Terça-feira, 13 de maio de 2025
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No episódio de estreia do programa Plantão Opera Mundi, o jornalista Victor Farinelli conversou de forma exclusiva com o ativista brasileiro Thiago Ávila, poucas horas após ele escapar de um ataque de drones à Flotilha da Liberdade (FFC), em Malta.

A FFC, coalização que luta para acabar com o bloqueio israelense na Faixa de Gaza, foi atacada na madrugada desta sexta-feira (02/05) por dois drones. Durante a entrevista, Ávila relatou os momentos de tensão, o incêndio no barco e o pedido de resgate e fez um apelo urgente à comunidade internacional pelo fim do bloqueio a Gaza e por solidariedade ao povo palestino.

Leia os trechos mais importantes da entrevista com Thiago Ávila:

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Opera Mundi: O que aconteceu na madrugada desta sexta-feira, você estava numa embarcação que acompanhava o navio atacado?

Thiago Ávila: A Flotilha da Liberdade existe desde 2008 para enfrentar um bloqueio ilegal que começou em 2017 contra o povo palestino em Gaza, que é fruto de uma invasão e ocupação militar desde 1967 e de um genocídio e limpeza ética de 78 anos contra o povo palestino.

Já tivemos 35 outras embarcações [Flotilha da Liberdade] e só duas haviam sido atacadas. A primeira em 2009, quando um barco da Marinha israelense bateu no nosso barco para afundar o barco, que precisou ser resgatado no Líbano e seis meses depois ele afundou. E em 2010, e aí sim, quando o ataque ao barco Mármora, fez com que os israelenses assassinassem 10 pessoas da Flotilha da Liberdade, e eles tomaram o barco.

Havia 15 anos que as Flotilhas da Liberdade não eram atacadas dessa forma. Aconteceram muitas vezes de ter interceptação, deles tomarem o controle dos barcos, sequestrarem as pessoas, levarem para o porto em Israel e depois deportarem essas pessoas para seus países de origem, aconteceu muitas vezes.

Também tiveram muitas outras missões em que fomos derrotados pela guerra burocrática, a partir da pressão do lobby sionista, tentando impedir que conseguisse seguros, autorização de porto para sair, certificado de bandeiras de outros países.

Dessa vez teve uma combinação da guerra burocrática com o ataque direto, quando eles viram que estavam perdendo a guerra burocrática. Nós íamos subir no barco quatro horas depois, então, eles bombardearam o barco. A delegação dentro do barco Conscience é de 12 tripulantes e 4 participantes e nós íamos chegar com quase 80 pessoas de mais de 20 países aqui de Malta para embarcar.

Eu sou organizador da Flotilha da Liberdade, sou parte do comitê da Organização e estávamos em Malta treinando as pessoas num processo de ação não violenta, com todas as táticas para evitar que Israel assassinasse os nossos participantes. É uma missão de altíssimo risco e enquanto nos preparávamos, aconteceu o ataque.

Como foi o ataque?

Ele aconteceu com dois drones que chegaram meia noite. O primeiro às 00h23, jogou uma bomba no casco na frente do navio, que abriu um buraco imenso porque era um explosivo muito potente; dois minutos depois, um outro drone jogou uma bomba no mesmo buraco para destruir todo o sistema elétrico do barco e afundá-lo.

Nós vimos o ataque e por um milagre ninguém morreu, porque começou o incêndio e as pessoas tentaram apagá-lo. Um incêndio em barcos é muito crítico. As pessoas tentaram apagar para se salvar. Aí, chegou um outro barco que estranhamente estava circulando o nosso algumas horas. Logo que teve o ataque, ele já estava lá.

Ele não perguntava se precisávamos de ajuda, mas dizia ‘vem para cá, abandona esse barco e vem para cá’. E as pessoas ‘não, a gente não vai abandonar a ajuda humanitária, não vamos abandonar para ele afundar. As pessoas estavam tentando apagar o fogo.

Esse barco de reboque, que estava do outro lado, tem sistema de combate de incêndio excelente. Ele bombeira água salgada e joga uma quantidade imensa de água em qualquer foco de incêndio, e apaga o incêndio.

Então, a nossa equipe do barco ficou pedindo, ‘apaga esse fogo, apaga esse fogo’, mas eles ficaram quase uma hora olhando o barco pegar fogo, e as pessoas tentando apagar o fogo, alguns tiveram inclusive ferimentos leves. Foi quase uma hora até que eles ligassem as mangueiras.

Depois que apagaram o fogo, às três horas da manhã, a única coisa que falaram foi ‘vem para o nosso barco, abandona esse barco’. Fica bem evidente que eles queriam esvaziar e tomar controle do barco que carrega medicamentos, alimentos e pessoas de vários países e de formas de atuar na vida e na solidariedade ao povo palestino. Eles queriam interromper a missão e nós sabemos que o estado sionista tem muitos cúmplices no mundo, infelizmente, entendemos que Malta é um deles.

O Conscience está lá, a 13 milhas náuticas da ilha de Malta, ilhado, sem conseguir entrar, porque estão proibidos de entrar; e sem conseguir ir até eles, porque ontem fomos na região onde está o barco e a Guarda Costeira veio com muita força e muita pressão para cima de nós.

Thiago Ávila detalha ataque contra Flotilha da Liberdade nesta sexta-feira (02/04)
Arquivo pessoal

Argumentamos que é uma questão de emergência, que as pessoas [em Gaza] precisam de comida, de água, e eles não aceitam. Eles só querem que as pessoas abandonem os barcos para tomar o controle e sabemos muito bem o que acontece.

Se alguma autoridade toma conta desse barco, ele nunca mais sai dali, e perdemos a oportunidade de levar alimento e medicamentos para Gaza que está há 59 dias sem entrar uma única garrafa de água ou um saco de farinha.

Temos ido ao barco frequentemente, mas a Guarda Costeira não nos deixa passar. Argumentamos, fazemos pressão e manifestação, a maioria das pessoas dos nossos participantes aqui já foram em manifestações na frente do escritório do primeiro-ministro para cobrar.

Até porque, de fato, interromper uma missão de ajuda humanitária em Gaza é ir contra as resoluções do Conselho de Segurança da ONU, da Corte Internacional de Justiça no processo aberto pela África do Sul contra Israel sobre o genocídio, em que um dos impedimentos é a chegada de ajuda humanitária ao povo palestino.

É ir contra as decisões do Tribunal Internacional, aberto por 620 advogados chilenos, pelo crime de genocídio e que diz que uma das principais características é o uso proposital da fome e da sede como método de extermínio e de limpeza étnica.

É isso o que estamos tentando denunciar. É por isso que existem as Flotilhas da Liberdade e que temos nos esforçado muito para conseguir vencer essas batalhas burocráticas e as ameaças e resistir aos ataques.

Nós estamos aqui em Malta pensando em como vamos garantir que a vida dos nossos irmãos e irmãs sejam preservadas e como vamos conseguir seguir nessa missão rumo à Gaza.

Apesar de o governo israelense não ter se pronunciado a respeito, acho que pelas evidências que você está contando, nós podemos cravar que Israel está participando deste ataque ou desse estratagema todo que vocês sofreram.

Sem dúvida nenhuma. Nós sabemos quem faz esses ataques. Teve uma aeronave Hercules passando na região e circulando o nosso barco durante o ataque. Esse tipo de aeronave consegue liberar drones. As bombas foram jogadas por dois drones que podem ter partido do Hércules de Israel, que estava circulando a região e que depois do ataque foi embora para Israel, nem voltou para Malta.

Também tiveram dois drones dos Estados Unidos e de Israel, que podem ter executado esse ataque. Nós sabemos muito bem quem costuma fazer isso. Evitamos falar categoricamente enquanto não são coisas que nós mesmos investigamos e temos confirmação, as investigações estão em andamento, mas mesmo que não fossem eles diretamente, a gente sabe que qualquer força, país, estado nacional, entidade que fizesse algo contra a nossa missão estaria a serviço dos sionistas, que querem impedir que  entre qualquer coisa em Gaza.

Nós não cravamos que os drones eram de Israel, mas sabemos que está a serviço de Israel.

Ano passado, nós fizemos um programa sobre a Flotilha, com a sua participação, e você nos contou sobre as dificuldades em fazer a ajuda humanitária chegar em Gaza. Alguma das missões da Flotilha conseguiu chegar ao enclave?

Desde 2008, as missões da Flotilha da Liberdade acontecem. Em 2008 eram cinco pequenos barcos que participavam dessas missões. Às vezes um mesmo barco ia e voltava, e o fato é que essas primeiras missões chegaram a Gaza, levando alimentos, medicamentos, doações, profissionais que faziam tratamento médico, faziam atividades políticas também, de mobilização, de denúncia do bloqueio, e então voltavam.

Depois da quinta (missão), os sionistas entenderam o quanto era ruim para eles que pessoas de fora descobrissem que eles estavam transformando Gaza numa prisão sem teto, num campo de concentração, e depois num campo de extermínio, e a partir de então Israel passou a impedir todas (as missões).

Então, desde 2009 nenhum barco chegou em Gaza. A gente tinha esperança de que desta vez seria diferente, mas infelizmente nós vamos ter que parar para consertar o barco. Por um milagre não morreu ninguém, mas nós tivemos que parar e ir para um porto seguro.

O governo de Malta não está facilitando esse processo, na verdade ele está dificultando muito. Hoje mesmo eu fui levado pela imigração e pela polícia (para interrogatório), porque a gente estava perto do barco, sendo que a gente estava levando comida para pessoas que estão sendo atacadas.

Enfim, a gente segue tentando ir para Gaza, sabendo que há dificuldades, mas na nossa avaliação, se a gente vai e é atacado, bloqueado, interceptado, o que for, mas depois a gente vai de novo, e insiste, uma hora dá certo.

É como no processo de libertação de outros países. A ação direta não violenta, que aconteceu na luta contra o apartheid na África do Sul, as ações diretas pelos direitos civis nos Estados Unidos, ou as ações diretas não violentas na independência da Índia, a gente sabe que esse tipo de ação demanda uma persistência. Depois da primeira ação de vanguarda vêm as seguintes, e as seguintes, e as seguintes, até que eles entendam que não é possível deter essa onda. É nisso que a gente aposta.

Já que os países do mundo falharam em deter o genocídio, nós estamos agindo para tentar garantir um corredor humanitário. Essa é a nossa tarefa, não foi possível desta vez, mas nós vamos seguir tentando.

Você falou que a Flotilha funciona desde 2008, mas como ela funciona? Além disso, e devido a que houve violência contra missões em anos anteriores, como vocês se organizam para lidar com situações como a que vocês viveram neste episódio do ataque dos drones?

É muito importante que nós lembremos que já aconteceram muitos ataques. Quando estamos numa missão como esta, nós imaginamos pelo menos quatro macro cenários: um deles é o de ficar com o barco preso no porto, como aconteceu em Istambul no ano passado (2024), algo que Opera Mundi cobriu também, quando nós tínhamos quase mil pessoas, de mais de 30 países, divididas em três barcos imensos, fruto de um processo de doação que envolveu mais de quatro milhões de pessoas, que doaram para a causa ao longo de um ano inteiro, e essa missão ficou presa no porto.

Outros dois macro cenários são os de encontrar com forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), ou com as forças de Israel. E o quarto macro cenário é o de chegar em Gaza.

Depois tem todas as variantes que esses quatro cenários trazem. A maioria das nossas missões são interceptadas por Israel, e esse processo de interceptação é super violento. Eles não têm valor nenhum pelos direitos humanos, agridem as pessoas, ameaçam, colocam as pessoas por horas em situações vexatórias e violadoras, como a gente tem visto acontecer tantas vezes em Gaza.

Então nós estávamos indo sabendo que essa era uma possibilidade, que o ataque era uma possibilidade, mas o que surpreendeu a gente é que esse ataque aconteceu muito cedo. A gente estava a mais de mil milhas de distância de Gaza, e nunca tinha acontecido um ataque tão distante. Já atacaram outras flotilhas quando elas estavam ali cerca de 50 milhas náuticas de Gaza, ou 100 milhas náuticas, desta vez eles realmente tentaram impedir a entrada dessa delegação.

Porque eles sabem que isso é muito ruim para eles, que eles estão sendo mal vistos no mundo inteiro, e que hoje em dia muita gente tem nojo do sionismo porque falar de sionismo é falar de racismo.

Qual é o futuro da Flotilha? Quais são os planos de vocês pros próximos dias?

O nosso plano agora é, sobretudo, tentar garantir a chegada segura e a assistência da nossa equipe que foi atacada. O governo de Malta tem criado muitos obstáculos, tem ameaçado bastante a nossa organização, e a gente tem feito o possível para tentar garantir a chegada segura da tripulação e dos passageiros daqui.

Sobre o barco, nós temos pensado em alternativas, como a de rebocá-lo para cá (Malta) ou para outro lugar, mas tudo isso depende da pressão que a gente vai fazer. Por isso, parte do nosso pessoal está na frente do escritório do primeiro-ministro de Malta (Robert Abela), para fazer essa pressão.

Então, teremos alguns dias de pressão, até chegar a uma resolução para a nossa situação. O barco do jeito que está precisa ser reparado, os danos são grandes demais para aguentar uma viagem até Gaza.

A Flotilha certamente irá atrasar. O problema é: quanto tempo o povo palestino aguenta esperar? Todos os dias morrem pessoas de fome lá, então, a gente tem que ter esse senso de urgência. Precisamos fazer o nosso melhor, com os recursos que temos, e tentar ter resultados extraordinários com isso, mesmo que aumente muito os riscos, mas também pensando no impacto disso que a gente pode fazer em solidariedade ao povo palestino, a gente aceita (os riscos).