As Convenções de Genebra são uma série de tratados formulados em Genebra, na Suíça, que definem normas para as leis relativas ao direito humanitário internacional. Começam a ser elaboradas ainda no século 19 e, desde então, vêm sendo ampliadas, atualizadas e aprimoradas. Mesmo assim, nem sempre são levadas em conta, especialmente pelas maiores potências militares do planeta, como é o caso de Israel.
A 4ª Convenção de Genebra, datada de 1949, proíbe “a violência à vida e à pessoa, em particular assassinato de todos os tipos, mutilação, tratamento cruel e tortura”. Leia abaixo a seleção feita pelo Brasil de Fato de atrocidades cometidas pelos israelenses na Palestina e veja se consegue identificar alguma dessas práticas proibidas.
1. Torturas e maus tratos
O destino de centenas de palestinos sequestrados pelo exército israelense na Faixa de Gaza permanece incerto, pois os militares negam acesso a organizações humanitárias, apesar de relatos recentes de palestinos que morreram sob custódia israelense. Relatos de mortes e maus tratos aumentam as preocupações sobre o tratamento sistemático dispensado por Israel aos prisioneiros, em aparente desrespeito a noções básicas de direitos humanos.
“Éramos espancados e ordenados a ajoelhar por horas. Ficamos três dias em um campo aberto no frio. Fomos torturados. Fomos acusados de ser membros do Hamas, de sermos terroristas”, disse um ex-detento palestino trazido de volta à Faixa de Gaza pelo exército israelense descalço.
A Anistia Internacional divulgou um relatório no dia 20 de dezembro, instando autoridades a “investigar o tratamento desumano e o desaparecimento forçado de detentos palestinos de Gaza”. A ONU declarou ter recebido “numerosos relatos perturbadores” sobre “detenções em massa, maus-tratos e desaparecimentos forçados de possivelmente milhares de palestinos”, incluindo crianças.
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha não conseguiu verificar as condições de milhares de prisioneiros palestinos desde 7 de outubro, quando Israel suspendeu todas as visitas. A porta-voz do órgão sugeriu que Israel está violando o direito internacional humanitário ao negar acesso a campos de detenção.
No dia 8 de dezembro, um vídeo mostrando mais de 20 palestinos sentados no asfalto seminus, com o tronco curvado, enquanto soldados de Israel circulam ao seu redor, gerou indignação. O governo israelense afirmou que se trata de moradores de áreas no norte da Faixa de Gaza, segundo ele um dos principais redutos e centros de comando do Hamas, insinuando que poderiam ser combatentes
Mas palestinos disseram ter reconhecido nas imagens pessoas que, segundo eles, não têm laços com o Hamas ou outras facções. Hani Almadhoun, um palestino-americano que vive nos Estados Unidos, contou ter identificado diversos familiares, incluindo seu sobrinho de 12 anos. Um portal árabe sediado em Londres afirmou que um dos homens detidos é um jornalista de sua equipe e denunciou a captura de profissionais de imprensa.
2. Matar e sequestrar jornalistas
Mais de 60 jornalistas já foram mortos desde o início da ofensiva israelense, o que levanta a suspeita de uma possível política deliberada de tentar inviabilizar o trabalho dos profissionais que se dedicam a reportar o massacre em curso.
Um dos casos mais notórios é o de um jornalista que não foi morto, mas teve sua vida profundamente marcada por essa guerra: o chefe da sucursal da emissora Al Jazeera em Gaza, Wael Dahdouh, ferido num ataque que matou dois colegas de profissão em dezembro, pouco tempo depois de ter perdido vários membros de sua família (esposa, filho, filha e neto) em outro ataque. A Al Jazeera é uma emissora do Catar, que costuma destacar o ponto de vista dos árabes sobre os acontecimentos.
Na cama de um hospital, Dahdouh contou que a equipe da emissora estava acompanhando socorristas na evacuação de uma família após a destruição de sua casa. À medida que os jornalistas saíam do local a pé, uma explosão o derrubou no chão. Ele pressionou seus ferimentos e saiu do local em busca de ajuda, mas quando chegou a uma ambulância, os socorristas disseram que não poderiam retornar ao local do ataque porque era muito perigoso.
Segundo ele, uma ambulância tentou chegar até o jornalista que acabou morrendo, mas foi alvo de disparos, o que parece configurar mais um caso, entre tantos outros reportados durante essa guerra, em que civis inocentes feridos não conseguem obter o atendimento médico adequado porque as forças israelenses atrapalham o trabalho de resgate.
Segundo o Comitê para Proteção de Jornalistas (CPJ), profissionais da mídia em Gaza enfrentam riscos particularmente altos ao cobrir a invasão israelense, que advêm de ataques aéreos devastadores, comunicações interrompidas, escassez de suprimentos e cortes de energia, sem falar em múltiplos ataques, ameaças, ciberataques, censura e assassinatos de familiares. Até 15 de dezembro, a contagem era de 64 mortos (57 palestinos, 4 israelenses e 3 libaneses); 13 feridos; 3 desaparecidos; 19 presos.
As agências de notícias Reuters e France Press buscaram junto às Forças de Defesa de Israel (IDF) garantias de que seus jornalistas não seriam alvo de ataques, e ouviram que seria impossível garantir a segurança deles.
A Al Jazeera perguntou ao porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, John Kirby, se Israel estava alvejando jornalistas deliberadamente, algo que o país negou. Mas Tim Dawson, secretário-geral adjunto da Federação Internacional de Jornalistas, soou o alarme sobre as “dezenas de jornalistas” mortos desde 7 de outubro. “Acredito que isso agora é uma questão de liberdade de imprensa. Temos que nos perguntar: ‘O que o [militar israelense] está tentando alcançar? Por que eles não permitem a entrada de jornalistas estrangeiros?'”, disse à Al Jazeera.
“É crucial que os jornalistas possam realizar seu trabalho sem ataques violentos”, afirmou Stephane Dujarric, porta-voz do secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), António Guterres.
É perturbadora também a situação de correspondentes que simplesmente saem de cena, como Diaa al-Khalout, correspondente do serviço em árabe do grupo sul-africano TNA Media. Segundo testemunhas, ele foi sequestrado pelo exército israelense em 7 de dezembro, junto com seus irmãos, parentes e outros civis em Beit Lahia, norte de Gaza, e até o dia 21, seu paradeiro era desconhecido.
UNRWA/Twitter
Israel fez mais de 20.000 vítimas em Gaza desde 7 de outubro
3. Transformar hospital em alvo
Dez dias haviam se passado do início da guerra quando um fato chocou mesmo as pessoas acostumadas aos confrontos coloniais na região: um ataque ao hospital Al-Ahli, na cidade de Gaza, provocou centenas de mortes — a quantidade variava conforme a fonte, mas as autoridades locais estimaram em quase 500 vítimas fatais.
Segundo a Defesa Civil Palestina, tratava-se do ataque mais mortífero em cinco guerras travadas desde 2008. “O que aconteceu esta noite equivale a um genocídio”, disse na ocasião o porta-voz Mahmoud Basal.
Além do volume da mortandade num único ataque, chamou a atenção o fato de ter ocorrido num hospital, tipo de local que costuma ser preservado em respeito aos feridos e doentes. E que, nesse caso específico, abrigava também uma série de deslocados que haviam saído de suas casas para evitar virar alvo das bombas israelenses. Ou seja, era uma espécie de campo de refugiados improvisado. Por isso morreu tanta gente.
Um grupo de relatores da ONU chamou o ataque de “atrocidade” e lembrou que, no mesmo dia, houve um ataque mortal a uma escola da UNRWA, a agência das Nações Unidas para refugiados palestinos e mais dois campos de refugiados densamente povoados. “O cerco total a Gaza, juntamente com ordens de evacuação inviáveis e transferências forçadas de população, é uma violação do direito humanitário e penal internacional. Também é indescritivelmente cruel”, disseram.
Com o passar dos dias e meses, a situação nos hospitais de Gaza só fez piorar. Alegando que funcionam como abrigo e base operacional para militantes do Hamas, Israel os transformou em alvos de ataques e cercos frequentes, sem falar nas dificuldades operacionais causadas pela falta de equipamento e combustível para geradores. A ponto de, dois meses após a mortandade no Al-Ahli, a OMS (Organização Mundial de Saúde) ter declarado que no norte de Gaza não havia sequer um hospital funcional.
Na mesma época, a OMS usou termos como “uma cena de horror completa” e “banho de sangue” para se referir ao Al-Shifa, um dos poucos hospitais que ainda conseguia operar, ainda que de modo bem pouco funcional: prestando apenas serviço de estabilização básica de trauma, sem sangue para transfusões e quase nenhum profissional de saúde para cuidar do fluxo constante de pacientes, sem falar nos pacientes com lesões traumáticas sendo suturadas no chão, com praticamente nenhum analgésico. O uso de lanterna de telefone celular para iluminar procedimentos se tornou comum durante o massacre em Gaza.
4. Matar crianças e mulheres
O fato de Israel ter matado 20 mil palestinos em 75 dias de ofensiva — média de 266 pessoas por dia, a imensa maioria civis inocentes — é um assombro. Mas a parte mais dramática dessa estatística é o fato de 70% dos cadáveres serem de crianças e mulheres, o que contraria as regras internacionais que regem, ou deveriam reger, as guerras.
Diariamente, chegam à redação do Brasil de Fato fotografias de crianças mortas e feridas sendo carregadas nos braços de adultos, enroladas em lençóis, levadas para hospitais e enterros. São imagens fortes, que provocam dúvida: publicar para reportar o horror vivido pelos palestinos, ou poupar o leitor de registros tão deprimentes?
Entre os muitos relatos sobre o assunto vindos campo de batalha, destacamos aqui o de uma médica australiana que ajudou a coordenar ajuda médica para Gaza falou sobre os horrores que testemunhou, afirmando que uma “grande proporção de crianças está sendo morta ou mutilada para toda a vida”.
Natalie Thurtle, que trabalhou com a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), disse ao jornal britânico The Guardian que “a partir das conversas com colegas e ao ver as imagens que eles estão vendo, o número de crianças mortas ou mutiladas neste conflito é extremamente alto”. Ela acrescentou que entre 150 e 200 pacientes chegavam diariamente ao Hospital Al-Aqsa, no centro de Gaza, mas “cerca de um terço desses pacientes chegava morto”.
Em entrevista à Al Jazeera, Adnan Abu Hasna, porta-voz da Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinos (UNRWA), descreveu a situação na Faixa de Gaza como “um tsunami humanitário”.
Uma hipótese levantada durante o atual massacre é a possibilidade de estar ocorrendo um “genocídio de manual”, normativa composta de cinco critérios, três dos quais Israel estaria implementando: matar membros de um grupo; causar dano sério corporal ou mental a membros desse grupo; deliberadamente infligir sobre o grupo condições de vida calculadas para trazer a destruição física de seu todo ou de parte.
5. Prisões e maus tratos na Cisjordânia
Gaza é o epicentro da questão palestina no momento, pois é de lá que partiram os ataques que serviram de pretexto para o contra-ataque israelense e é lá que fica sediado o Hamas, grupo palestino que Israel pretende erradicar, segundo seu governo. Mas na Cisjordânia, outro território palestino na região, que vive sob permanente ocupação de Israel e onde existem assentamentos ilegais de cidadãos israelenses, a vida também mudou.
Desde o início do massacre israelense, nota-se um crescimento na quantidade de prisões no território ocupado. Mais de 4,6 mil palestinos foram detidos por tropas israelenses, o que configura uma média de cerca de 61 pessoas por dia. O escritório das Nações Unidas para direitos humanos nos territórios ocupados declarou estar “profundamente preocupado” com a elevação dessa estatística.
A disponibilidade israelense para aprisionar pessoas é tanta que acabou transformando num jogo de soma zero a chamada pausa humanitária para troca de reféns por prisioneiros, no final de novembro. Explica-se: ao mesmo tempo em que libertou 150 prisioneiros nos quatro primeiros dias do acordo, Israel colocou outros 133 palestinos atrás das grades, todos detidos na Cisjordânia e na porção oriental de Jerusalém, segundo associações de prisioneiros palestinos.
Tudo isso sem falar das denúncias de maus-tratos e torturas, conforme mencionado acima.
E sem falar também numa série de outras violações de direitos que ocorrem na Cisjordânia, perpetradas por colonos e tropas israelenses contra palestinos, que não são punidas por Israel, como violência física e patrimonial. Um exemplo: proibir o acesso dos agricultores palestinos às suas terras e queimar suas colheitas.
Na última quinta-feira (21/12), ocorreu uma destruição considerável de infraestrutura agrícola numa região chamada Khirbet at-Taweel, perto de Belém, na Cisjordânia, onde duas edificações, usadas por famílias palestinas para criar animais, foram derrubadas por tanques israelenses. Perto dali, foram registradas 14 ocorrências semelhantes. As tropas de Israel alegam falta de permissão para o funcionamento dessas instalações agrícolas. Testemunhas dizem que equipamentos de produção foram roubados e/ou destruídos.