanhando o cenário terrível de escalada de hostilidades na região, mas posso adiantar que temos plena consciência desses problemas e que esses temas estarão no centro de nossa estratégia de atender cada vez melhor às inquietações da nossa comunidade brasileira em Portugal, em estreita coordenação com a Embaixada do Brasil em Lisboa e, evidentemente, com os(as) próprios(as) nacionais brasileiros ali residentes. Não é à toa que o nome da missão é “serviço consular”. Estamos ali para servir aos brasileiros.