“É preciso que o mundo olhe nos olhos de Israel como os palestinos estão olhando”, afirmou Samah Jabr, psiquiatra e psicoterapeuta palestina que nasceu e vive em Jerusalém Oriental e esteve no Brasil para lançar livro e exibir documentário sobre a realidade palestina.
Ela usa essa imagem enquanto descreve relatos de pacientes e colegas profissionais de saúde sobre as torturas físicas e psicológicas a que estão submetidos no massacre promovido por Israel na Faixa de Gaza. “Os israelenses deixam os presos nus e sujos para que internalizem um sentimento de inferioridade. Mantêm seus olhos vendados, não apenas para que fiquem desorientados, mas também porque não conseguem tolerar o olhar fixo que os palestinos costumam lhes endereçar”, disse durante coletiva em São Paulo na última quinta-feira (27/06).
Segundo defende Jabr, a tortura é elemento central na estratégia genocida do governo israelense. Ela coleciona histórias que ilustram a completa destruição do sistema de saúde de Gaza por Israel, com destruição de hospitais e ambulâncias, bloqueio do envio de medicamentos, prisão e tortura de médicos e outros profissionais de saúde.
“O diretor de um dos hospitais destruídos teve as pernas quebradas, foi forçado a ficar completamente nu na frente de todos, inclusive de pacientes e a engatinhar para se alimentar, sem nenhum acesso à higiene básica. Eles são alvos porque são muito estimados pela sociedade palestina”, afirmou.
Um médico palestino descreveu a Jabr que, ao receber pacientes em crise psiquiátrica, foi para os escombros do hospital para procurar medicação.
A fome e o estupro são, de acordo com a psiquiatra, outros ferramentas constitutivas da violência política e da necropolítica promovidas pelo governo israelense: “a fome não é uma meta apenas física, mas para destruir o tecido social palestino. Autoridades israelenses disseram publicamente que precisa haver fome para que Israel consiga informantes e espiões palestinos mais facilmente”.
Algo parecido acontece em relação à violência sexual: “temos provas de que Israel usa o estupro como política contra as mulheres palestinas. Isso já foi dito por figuras públicas israelenses. Disseram que não conseguirão vencer os palestinos se não estuprarem meninas e mulheres palestinas”.
Produção do trauma
Em sua experiência clínica, Jabr diz testemunhar o aumento da incidência de depressão pós-parto e distúrbios alimentares, por exemplo.
Pacientes relatam distúrbios de alimentação, não por questões de autoimagem, mas por um sentimento de culpa na hora de se alimentar. Ela própria vive isso pessoalmente e passou a plantar a própria comida: “ao ver as cenas de Israel impondo a fome, a pessoa pensa que cada semente que planta é um ato de autodefesa, de autoafirmação”. A depressão pós-parto severa acontece pelo sentimento de culpa por trazer alguém ao mundo num contexto de insegurança e terror.
De modo geral, a violência política é, na opinião de Jabr, um problema de saúde pública. Ela estabelece um paralelo entre a situação vivida pelos palestinos à pandemia de quatro anos atrás: “Na covid-19, para além de tratar os pacientes, precisou haver muita educação e conscientização pública sobre o que estava acontecendo. Agora vemos a violência política produzir mortes, ferimentos físicos e danos psicológicos permanentes, afetar a saúde mental e provocar um sentimento de isolamento nos palestinos. Tudo isso também vai dizer respeito aos profissionais de saúde”.
Jabr vê semelhanças entre as realidades palestina e brasileira e cita o pedagogo Paulo Freire como fonte de inspiração. “Antes de me tornar psiquiatra, encontrei na estante de meu pai o livro Pedagogia do Oprimido, que passei a utilizar com estudantes quando me tornei profissional. Alguns conceitos de Paulo Freire são muito importantes para pensar a experiência palestina, como a internalização da opressão ou a questão da libertação pelo trabalho”, explicou.
A produção do trauma, de acordo com Jabr, é método para que a máquina de guerra produza desesperança na população palestina. Ao mesmo tempo, não se tem um cenário de estresse pós-traumático, porque o pós é uma circunstância que nunca chega. Muitos palestinos ainda não conseguem nem sequer falar sobre o que estão atravessando.
“A violência política entra no espaço privado, entra na casa das pessoas, faz prisioneiros. Toda família e toda dona de casa palestina tem alguém que foi exposto a tortura física e psicológica. O sistema de saúde pública precisa entender que as pessoas não estão doentes, mas feridas, em sofrimento. Precisaremos repensar a cultura de medicalização”, disse.
Atendendo em clínica e online, Jabr mantém uma maioria de pacientes oriundos de Jerusalém e Cisjordânia, palestinos da diáspora e pessoas da comunidade árabe, mas também alguns palestinos de Gaza. “Tenho três pacientes judeus, que vieram por indicação de palestinos. As consultas são online, porque eles não se sentem seguros para vir pessoalmente”, contou.
Saúde mental dos palestinos
De acordo com a psiquiatra, o sentimento palestino predominante em relação à mídia hegemônica mundial é de que ela atua como cúmplice do genocídio e deveria ser submetida à Corte Internacional de Justiça. “A decepção dos palestinos com a mídia hegemônica, não apenas, mas majoritariamente ocidental, já era grande antes, mas agora é ainda maior. A imprensa mundial contribui com o genocídio difundindo notícias falsas, criando falsos paralelos entre o 11 de setembro e o 7 de outubro, ignorando quase um século de política das potências ocidentais contra os palestinos.”
Também chefe da unidade de saúde mental que supervisiona todas as atividades na área na Cisjordânia, Jabr escreve desde 2000 sobre as consequências traumáticas da ocupação israelense sobre a saúde mental dos palestinos. Parte desses escritos foi reunida no livro Sumud em Tempos de Genocídio (editora Tabla), sendo “sumud” uma palavra cunhada por palestinos para expressar a própria essência desse povo.
No contexto do Primeiro Congresso Brasileiro de Psicologia e Migração, foi exibido também o filme Por Trás dos Fronts: resistências e resiliências na Palestina, da francesa Alexandra Dols, no qual Jabr é a principal entrevistada.
Sua busca, no Brasil, passa por tentar universalizar o trauma palestino e a gravidade do massacre israelense, para mais pessoas e povos. “O que está acontecendo não diz respeito apenas ao povo palestino, mas à humanidade. O genocídio em curso mostra uma crise humanitária, uma ruptura do contrato social, com os direitos humanos. A experiência é dos palestinos, mas as lições são universais. Tenho a convicção de que a causa palestina é justa, e a defenderia mesmo se eu não fosse palestina. É um exemplo profundo de algo que deve ser defendido não apenas por direitos humanos, mas por obrigação moral”, conclui.