Ataque suicida em Damasco expõe corredor jihadista entre Curdistão Sírio e Líbano
Atentado à Igreja de Mar Elias em Damasco revela articulação jihadista transfronteiriça, acirrando disputas políticas e aprofundando a fragilidade da segurança regional
O ataque suicida de 22 de junho na Igreja Ortodoxa de Mar Elias, em Damasco — que deixou ao menos 25 mortos e 63 feridos — evidencia um complexo tabuleiro geopolítico no território que vai das áreas controladas pelos curdos no nordeste da Síria ao Líbano, reforçando a ideia de consolidação de um corredor jihadista entre as regiões.
O episódio marcou o primeiro do tipo na capital síria desde a queda de Bashar Al Assad e a ascensão do governo de Ahmad al-Sharaa, em dezembro de 2024, e o maior ataque contra a comunidade cristã síria desde 1860.
Para além das tensões históricas entre a administração autônoma curda e o novo governo central, o atentado expõe uma nova camada do enfraquecimento das garantias de proteção às minorias religiosas no atual cenário de transição política sírio — agora agravado pela rearticulação de redes jihadistas transfronteiriças.
Logo após o atentado, as autoridades do governo sírio se manifestaram, atrelando a autoria do ataque ao Estado Islâmico, ainda que o grupo não tivesse se pronunciado.
Na terça-feira, 24 de junho, no entanto, o grupo jihadista Saraya Ansar al-Sunna — SAS, ou Brigada dos Partidários dos Sunitas — reivindicou a responsabilidade pelo ataque. Em comunicado oficial, o grupo apontou um de seus membros, Muhammad Zain al-Abidin Abu Uthman, como o responsável pela explosão suicida.
Saraya Ansar al-Sunna
O Saraya Ansar al-Sunna anunciou sua criação no final de janeiro de 2025, através de um grupo no aplicativo telegram, justificando seu surgimento como resposta à “excessiva complacência” do atual governo interino sírio em “perdoar antigos membros do regime de Bashar al-Assad”. O grupo mantém uma retórica abertamente violenta contra minorias sírias — em especial cristãos, alauítas e xiitas — e reivindica participação em massacres contra a comunidade alauíta ocorridos em março de 2025, no noroeste da Síria.

Giovanna Vial / Opera Mundi
Ainda não existem informações claras sobre a origem do SAS. Especialistas apontam que, pelo perfil do grupo, este pode estar de fato conectado ao Estado Islâmico ou até ter surgido como um braço dissidente e radicalizado do Hayat-Tahir Al Sham (HTS), que por sua vez encabeçou a derrubada de Assad. O próprio HTS é um grupo anteriormente ligado ao Estado Islâmico e à Al-Qaeda.
Administração curda de Al-Hol sob escrutínio
Em pronunciamento oficial, o porta-voz do Ministério do Interior da Síria, afirmou que o homem responsável pelo ataque à igreja de Mar Elias teria atravessado o deserto até Damasco vindo do campo de Al-Hol, localizado no nordeste da Síria – o chamado Curdistão sírio — , e administrado pelas Forças Democráticas Sírias (SDF), coalizão formada pelos Estados Unidos e encabeçada pelos curdos.
Em posts na rede social X (antigo Twitter), apoiadores do novo governo sírio condenaram diretamente as forças curdas, responsabilizando-as pelo ataque, já que têm controle total sobre o campo de Al-Hol. As Forças Democráticas Sírias (SDF), braço militar da administração curda, rejeitaram as alegações de que o indivíduo responsável pelo atentado tivesse vindo do campo de Al-Hol, no Curdistão Sírio.
Em resposta oficial, as SDF declararam que os departamentos competentes teriam revisado detalhadamente os registros referentes aos residentes do campo de Al-Hol, incluindo aqueles que deixaram o campo nos últimos meses. Tal investigação teria confirmado que Muhammad Zain al-Abidin Abu Uthman, homem que realizou a explosão suicida, não estaria entre as pessoas que saíram do campo recentemente.
A nota também esclarece que o campo é composto majoritariamente por mulheres e crianças, e não por combatentes estrangeiros do Estado Islâmico — que por sua vez estão sob custódia curda em prisões administradas pelas SDF.
A reportagem de Opera Mundi teve acesso ao campo de Al-Hol, no Curdistão Sírio, onde vivem atualmente cerca de 32 mil pessoas, em sua maioria crianças, adolescentes e mulheres – as famílias dos combatentes do Estado Islâmico.
O campo fica numa zona desértica remota, a cerca de 85 quilômetros de Qamishili, capital do território administrado pela AANES, o governo autônomo do Curdistão Sírio, e é atualmente controlado pelas Forças Democráticas Sírias (SDF). Na prática, isso significa que a segurança do campo é garantida principalmente pelas Unidades de Proteção Popular (YPG) e pelas Unidades de Proteção das Mulheres (YPJ), as mesmas forças curdas que desempenharam um papel central na derrota territorial do Estado Islâmico na região do Curdistão sírio.
Em entrevista a Opera Mundi, Jihad, funcionária da administração do campo, afirmou que a base de dados a respeito dos habitantes de Al-Hol é compartilhada entre as SDF e a Organização das Nações Unidas. “Todas as pessoas que entram no campo são cadastradas, mas muitas delas usam nomes falsos ou omitem a informação de que têm uma segunda nacionalidade”, explicou Jihad.

Giovanna Vial / Opera Mundi
A funcionária relatou que, apesar disso, as SDF enfrentam dificuldade na verificação das informações fornecidas pelas pessoas no momento em que são admitidas no campo, além de ser um desafio acompanhar e monitorar o paradeiro desses indivíduos dentro de Al-Hol. “Muitos (dos habitantes do campo) se utilizam de nomes falsos ou omitem detalhes sobre sua nacionalidade, o que, aliado ao uso de vestimentas que cobrem totalmente o corpo, dificulta ainda mais a identificação e o controle efetivo dos residentes”, afirmou Jihad.
No entanto, ao entrar em Al-Hol, a impressão transmitida pela administração de “falta de controle” não foi confirmada pela reportagem de Opera Mundi. O campo apresenta um sistema de segurança rigoroso, com múltiplos checkpoints, cercas de arame farpado e vigilância armada, semelhante ao de um complexo militar de alta segurança. Seria impossível se deslocar – mesmo que poucos metros – no interior do campo sem ser monitorado.
A dimensão libanesa do corredor jihadista
Em um comunicado publicado em 10 de maio de 2025, o grupo Saraya Ansar al-Sunna havia se declarado ativo em Trípoli, cidade no norte do Líbano.
A dimensão libanesa do que parece ser um corredor jihadista entre Curdistão sírio, Síria e Líbano, ganhou um novo contorno neste sábado, 28, quando o jornal libanês L’Orient-Le Jour revelou que três cidadãos libaneses foram acusados de envolvimento no planejamento do atentado suicida contra a igreja de Mar Elias, em Damasco.
Segundo fontes de segurança libanesas, os três cidadãos libaneses detidos na Síria em consequência de seu envolvimento no atentado são naturais de Ersal, vila libanesa que faz fronteira com a Síria.
Apesar de não ter se pronunciado oficialmente sobre o assunto, o governo libanês atua em um cenário de extrema tensão, marcado por uma escalada simultânea de ameaças internas e externas. O país enfrenta o que parece ser um “duplo escalonamento”: o avanço de células jihadistas e o aumento das ofensivas israelenses no sul, após o cessar-fogo entre Israel e Irã.
Nas últimas semanas, as forças de segurança libanesa detiveram líderes extremistas e frustraram atentados planejados em território libanês, mas ainda há foragidos sendo procurados. Autoridades afirmam que essas ações não são isoladas, e estão diretamente conectadas ao ataque contra a Igreja de Mar Elias e à intensificação dos ataques israelenses.
No plano interno, o Líbano segue paralisado por divisões políticas profundas, sob forte pressão ocidental pelo desarmamento do Hezbollah. O país parece atravessar um campo minado onde qualquer passo em falso pode comprometer de forma irreversível sua já frágil estabilidade.