A operação das forças ucranianas na região de Kursk, no território russo, chega a mais de 10 dias de duração, configurando a maior incursão militar de um exército regular dentro da Rússia desde a Segunda Guerra Mundial. Moscou admite avanços de Kiev, mas minimiza estragos e alega ter freado a intervenção. No entanto, os desdobramentos desta investida sem precedentes da Ucrânia em solo russo ainda são imprevisíveis e impõem um inédito cálculo de riscos para ambos os países.
Incursões pontuais da Ucrânia em cidades fronteiriças com a Rússia, sobretudo na região de Belgorod, não são novidade nesta guerra. Houve uma série de ataques deste tipo em 2023 e no começo de 2024, realizados por grupos paramilitares pró-Ucrânia, mas nunca em uma escala tão massiva e, acima de tudo, nunca com a reivindicação de assumir o controle de cidades em território russo.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o analista sênior do International Crisis Group para a Rússia, Oleg Ignatov, explica que essas incursões anteriores eram provocadas pela falta de controle em toda a extensão da fronteira russo-ucraniana, mas não representavam ambição de estabelecer controle.
“A Ucrânia fez incursões utilizando brigadas móveis, que entravam para dentro do território russo por 30, 40 quilômetros, eles surgiam e saiam, voltavam, sumiam ou recuavam, ou seja, havia uma movimentação constante dessas brigadas móveis, mas não se falava que os ucranianos estavam controlando este território, isso dizia mais respeito ao fato de que os ucranianos podiam circular livremente pela fronteira e os russos não podiam evitar”, diz o analista.
De acordo com as últimas informações, os confrontos entre as forças russas e ucranianas na região de Kursk continuam intensos durante este fim de semana, mas foi na última quinta-feira (15/08) que o lado ucraniano quantificou pela última vez o avanço. O chefe das Forças Armadas da Ucrânia, Alexander Syrsky, anunciou o estabelecimento da primeira administração militar no território controlado da região de Kursk e o controle sobre 82 assentamentos dentro da fronteira russa.
“Desde o início do dia, nossas tropas avançaram de 500 metros para 1,5 quilômetro de profundidade em algumas áreas, repeliram três contra-ataques inimigos e continuam conduzindo operações ofensivas. As tropas avançaram 35 quilômetros de profundidade. Assumimos o controle de 1.150 quilômetros quadrados de território e 82 assentamentos”, afirmou em Syrsky em um briefing ao presidente Volodymyr Zelensky.
A Rússia contesta esses números. O país admitiu que a Ucrânia assumiu controle de alguns assentamentos, mas desenhou uma estimativa muito menor do que os números apresentados pela Ucrânia. No começo da semana, o governador da região de Kursk declarou que “28 assentamentos ficaram sob controle inimigo”. A região russa de Belgorod, que também sofre com constantes ataques ucranianos, declarou estado de emergência. Ao mesmo tempo, as Forças Armadas da Rússia anunciaram a retomada do controle de dois assentamentos.
No início da semana, em reunião com a cúpula de defesa para tratar da situação nas regiões fronteiriças, o presidente russo, Vladimir Putin, exigiu que os militares russos “espremessem e expulsassem o inimigo” dos territórios russos e garantissem a cobertura da fronteira estatal.
Anteriormente, logo após o início da incursão, Putin havia afirmado que o objetivo do ataque por parte de Kiev é tentar melhorar as posições de negociação no futuro, interromper a ofensiva das tropas russas em Donbass e desestabilizar a situação política interna na própria Rússia. O presidente russo ainda declarou que “o inimigo receberá uma resposta digna e todos os objetivos que a Rússia enfrenta serão alcançados”.
Nesta sexta-feira (16/08), o conselheiro do presidente Volodymyr Zelensky, Mikhail Podolyak, afirmou que a Ucrânia quer “persuadir” a Rússia a iniciar negociações “justas”. Segundo ele, na região de Kursk “a ferramenta militar é usada objetivamente para persuadir a Rússia a entrar em um processo de negociações justas”.
O cientista político Oleg Ignatov afirma que, apesar dos avanços militares, a incursão impõe riscos à Ucrânia. Segundo ele, no atual momento há uma certa estabilização dos avanços ucranianos por parte da Rússia e que uma nova linha de frente de batalha está em processo de formação na região de Kursk. Entretanto, o analista ressaltou que os desdobramentos desta operação permanecem são muito imprevisíveis.
“Ainda é cedo para falar sobre o que está acontecendo, nós não sabemos o fim desta história. Há possibilidade para a Ucrânia ampliar [a incursão], mas ao mesmo tempo isto está ligado a riscos muito grandes. No começo da operação vimos que o exército ucraniano pegou a Rússia de surpresa, eles com certeza não esperavam um ataque tão massivo sobre o território russo. Mas os futuros riscos de uma ampliação dessa operação é que a Rússia está atraindo reservas e a Rússia tem uma vantagem esmagadora no ar [força aérea], que vem utilizando ativamente para a destruição do exército ucraniano nesta parte do front, por isso a ampliação pode levar a grandes perdas”, argumenta.
De acordo com as últimas informações do Ministério da Defesa russo, a invasão das Forças Armadas Ucranianas vem sendo repelida com aviação, drones e artilharia. A pasta informou que o lado ucraniano perdeu até 2.640 militares desde o início da operação em Kursk e uma grande quantidade de equipamento militar, incluindo tanques, veículos blindados, e sistemas de lançamento de foguetes, foi destruída.
“No que diz respeito à Rússia, me parece que por enquanto eles estão lidando com a situação de forma calma. Sim, é uma crise muito séria para a Rússia, mas é uma crise ainda em uma zona tática, que não gera consequências de caráter estratégico. As fronteiras dessa crise ainda são muito locais e eles esperam que em algum tempo eles consigam retirar as tropas ucranianas do território russo com grandes perdas”, afirmou.
A atual crise na região de Kursk impõe um dilema à Rússia. Ao mesmo tempo que o país precisa tomar medidas emergenciais para resolver o problema nas regiões fronteiriças com a Ucrânia, que sofrem com intensos confrontos e evacuações civis, Moscou não pode deslocar grande parte do seu poder de fogo para a região de Kursk, esticando ainda mais a linha de frente e dispersando os seus efetivos. Isso poderia prejudicar a ofensiva que está em curso na região de Donbass, no leste da Ucrânia, paralisando os avanços bem sucedidos que Moscou vem tendo nesta direção desde o final de 2023.
“Putin não pode permitir a desaceleração da pressão sobre Donbass. Ou seja, ele não pode levar a situação a um ponto em que a ofensiva da Rússia em Donbass paralise. Se a ofensiva russa em Donbass parar e a Ucrânia conseguir alguma pausa, que seja um mês ou dois, taticamente isso pode representar um ganho para Ucrânia, mas, novamente, não sabemos os recursos que a Ucrânia vai gastar para isso, quais perdas a Ucrânia terá, e quais perdas terá a Rússia. Considerando que é uma guerra por esgotamento, é muito difícil de tirar essas conclusões”, explica. Oleg Ignatov.
De acordo com o cientista político, a surpreendente iniciativa ucraniana de realizar uma operação desta magnitude dentro do território russo está intrinsecamente ligada aos problemas que Kiev vem enfrentando em outras frentes da guerra. Segundo ele, “o principal objetivo dos ucranianos é alterar o rumo da guerra”.
“Se olharmos para o que está acontecendo, o exército russo continua a sua ofensiva mais ou menos desde novembro de 2023. Essa ofensiva é lenta, mas é gradual. Os russos gradualmente foram pressionando os ucranianos dos seus territórios, acima de tudo em Donbass, atacando lentamente, mas estavam atacando, e a ajuda americana não mudou essa dinâmica, ou seja, não houve qualquer mudança”, analisa.
De acordo com o pesquisador, os dilemas e cálculos de risco tanto para a Rússia quanto para a Ucrânia estão relacionados com o perfil de guerra por esgotamento que se instaurou entre os dois países. Ignatov ressalta que a Ucrânia observa, a partir de todas as evidências, que “essa guerra por esgotamento não segue a favor da Ucrânia”.
“Ao mesmo tempo, se a Rússia conseguir estabilizar a situação nesta parte do front, os ucranianos podem tentar ampliar o front, por exemplo, atacando as regiões de Briansk e Belgorod, porque as fronteiras não estão fechadas, existem vários furos, a questão está mais na vontade política. Se isso vai acontecer, se a Ucrânia vai fazer isso, nós não sabemos”, completa.