Quinta-feira, 10 de julho de 2025
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O ativista e internacionalista Thiago Ávila, de 38 anos, retornou ao Brasil na última sexta-feira (13/06), depois de ter passado quatro dias detido em Israel.

Em entrevista exclusiva a Opera Mundi, Thiago revelou detalhes sobre a interceptação do barco Madleen, que navegava pelo mar Mediterrâneo em direção a Gaza quando foi parado pelas autoridades israelenses em águas internacionais, a mais de 100 milhas náuticas da costa do enclave, na madrugada de segunda-feira (09/06).

O brasileiro estava acompanhado de outros onze ativistas de diferentes nacionalidades, todos detidos pela marinha israelense.

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À reportagem, Thiago relatou em detalhes os momentos de tensão vividos durante a interceptação; as violências físicas e psicológicas sofridas por ele e seus companheiros de missão sob custódia israelense; o confinamento em cela solitária e o processo de deportação imposto por Israel. Ele compartilhou, ainda, sua percepção sobre os recentes ataques de Israel ao Irã, analisou a reação da opinião pública à Flotilha da Liberdade e refletiu sobre os próximos passos e o futuro da missão.

A interceptação da Flotilha por Israel em águas internacionais

Segunda-feira, 9 de junho, 2 horas da manhã do horário local. O barco da Flotilha da Liberdade, uma iniciativa composta por ativistas de diferentes países unidos com o objetivo de desafiar o bloqueio mantido por Israel sobre a Faixa de Gaza há 18 anos, navegava a cerca de 100 milhas náuticas da costa do enclave palestino, em águas internacionais, quando foi interceptado pelas autoridades israelenses.

“Foram 5 noites com drones sobre as nossas cabeças antes de Israel interceptar o barco. O medo era que eles atacassem como eles fizeram em maio com nosso barco Conscience”, disse o ativista, se referindo à tentativa anterior de navegação de uma embarcação da Flotilha que foi atacada por um drone na costa de Malta em maio deste ano.

Thiago relatou que ele e os outros membros da Flotilha demoraram alguns minutos para entender que dessa vez não se tratava de um ataque, e sim de uma interceptação.

De acordo com o internacionalista, a unidade israelense que interceptou o Madleen – as S13 – é a mesma responsável pelo assassinato de dez ativistas da Flotilha em 2010, quando do ataque do barco Marvi Marmara.

“Quando os barcos (israelenses) chegaram, entendemos que era uma interceptação. Nesse momento todos tomaram suas posições. A ideia era preservar a vida, integridade física e liberdade das pessoas, nessa ordem”, explicou.

No vídeo daquela madrugada, divulgado pela equipe da Flotilha da Liberdade nas redes sociais, é possível entender a que posições Thiago se refere: no momento da interceptação, o brasileiro, que era coordenador da missão, pediu a todos os outros a bordo que se sentassem no interior do barco e aguardassem a interceptação de forma pacífica.

“Tomamos a decisão de não impedir a tomada do barco, indicamos para eles (israelenses) que não iríamos resistir”, revelou o brasileiro. “Estávamos sob a mira de fuzis, no meio do oceano, sem comunicação com ninguém. Nossa prioridade era desescalar a situação”.

Neste momento, Thiago pediu aos demais ativistas que entregassem seus aparelhos eletrônicos para que fossem atirados ao mar. Ele explicou que essa conduta buscava evitar que os equipamentos fossem roubados pelos israelenses – o que, segundo ele, já havia acontecido em outras missões – e que os dados fossem utilizados pela agência de inteligência israelense – a Mossad -, para perseguir pessoas relacionadas à causa Palestina.

“Quando alguém embarca na Flotilha, informamos que a regra é que essa pessoa perca seus equipamentos eletrônicos. Ao jogar os aparelhos no mar, evitamos entregar para Israel dados sensíveis de mobilização ao redor da causa palestina, de movimentos de solidariedade, e proteger a identidade das pessoas que estão nessa causa para evitar sua perseguição”, explicou. “Se livrar de um equipamento que tem informações sensíveis de organização de solidariedade não é crime. O crime é sequestrar ativistas internacionais em águas internacionais; deter ajuda humanitária; roubar dados de equipamentos eletrônicos e ter uma agência de inteligência que assassina pessoas no mundo inteiro.”

Ao jogar os aparelhos no mar, evitamos entregar dados sensíveis da mobilização, disse 
Reprodução / @thiagoavila

Chegada dos ativistas ao porto israelense de Ashdod

“A partir daquele momento (da interceptação), estávamos sequestrados. Eles (os israelenses) assumiram o controle da embarcação e mudaram seu curso para ir em direção ao território marítimo israelense”, revelou Thiago à reportagem de Opera Mundi.

Sob custódia israelense, a jornada dos ativistas do ponto de interceptação até o porto de Ashdod, em Israel, levou aproximadamente 20 horas – mais do que o necessário, segundo Thiago. “Não era que o trajeto levaria tudo isso. Poderíamos ter feito em quase metade do tempo. Mas eles conduziam o barco em zigue-zague”, contou.

Ao questionarem um dos soldados sobre a razão da manobra, os ativistas receberam uma resposta direta: os israelenses não queriam que a chegada da equipe da Flotilha fosse registrada pela imprensa. De acordo com Thiago, o objetivo era claro: chegar à noite, dificultar que a imprensa pudesse fazer imagens dos ativistas à distância, e ganhar tempo para esvaziar o porto de Ashdod, montando uma operação militar de grande porte para recepcioná-los.

“Quando desembarcamos, não havia um único jornalista no porto”, relatou.

Manobras publicitárias de Israel

Thiago revelou que ao longo de todo o percurso entre o ponto de interceptação do barco Madleen e o porto de Ashdod, as autoridades israelenses ofereciam água e sanduíches aos ativistas enquanto registravam tudo com câmeras fotográficas e de vídeo.

“Foi uma manobra publicitária”, disse o ativista, “para tentar dizer que aquilo não era um crime dentro do direito internacional”. Para Thiago, o objetivo israelense era construir uma narrativa que negasse o caráter ilegal da operação: um sequestro de ativistas, uma violação do direito do mar, dos direitos humanos e das ordens emitidas pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) no processo movido pela África do Sul contra Israel. A decisão da CIJ proíbe expressamente o governo israelense de interceptar qualquer tipo de ajuda humanitária destinada à Faixa de Gaza, independentemente de sua origem.

O brasileiro relatou que quatro ativistas foram os principais alvos das manobras publicitárias israelenses, sendo os mais filmados e fotografados: ele próprio e Yasemin, ambos coordenadores da missão; Greta, ativista ambiental de renome internacional; e Rima Hassan, eurodeputada franco-palestina.

“O tratamento – em termos de violações – era rigorosamente igual para todos”, contou Thiago, “mas as câmeras ficavam mais perto de nós quatro”. Segundo ele, isso mudou quando os militares perceberam que era ele quem negociava em nome do grupo, momento em que começaram a tratá-lo com mais hostilidade e intimidação. “Sempre que levantavam a voz ou tentavam agredir alguém, eu intervinha. Por isso, passaram a me tratar de forma diferenciada.”

Do porto de Ashdod para as autoridades de imigração israelense

Após desembarcarem no porto de Ashdod, os ativistas da Flotilha foram transferidos para uma unidade da imigração israelense. Conforme relatado por Thiago Ávila, o trajeto foi feito em uma viatura equipada com uma espécie de cela adaptada no interior – escura, sem ventilação e extremamente apertada – cada uma transportando quatro dos ativistas.

Thiago contou que, durante o deslocamento, um dos ativistas começou a sentir urgência de urinar. Ele pediu diversas vezes às autoridades israelenses para possibilitar sua ida a um banheiro, mas inicialmente foi ignorado. Em determinado momento, um dos militares israelenses respondeu que não faria nada por ele: “pode morrer gritando, vocês não terão acesso ao banheiro”, teria dito o soldado.

Sem alternativa, o ativista urinou em um canto da própria viatura, enquanto os demais se afastaram o quanto puderam dentro do espaço restrito. Tudo aconteceu em meio ao movimento do veículo, que seguia em direção à unidade de imigração.

“Não cometemos crime algum. Nunca foi nossa intenção entrar em Israel”

Foi somente ao chegar à unidade de imigração israelense que os ativistas tiveram acesso ao grupo de advogados da organização Adala e às suas respectivas representações consulares.

“Eles pegaram todos os nossos itens pessoais; mexeram e reviraram absolutamente tudo o que tínhamos; mandaram as pessoas que estavam com roupas da Palestina se trocarem; desapareceram com nossos itens pessoais; nos ameaçaram e tentaram nos forçar a assinar um documento dizendo que entramos ilegalmente em Israel”, denunciou o brasileiro.

Thiago, Yasemin, Greta e Rima foram então levados separadamente para uma sala onde encontraram um ex-porta-voz do governo israelense. Ele ofereceu exibir um vídeo sobre os ataques de 7 de outubro, realizado pelo grupo palestino Hamas.

“Nos recusamos a assistir ao vídeo”, contou Thiago. “Eu disse que nós conhecíamos muito bem esse vídeo – o mesmo que eles usaram para justificar o assassinato de mais de 18 mil crianças em Gaza; a destruição de bairros inteiros; o bombardeio de hospitais, escolas, abrigos. Foi o vídeo usado para justificar o assassinato de mais de 200 jornalistas, mais de 200 médicos, mais de 200 trabalhadores da defesa civil, mais de 200 funcionários da UNRWA (agência da ONU para refugiados palestinos). Nós nos recusamos a fazer parte disso.”

Thiago relatou, ainda, que os israelenses registraram a recusa do grupo em assistir ao vídeo para tentar retratá-los como intolerantes. “No meio de um sequestro, queriam que assistíssemos a mais uma de suas manobras publicitárias – o mesmo vídeo usado para chancelar um genocídio, para fabricar um consenso internacional em torno da limpeza étnica que promovem há mais de oito décadas na Palestina”, disse o ativista.

A orientação jurídica recebida pelos ativistas foi imediata e clara: tratava-se de uma prisão ilegal à luz do direito internacional. Por isso, eles foram instruídos a, em um primeiro momento, não assinar nenhum documento com o qual não concordassem. A defesa sugeriu, no entanto, que se houvesse um grupo disposto a ser deportado antes, isso permitiria que a versão real dos fatos fosse divulgada rapidamente, em contraponto à propaganda israelense.

“Greta queria ficar. É uma das pessoas mais corajosas que já conheci”, contou Thiago a Opera Mundi. “Mas o aparato de propaganda sionista é muito poderoso. Se não tivéssemos uma voz forte do lado de fora, dificilmente conseguiríamos enfrentá-los em sua narrativa. Então ela concordou em assinar um documento assumindo um crime que não cometeu”. Greta Thundberg e outros três ativistas então assinaram a ordem de deportação e embarcaram para seus países de origem naquele mesmo dia.

“As demais 8 pessoas que não assinaram o documento, não o fizeram por motivos óbvios”, explica Thiago. “Não cometemos crime algum. Nunca foi nossa intenção entrar em Israel.”

Segundo Thiago Ávila, os militares israelenses afirmaram que aqueles que se recusassem a assinar o documento de deportação seriam transferidos para uma unidade prisional. “Vocês querem ir para casa? A única forma é assinando este documento, assumindo que tentaram entrar ilegalmente em Israel. Vocês serão banidos de entrar no país pelos próximos 100 anos, mas embarcam no próximo voo”, teria dito um dos oficiais.

Thiago foi o primeiro do grupo a ser colocado frente a frente com um oficial de imigração. O agente perguntou ao ativista o motivo de ele ter entrado “ilegalmente em Israel”.

“Eu expliquei toda a situação”, disse Thiago. “Eu fui inclusive longe no contexto do Estado colonial, de oito décadas de genocídio e limpeza étnica que se estruturou num estado de colonização e apartheid, que é regido por uma ideologia racista e supremacista chamada sionismo – que está cometendo as maiores atrocidades e crimes de guerra contra o povo palestino em Gaza. Disse que há 614 dias esse genocídio vinha escalando para violações poucas vezes vistas na história da humanidade, e que precisava ser detido. Ele (o oficial) detestou ouvir aquilo, mas precisou registrar em ata o que eu dizia. A gente seguiu essa mesma franqueza e sinceridade em todos os momentos em que fomos ouvidos pelas autoridades do sistema colonial de Israel”.

A prisão israelense de Givon: violência psicológica

Após se recusarem a assinar a ordem de deportação, Thiago Ávila e outros sete ativistas foram transferidos para a unidade prisional israelense de Givon.

“Givon é conhecida por diversas violações de direitos humanos – embora não seja considerada uma das piores prisões israelenses. Mais de 10 mil presos palestinos estão nas masmorras de Israel”, afirma Thiago.

Segundo ele, desde a chegada, o grupo foi submetido à violência psicológica e desrespeito por parte dos agentes carcerários: foram forçados a trocar de roupa e vestir uniformes prisionais; foram separados uns dos outros; ridicularizados e mantidos em celas temporárias sem acesso a água ou comida durante o processo de triagem. “Eles nos diziam: ‘bem-vindos a Israel!´”, conta Thiago.

Enquanto faziam o inventário dos pertences de Thiago, as autoridades israelenses registraram um cordão com um mapa da Palestina como “colar com mapa de Israel escrito ‘Palestina’”. Ao ser questionado pelo ativista, o oficial da triagem em Givon disse que “a Palestina não existe”.

Thiago lembra que, em outras edições da Flotilha, os prisioneiros tiveram todos os seus pertences roubados pelas autoridades israelenses. Desta vez, por conta da exposição midiática, itens pessoais foram preservados. “Eles ainda roubaram o bote, os coletes e outras coisas da embarcação, mas deixaram nossos objetos pessoais.” Segundo o ativista, essa conduta é parte da encenação para sustentar a narrativa de que tudo estava dentro da legalidade.

Em Givon, os ativistas foram separados por gênero. Após essa divisão, Thiago perdeu completamente o contato com Rima e Yasemin. “Foi a última vez que as vi até o momento da deportação. Fiquei dias sem qualquer informação sobre elas.”

Ele conta que a cela em que ficou com os três outros ativistas do sexo masculino era isolada das demais, localizada no final de um corredor com múltiplas barricadas e sinalizações que restringiam o acesso a “pessoal autorizado”. “Só agentes carcerários específicos tinham permissão para passar por ali.”

“Não tínhamos relógio, então não consigo dizer com precisão a periodicidade”, revelou Thiago, “mas eu diria que a cada duas horas eles vinham para acordar todo mundo com muito barulho e diziam ‘levanta, levanta, desce da cama, fica em pé aqui’! Aí chegavam, olhavam para a cara de todo mundo, e iam embora de novo. Ou então mandavam todos nós ficarmos em pé na frente deles, com a luz acesa, e nos mantinham parados lá para que não pudéssemos ter uma noite de sono. Um processo desnecessário e violento.”

Estado Democrático de Direito?

“Esse sequestro mesclou procedimentos que por vezes pareciam manobras publicitárias da entidade sionista; ora se parecia com um sequestro comum de um estado pirata; ora se fantasiava de um procedimento legal”, contou Thiago à reportagem de Opera Mundi. “Eu passei todos esses dias sem poder me comunicar com a minha família – não só eu, mas todas as demais pessoas. Sobre isso, eles diziam que se tratava de uma ordem direta do ministro do interior, Itamar Ben-Gvir, para que ninguém que estivesse em cárceres israelenses conseguisse falar com sua família.”

“Tivemos um tratamento diferenciado dos ‘presos comuns’. Não vou chamar de preso comum quem está na masmorra de um Estado colonial, mas nós ficamos numa ala diferenciada. Tínhamos pouco tempo de acesso ao Sol. Não podíamos ligar para nossos advogados.”

Thiago Ávila ao lado de sua esposa Lara Souza e filha Teresa
Humberto Reis Bispo

Greve de fome e sede: “não estou disposto a aceitar nada de um regime que mata crianças de fome”

“Se há mais de 10 mil presos palestinos, muitos sendo mortos sob tortura, e se há crianças morrendo de fome em Gaza, eu não queria me alimentar com nada do que eles me oferecessem.”

Foi com esse posicionamento que Thiago Ávila anunciou, ainda na prisão de Givon, o início de uma greve de fome e de sede – uma tática de resistência que, segundo ele, é amplamente utilizada por presos palestinos.

“Avisei que não aceitaria comida nem água. Eles responderam: ‘Tem certeza? Aqui, isso é considerado um delito’.”

Após a declaração, Thiago foi levado até o coordenador da unidade prisional e, logo depois, para uma audiência de custódia. A juíza, segundo ele, vestia trajes típicos de colonos israelenses da Cisjordânia ocupada. Thiago foi o primeiro a ser ouvido, acompanhado pelos advogados do Adala e pelo representante jurídico da embaixada brasileira, Mateus.

Ao ser questionado sobre a missão e a greve de fome e sede, respondeu com franqueza. “Expliquei com muita transparência o que fazemos e o porquê fazemos. Disse que Gaza vive sob cerco há dezoito anos, que são oito décadas de genocídio e limpeza étnica. Expliquei a linha do tempo de como funcionava cada uma dessas coisas, quais são as principais violações que Israel está cometendo perante o direito internacional, porque o mundo precisa deter essa ideologia racista e supremacista. Expliquei o uso da (greve como) tática não violenta de resistência, seus usos históricos na África do Sul na luta contra o apartheid, na independência da Índia, na luta pelos direitos civis nos EUA, e a legitimidade disso diante de um sistema opressor. Ela (a juíza) ficou bastante incomodada ao ouvir tudo isso.”

Após a audiência, Thiago foi levado novamente ao coordenador da prisão de Givon. Ali, um médico aferiu seus sinais vitais. Em seguida, o aviso: se insistisse na greve, seria transferido para o isolamento solitário, sem contato com a embaixada, advogados ou os demais ativistas.

“Eu disse que a greve era um direito meu, uma forma de denunciar as violações. Responderam que eu podia pensar como quisesse, mas que só sairia do isolamento solitário quando encerrasse a greve. Eu disse que não estava disposto a aceitar nada de um regime que mata crianças de fome. Se achavam que isso justificava aumentar ainda mais as violações contra nós, essa responsabilidade não era minha, e sim deles.”

Pouco depois, Thiago foi conduzido à outra unidade prisional, onde foi colocado em confinamento solitário.

Prisão israelense de Aylan: confinamento solitário

Thiago Ávila foi transferido da prisão de Givon para a unidade de Ayalon. “Era uma prisão medieval. Cheia de ratos, baratas, sem ventilação ou luz. Não se sabia se era dia ou noite, só se ouviam gritos”, relatou.

Os carcereiros, segundo ele, o empurravam e gritavam “Bem-vindo a Israel” com violência. “Todos sabiam meu nome, mencionavam o Brasil e falavam da Greta. Estavam nos esperando.”

Mesmo sem comer ou beber, Thiago destacou que a água era imprópria – turva, com cheiro ruim. “A mim, traziam garrafa de água potável e comida ‘mais bonita’, filmando tudo, tentando me desmoralizar.”

Em dois dias de isolamento absoluto, recebeu ameaças dos israelenses: “Se quisermos te obrigar a comer, conseguimos enfiar comida na sua boca.” Mas ele manteve a posição. “Respondi às perguntas com sinceridade, sempre evocando a Palestina e os lembrando das violações que estavam cometendo. Se você mantiver a sua dignidade, demonstrar firmeza, você consegue muitas vezes neutralizar situações de violência. Eles passam a te ver como alguém que não os teme”, relatou o ativista.

Em seu único encontro com sua advogada enquanto permaneceu em isolamento, Thiago conseguiu ditar para ela uma carta para sua filha Teresa, de apenas 1 ano, sem que as autoridades israelenses percebessem, já que nenhum contato com sua família lhe era permitido.

Na noite em que passou no confinamento solitário, o brasileiro iniciou uma conversa com outros presos isolados no mesmo corredor de celas. Um deles, etíope, ficou tocado ao se dar conta de que que Thiago sabia sobre a capital do país, Addis Abeba, e que admirava a história de resistência da Etiópia. Ao saber da greve de fome do ativista, os presos insistiram para que ele aceitasse parte de suas refeições.

Um jovem carcereiro negro, também etíope e judeu sefardita, agradeceu a Thiago. O homem disse que sua família sofria discriminação em Israel por serem judeus de “segunda categoria”, e ofereceu secretamente comida, que Thiago recusou com gratidão. “Ele trouxe chá gelado, pães e hummus”, contou o brasileiro.

Mais tarde, outro carcereiro tentou colocar os demais presos contra Thiago: “Se ele não comer, ninguém vai jantar.” Mas o preso etíope respondeu: “se ele estiver em greve, nós também ficaremos.” A janta foi distribuída, e cada preso separou parte da sua para Thiago. “Você pode mudar de ideia, e se você acordar com fome a gente quer que você tenha o que comer”, disseram.

“Na noite que eu imaginava que seria a pior possível, eu os ouvi cantar e rezar, e ouvia meu nome, o nome do Brasil e o de Greta nessas orações. Eu nem vi a hora que peguei no sono”, compartilhou Thiago, emocionado.

Violência física

Thiago Ávila foi deportado por Israel e desembarcou no Brasil na manhã de sexta-feira, 13 de junho. Seu corpo chegou marcado: feridas e escoriações, lesões provocadas por insetos – percevejos e baratas -, além de ferimentos causados por agressões físicas: empurrões, algemas apertadas a ponto de comprometer a circulação, e pontapés.

“Eu cheguei no Brasil determinado a não falar sobre isso. Não queria que as notícias fossem ‘Thiago sofreu violações em cadeia israelense’. Mais de 10 mil palestinos, entre eles 400 crianças, estão nas masmorras de Israel. Eu sou um aliado. Eu não quero que as pessoas tenham pena dos aliados ou pensem que somos tratados de maneira pior do que o povo originário daquele país. O palestino é tratado mil vezes pior. Qualquer dano que assumi e sofri é uma pequena fração do que o povo palestino sofre há décadas”, disse o ativista.

Segundo ele, os métodos de tortura aplicados nas prisões israelenses “não perdem em nada para os usados pelos nazistas”. Diante disso, se perguntou: “o que são dois dias em isolamento, perto do que vivem os presos palestinos?”

Thiago só decidiu tornar públicas as marcas em seu corpo ao descobrir, ainda no aeroporto, que Israel havia descumprido o acordo que previa a deportação simultânea dos demais ativistas da Flotilha.

A justificativa dada pelas autoridades israelenses foi que, após os ataques ao Irã na madrugada de sexta-feira, os aeroportos foram fechados. Mas, para Thiago, isso violou uma condição essencial: “o combinado era que eu só embarcaria se os outros também fossem levados.” O ativista concluiu que foi enganado pelos israelenses.

Ataque israelense ao Irã

Nos últimos dias, Israel bombardeou Beirute na véspera de um feriado islâmico importante, reprimiu a Flotilha da Liberdade, e lançou um ataque direto ao Irã no amanhecer da sexta-feira – novamente na véspera de uma data comemorativa importante para os muçulmanos xiitas. Tudo isso enquanto a Flotilha e a Marcha até Rafah ganhavam repercussão global.

Thiago Ávila explicou à reportagem de Opera Mundi que o confronto militar é utilizado por Israel sempre que sofre uma derrota da opinião pública.

“Netanyahu e o regime israelense utilizam de ataques a outros países e da escalada do genocídio como manobra e tática de alavancagem e negociação. Todas as vezes que têm uma derrota de opinião pública muito grande, a forma que encontram é tentar gerar um novo fato, atacar um novo país, iniciar um novo fronte, para que as notícias deixem de ser as violações que eles estão cometendo em Gaza e passem a ser o embate com o novo ator. Sempre é de uma forma que eles (Israel) atacam primeiro, causando muitos danos e obrigando o país atacado a responder, e quando esse país responde, eles tratam como se esse país tivesse atacando Israel e ameaçando o direito de Israel de existir.”

De acordo com o ativista, os danos de opinião pública sofridos por Israel são praticamente irreversíveis, e o embate direto com o Irã é uma tentativa israelense de reverter esse cenário, levantando uma cortina de fumaça que impede o público de focar no genocídio em curso em Gaza.

Thiago explica, ainda, que o agente externo que Israel ataca dessa vez – o Irã -, é desumanizado por meio da islamofobia do ocidente e de uma fabricação histórica de que intervenções militares são necessária no Irã “em defesa da democracia” e do “direito de Israel existir” diante de um “inimigo” cuidadosamente moldado ao longo dos anos.

“Netanyahu é o inimigo número um da humanidade, da paz”, afirma. “Se o Irã responde, Israel empurra o mundo para a guerra. Se não responde, Israel provoca mais. Foi assim que assassinaram oficiais iranianos e cometeram outros crimes. Agora, chamam o Norte Global para ajudar a combater essa ‘ameaça’.”

O futuro da Flotilha da Liberdade

Questionado sobre os ataques recebidos por parte de personalidades sionistas no Brasil – como a acusação de que a Flotilha seria ‘financiada pelo Hamas’ – Thiago Ávila foi assertivo: “quatro milhões de pessoas doaram pequenas quantidades para a Flotilha ao longo das suas 14 campanhas nacionais no ano passado, para que pudéssemos ter as 4 missões que tentamos fazer ao longo do último ano. Não aceitamos participantes de organizações políticas palestinas ou apoiadores orgânicos delas dentro das missões da Flotilha – não porque as condenamos, já que o crime é a colonização em si, não lutar contra ela – mas como se trata de um missão de caráter humanitário, pacífico, preferimos não confundir.”

Segundo ele, esse tipo de narrativa tenta aplicar à causa palestina a mesma estratégia de desinformação já usada por lobbies da indústria do tabaco, de agrotóxicos e dos combustíveis fósseis: fabricar dúvidas e impor narrativas por meio do poder econômico.

Com 17 anos de existência, a Flotilha segue resistindo ao cerco que há 18 anos sufoca Gaza. “Me veio uma tristeza muito grande por não ter conseguido chegar em Gaza, mas sobretudo por não ter conseguido abrir o corredor humanitário para os próximos barcos. Enquanto ele não for aberto, essa missão não está completa.” Mesmo assim, Thiago vê conquistas: “a missão não foi derrotada quando conseguimos abrir os corações das pessoas para entender que Gaza está sitiada há 18 anos; que o genocídio e a limpeza étnica acontecem há oito décadas; e que Israel vem mentindo esse tempo todo sobre o que acontece lá.”

Sobre as críticas à sua pessoa e aos outros ativistas, Thiago respondeu: “não somos pessoas irresponsáveis. Não estávamos lá para buscar visibilidade própria. Eu faço isso há 20 anos, muito antes das redes sociais existirem. Queremos ser úteis a uma causa muito maior que nós. O que quero é ser útil para essa batalha do nosso tempo.”

“A Flotilha navega quando os governos falham. E nós vamos navegar até que a Palestina seja livre”, afirmou Thiago sobre o futuro da Flotilha da Liberdade e de seu ativismo. “Muito em breve teremos uma nova missão – e meu nome já está como voluntário. Se tivesse um novo barco para irmos semana que vem, eu ia semana que vem”, disse, sorrindo.

(1) Para referência: de acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, o limite das águas territoriais de um país corresponde a uma faixa de 12 milhas náuticas (aproximadamente 22,2 km) a partir da linha de base da costa.