Lembrança do genocídio armênio no Líbano deixa palestinos de fora
Sectarismo no Líbano mantém armênios e palestinos apartados na luta por memória e justiça
Na véspera desta quinta‑feira (24/04), centenas de integrantes da diáspora armênia no Líbano ocuparam a Praça dos Mártires, no coração de Beirute, para recordar os 110 anos do genocídio armênio, que vitimou cerca de 1,5 milhão de pessoas.
A escolha do local é carregada de significado: o monumento central da praça presta homenagem a nacionalistas libaneses executados em 1916 pelo Império Otomano – o mesmo regime responsável pelo extermínio do povo armênio. O local se consolidou como palco de mobilizações populares, como os protestos de 2019.
Armênios e Palestinos: diásporas apartadas pelo sectarismo no Líbano
Apesar do clamor em homenagem às vítimas e das bandeiras armênias que tremulavam em tributo, nenhuma bandeira ou outra menção à Palestina estava presente no ato. Esse vazio parece indicar que, embora armênios e palestinos compartilhem histórias de opressão e façam parte do mosaico de diásporas no Líbano, suas reivindicações pela preservação da memória coletiva e por justiça internacional continuam isoladas.
Durante o ato, Lori Houvsepian, de 17 anos e quarta geração de armênios no Líbano, expressou sua frustração: “falam muito de Gaza – e com razão -, mas esquecem que nosso povo também foi massacrado e ainda vive sob trauma.”
Outro participante foi além, insinuando que o Império Turco‑Otomano teria poupado os judeus, apenas para que, décadas depois, o Estado de Israel adotasse políticas que resultaram na tragédia palestina. O forte sectarismo que estrutura o Líbano – visível nos templos de diferentes confissões que cercam a Praça dos Mártires – parece inibir expressões de solidariedade entre esses povos oprimidos, vítimas de genocídio passado e presente.
No espectro político libanês, a comunidade armênia – cerca de 150 mil pessoas, ou 4% da população – integra o bloco cristão, historicamente alinhado com forças ocidentais como a França. Já os palestinos, estimados em 220 mil no país, são majoritariamente muçulmanos sunitas.
Durante a guerra civil libanesa (1975–1990), a presença da Organização pela Libertação da Palestina de Yasser Arafat no Líbano polarizou essas comunidades: a maioria islâmica apoiou a resistência palestina, enquanto a maioria cristã a ela se opôs. Após a invasão israelense ao Líbano em 1982, o Hezbollah se consolidou como grupo armado xiita de resistência e assumiu a defesa da causa palestina no sul do Líbano e nos subúrbios de Beirute.

De Beirute à Gaza, órfãos dos genocídios
O historiador canadense-armênio Razmik Panossian relata que, após o genocídio de 1915–1916, os armênios refugiados foram recebidos no Líbano sob o mandato francês pois eram vistos como aliados naturais de Paris: cristãos e “vítimas do Islã otomano”.
Um desses refugiados era o avô de Haroutioun Tenbeliei, atual dono da loja de temperos Tenbelians, negócio familiar de três gerações em Bourj Hammoud, bairro de maioria armênia em Beirute. Ali, vielas estreitas ladeadas por placas bilíngues – em árabe e em armênio, idioma que possui alfabeto próprio – sinalizam que a identidade da diáspora armênia segue viva no Líbano.
Entre montes de frutas secas, grãos e especiarias, o libanês-armênio relatou à reportagem de Opera Mundi que seu avô se tornou órfão em consequência direta do genocídio, tendo passado a infância no orfanato armênio de Jbeil (Biblos), fundado em 1920 na vila costeira a cerca de 35 quilômetros ao norte de Beirute. Cerca de 1.500 crianças armênias órfãs encontraram abrigo no mesmo local, que hoje é um museu aberto à visitação.
“Meu avô começou como sapateiro e alfaiate. Caminhava de Jbeil até Beirute para trabalhar. Antes de abrir esta loja, vendia temperos em casa”, contou Haroutioun a Opera Mundi. “Tenho 32 anos, mas passei 33 da minha vida aqui. Desde que estava na barriga da minha mãe, pertenço a este lugar. Continuar esse legado é, para mim, a verdadeira definição de sucesso”.
O destino do avô de Haroutioun ressoa no presente de Gaza: desde o início da ofensiva israelense em outubro de 2023, cerca de 39 mil crianças palestinas perderam um ou ambos os pais, tornando-se também órfãs de um conflito que segue ceifando gerações.

Memória histórica do genocídio armênio possibilita responsabilização internacional pelo genocídio em Gaza
Para Paulo Borba Casella, professor titular de Direito Internacional e coorganizador do Fórum permanente sobre genocídio e crimes contra a humanidade da USP, os genocídios armênio e palestino carregam semelhanças notáveis: ambos foram marcados por políticas estatais de aniquilação, “feridas incuráveis” que reforçam a importância de seguir falando sobre esses crimes. “O reconhecimento jurídico internacional do genocídio armênio possibilita que hoje, o caso de Gaza seja levado à Corte Internacional de Justiça e ao Tribunal Penal Internacional”, afirma o professor.
Em janeiro de 2024, a Corte Internacional de Justiça (CIJ), órgão judiciário das Nações Unidas, decidiu que há elementos suficientes para que o Estado de Israel seja julgado por possíveis violações à Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, adotada pela ONU em 1948.
Paralelamente a esse processo, no âmbito do Tribunal Penal Internacional (TPI), foram emitidos, em novembro de 2024, mandados de prisão contra o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e o ex-ministro da Defesa Yoav Galant. Os mandados têm como base a suspeita de responsabilidade criminal individual por crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos durante a condução das operações israelenses em Gaza.
Casella explica que, embora esses procedimentos ocorram em esferas distintas – a CIJ julgando a responsabilidade estatal e o TPI atuando contra indivíduos – ambos se fundamentam na tipificação do crime de genocídio no direito internacional. Essa tipificação define genocídio como atos deliberados, praticados com a intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.
Segundo o professor, foi a memória coletiva de eventos como o genocídio armênio que impulsionou a criação de mecanismos jurídicos internacionais – a Convenção de 1948 e, mais tarde, o Estatuto de Roma que estabeleceu o TPI – tornando possível, hoje, responsabilizar Estado e indivíduos israelenses pelo genocídio em Gaza.
