A guerra da Ucrânia começa a se aproximar do território russo. Pelo menos é o que indica a série de drones caídos – ou derrubados – dentro das fronteiras da Rússia na última semana. Em particular, a inédita incursão de um grupo armado da Ucrânia na região de Bryansk na quinta-feira (02/03) fez o Kremlin ligar o alerta e subir o tom em relação às ações ucranianas.
Na terça-feira (28/02), foram relatados ataques de drones em uma série de regiões russas, inclusive perto da capital Moscou. Não houve vítimas. O espaço aéreo em São Petersburgo chegou a ser fechado por algumas horas. No dia seguinte, o Ministério da Defesa russo comunicou que impediu uma tentativa de um “ataque maciço de drones” da Ucrânia na península da Crimeia, anexada pela Rússia desde 2014.
Já nesta quinta-feira (02/03), o Kremlin relatou uma incursão de um grupo de “sabotagem e reconhecimento” da Ucrânia na região russa de Bryansk, que teria disparado contra civis e matado duas pessoas e feito outras de reféns. O presidente russo, Vladimir Putin, chamou o incidente de “ato terrorista”.
Já o gabinete presidencial da Ucrânia repetidamente afirmou que não realiza ações militares no território russo e negou envolvimento no incidente em Bryansk, classificando o ocorrido como uma “provocação clássica”.
A ação do grupo armado foi reivindicada pelo grupo “Corpo de Voluntários da Rússia”, formado por russos que lutam na guerra ao lado da Ucrânia e que se autodenomina parte das Forças Armadas da Ucrânia. O grupo é classificado oficialmente pela Federação Russa como uma organização terrorista.
A despeito da disputa de narrativas e falta de clareza sobre o comando do incidente em Bryansk – seja provocação russa, seja contraofensiva ucraniana –, o fato é que a retórica do Kremlin de que há morte de civis e incursão armada ucraniana em território russo abre um precedente e pode justificar uma radicalização da guerra.
Vale lembrar que a doutrina militar russa prevê que uma ameaça ao Estado russo pode justificar o uso de armas nucleares. Nesta quinta-feira, Putin chegou a cancelar uma viagem de trabalho que estava planejada e há uma expectativa, segundo fontes do Kremlin, que na sexta-feira (03/03) seja realizada uma reunião de caráter emergencial no Conselho de Segurança da Rússia.
“Essa violência, esse verdadeiro crime foi realizado por neonazistas de quem falei e seus patrões. Tenho certeza de que esses mesmos patrões não vão se lembrar do crime de hoje, ninguém vai prestar atenção. Vou repetir novamente: eles não vão conseguir nada. Vamos esmagá-los”, disse Putin, ao comentar o incidente em Bryansk, sem especificar a quem estava se referindo.
O tom de ameaça e de provocações pode alterar o status quo do conflito entre Rússia e Ucrânia, que se arrasta com grande desgaste de tropas e recursos para ambas as partes e sem grandes alterações na linha de frente. Para o diretor do Instituto Ucraniano de Política, Ruslan Bortnik, Moscou e Kiev se encontram em um “beco sem saída” no campo militar. Por isso, novas provocações podem escalar o conflito.
“A própria guerra, paradoxalmente, entrou em uma fase de crise. A guerra como um instrumento político, como uma forma de alcançar objetivos estratégicos, atualmente não se justifica, porque as partes chegaram a um beco sem saída, chegaram a um determinado equilíbrio militar, no qual uma vitória rápida ou uma vitória final por alguma das partes hoje não é possível” diz Bortnik ao Brasil de Fato.
O analista também destaca os custos materiais do conflito para a Ucrânia são muito maiores, considerando que é o local onde se concentram todas as ações militares. Por isso, segundo ele, com o apoio dos aliados ocidentais, a tendência é que a Ucrânia busque cada vez mais transferir o custo das ações militares da guerra para o território da Rússia.
“Com o objetivo de desestabilizar a situação interna da Rússia e com o objetivo de aumentar os custos da Rússia, a Ucrânia vai buscar transferir a guerra, pelo menos a guerra aérea, para o território da Rússia para aumentar o custo desta guerra para a sociedade russa e para a liderança russa”, analisa o cientista político.
Propaganda russa reverbera narrativa de radicalização
O tom de acirramento do Kremlin surtiu efeito imediato no meio intelectual que possui ampla presença na mídia defendendo o governo e a operação militar na Ucrânia. Nos círculos de oposição e mídia independente, jornalistas, cientistas políticos e especialistas militares alinhados – permanentemente – à narrativa do governo russo são chamados de “propagandistas”. Algumas declarações públicas de notórios “propagandistas” ilustram a retórica a ser impulsionada na Rússia em relação à Ucrânia.
Ministério da Defesa da Ucrânia
Guerra da Ucrânia começa a se aproximar do território russo
O cientista político Ivan Mezyukho reverberou a fala de Putin de que a autoria do incidente em Bryansk teria sido de neonazistas, se referendo às ações ucranianas.
“Quem mais duvidou que nosso país está lutando contra a escória e neonazistas? De que outra forma chamar esses bastardos que organizaram uma sabotagem com a tomada de reféns na região de Bryansk?”, afirmou nas redes sociais. “Não tenho dúvidas de que nossas Forças Armadas logo iniciarão a implementação da operação de retaliação. Isso não ficará sem resposta.”
Já o especialista militar e editor-chefe da revista “Defesa Nacional”, Igor Korotchenko, em entrevista ao canal Ridus, afirmou que na Rússia é necessário um departamento especial de contraespionagem análogo ao serviço da União Soviética que era diretamente subordinado a Joseph Stalin.
Ele disse acreditar o mecanismo deve funcionar na Rússia com novos princípios, como um dos componentes de poder da Agência de Segurança da Rússia (FSB) “para combater e destruir redes de sabotagem ucranianas e agentes ucranianos no território fronteiriço da Federação Russa”.
Ele chegou a afirmar que é necessário introduzir a pena de morte para sabotagem e atividades terroristas: “Não temos mais obrigações com a Europa, portanto, pelo menos a pena de morte para terroristas ucranianos deve ser implementada na íntegra”.
Transnístria: potencial expansão da guerra?
Não é somente na fronteira russa que há um acirramento dos ânimos. O diretor do Instituto Ucraniano de Política, Ruslan Bortnik, afirma que o fato de que a guerra na Ucrânia passa por um “período de crise”, ou seja, que não é possível alcançar objetivos políticos através de ações militares, faz com que permaneça “o grande risco da guerra escalar e transbordar para outros países, outras regiões”. Um dos principais pontos de tensão nesse sentido é a região da Transnístria, na Moldávia.
A Moldávia é uma ex-república soviética de 2 milhões e meio de habitantes, localizada entre a Ucrânia e a Romênia, e que pleiteia uma vaga na União Europeia. A Transnístria é uma região separatista pró-Rússia dentro do país, onde há um grupo operacional de tropas russas, implantado no território desde o colapso da União Soviética.
Durante a última semana, Moscou acusou o Ocidente de planejar provocações após registrar o aumento de equipamentos militares perto da fronteira ucraniana da Transnístria. Já o Instituto Americano de Estudo da Guerra acredita que o Kremlin está preparando operações de “falsa bandeira” para culpar o Ocidente.
Bortnik aponta que a situação em torno da Transnístria hoje soa mais perigosa, pois possui um contingente pequeno de militares russos de cerca de dois batalhões de tropas. Ele destaca que os militares russos fazem a segurança da reserva de armamento soviético, que tem um volume de pelo menos 20 mil toneladas, com calibres de munição que seriam muito importantes hoje para Ucrânia.
“Eu acredito que a situação na Transnítria pode ser usada pela Ucrânia como um instrumento de pressão sobre a Rússia. Se a Rússia continuar a sua ofensiva em Donbass, a Ucrânia poderia realizar sua operação militar na Transnítria, causando uma derrota militar às forças russas e pró-russas, conseguindo acesso às munições. Assim pode ser continuado esse jogo, essa guerra geográfica”, completa.