Na última sexta-feira, a agência de notícias RT divulgou a transcrição de uma gravação em que oficiais alemães, incluindo um alto comandante da Força Aérea, discutiam a respeito de um ataque à Ponte da Crimeia; portanto, à infraestrutura russa. Uma porta-voz do Ministério da Defesa da Alemanha confirmou a veracidade da gravação.
A descoberta pela Rússia de que oficiais alemães estavam discutindo meios e modos para um ataque ao seu território intensifica o distanciamento entre os dois países, tendo o ex-presidente Dmitri Medvedev afirmado que o episódio não deixa dúvidas de que Berlim esteja se preparando para um conflito militar direto com Moscou.
Não por acaso, há algumas semanas, o general Carsten Breuer defendeu uma mudança de mentalidade na Alemanha e a necessidade de se preparar para uma potencial guerra com a Rússia dentro de cinco anos, mesmo que o Kremlin não dê qualquer sinal de que esteja interessado nesse tipo de conflito. A posição alemã desde o início da guerra na Ucrânia e esse tipo de declaração parecem ainda mais despropositadas se relembramos um passado não tão distante. Basta lembrar quando Angela Merkel, em discurso ao parlamento alemão em 2016, afirmou que a segurança da Europa não podia ser pensada sem a Rússia. De certo, a ex-chanceler estava pensando também na dimensão estratégica das relações com Moscou e na dependência alemã do gás barato russo.
Até a explosão da violência no território da Ucrânia em fevereiro de 2022, a Rússia era a maior fornecedora de gás natural para a Alemanha, sobretudo através do Nord Stream I, alvo de uma sabotagem da Marinha dos Estados Unidos em setembro do mesmo ano, como apurou o premiado jornalista Seymour Hersh. Com as sanções impostas após a invasão russa, o gasoduto diminuiu suas operações em 75% até ser fechado para manutenção em agosto de 2022. E o Nord Stream II, também afetado pelas explosões e previsto para entrar em operação no final de 2021, jamais enviou gás russo para a Alemanha.
Diante da interrupção do fornecimento do gás russo, a Alemanha se viu na necessidade de construir uma infraestrutura para receber gás GNL advindo, sobretudo, dos Estados Unidos. Uma alternativa muito mais cara e com consequências para todo o conjunto da economia alemã.
Dias antes, foi a vez da França, mesmo sem o respaldo de seus pares, ensaiar uma provocação à Rússia. Em um pronunciamento, o presidente Emmanuel Macron aventou a hipótese de envio de tropas dos membros da OTAN para o combater na Ucrânia.
Dada a escalada de violência que isso poderia gerar no curtíssimo prazo, o desgaste político interno e a ameaça real de uso de armas nucleares pela Rússia, o chanceler alemão Olaf Scholz e o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, correram para classificar a ideia do presidente francês como improvável.
O fato é que esses dois episódios, distintos e mal sucedidos, mostram que muito pouco ou quase nada mudou na mentalidade da França e da Alemanha sobre a qualidade das relações com a Rússia. A retórica, mesmo sem substância, é de confrontação com Moscou.
Os dois países podem estar colocando em seus cálculos a possível mudança de agenda dos Estados Unidos e projetando um cenário em que o financiamento da Ucrânia seja ainda mais prejudicado ou mesmo interrompido caso Donald Trump vença as eleições de novembro. A realidade imposta seria de afrouxamento das garantias de segurança norte-americanas. Diante desse quadro, o caminho mais acertado não seria ao menos a tentativa de criar um ambiente de negociação com a Rússia? Não parece o caso.
Com dois anos de guerra, a Rússia está em uma posição muito mais confortável no campo de batalha, onde não somente conquistou territórios, mas conseguiu manter seu avanço, ao passo que a contraofensiva ucraniana deflagrada no início de junho do ano passado não trouxe resultados. Em 2023, a Rússia cresceu 3,6%, mais que os Estados Unidos e os países da zona do euro. Além disso, o Fundo Monetário Internacional revisou a previsão de crescimento do país para este ano de 1,5 para 2,6%. Os números revelam o fracasso das sanções ocidentais.
Embora grande parte do financiamento enviado à Ucrânia parta dos Estados Unidos, é inegável que foi a Europa quem pagou o maior preço econômico pelo conflito deflagrado em território ucraniano, provando que sua falta de autonomia estratégica custa dinheiro.
E o que diz a Rússia?
A Rússia afirma estar pronta para uma saída negociada da guerra, mas os franceses e alemães parecem estar surdos e presos à armadilha da tese do revanchismo russo. Ignoram, de forma bastante conveniente, suas participações na estratégia norte-americana de contenção da Rússia e expansão da OTAN em direção às suas fronteiras.
(*) Rose Martins é analista internacional e pesquisadora, formada em Relações internacionais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e mestra em Economia Política Internacional