A guerra na Síria, que se arrasta desde 2011, teve recentemente uma nova escalada em Aleppo, cidade estratégica no país. Grupos armados tomaram o controle da cidade, e a intensificação do conflito marca uma nova fase na guerra civil.
Para entender o contexto desse novo avanço e o papel de potências internas e externas no cenário atual, Opera Mundi conversou com Tito Lívio Barcellos, geógrafo, cientista político especializado no espaço pós-soviético e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP).
O especialista explicou que a convulsão social a partir das manifestações da Primavera Árabe impulsionaram a formação de grupos extremistas, transformando um movimento de protesto em guerra civil, com potências internacionais e facções jihadistas intensificando mais a situação.
Barcellos apontou que “esse fator interno vai ser visto como uma janela de oportunidade por potências regionais do Oriente Médio, como a Turquia e os países do Golfo Pérsico, para derrubada do governo”, de Assad, mas também ressaltou que a gestão síria soube aproveitar a fragmentação e radicalização da oposição para consolidar seu poder.
Já o Hay’at Tahrir al-Sham (HTS) tem se fortalecido no norte da Síria, especialmente em Idlib. Barcellos observou que, apesar das suas ligações com o jihadismo internacional, o grupo tem sido fundamental para os extremistas no norte do país, se tornando uma ameaça persistente à estabilidade do regime.
Abaixo, confira a entrevista de Opera Mundi com Tito Barcellos na íntegra:
Opera Mundi: a guerra na Síria teve início em 2011, com manifestações contra o governo de Bashar al-Assad. Considerando os antecedentes históricos e a dinâmica interna da Síria, quais fatores foram determinantes para que essas manifestações, inicialmente populares, se transformassem em um conflito armado de larga escala? O que podemos inferir sobre as tensões internas e externas que precipitaram esse cenário?
Tito Lívio Barcellos: Então, é sempre importante contextualizar o conflito na Síria dentro da guerra, e da chamada Primavera Árabe, iniciada em dezembro de 2010 até o ano de 2011/2012. Primeiro temos que lembrar que era um contexto no qual o preço do petróleo estava batendo a casa de 120, 150 dólares, um valor muito mais elevado, por exemplo, do que os atuais 70, 80 dólares no barril. É claro que esse preço vai ser influenciado pela guerra ao terror, principalmente pela invasão unilateral dos Estados Unidos ao Iraque, uma ocupação que durou quase 10 anos, e é importante que se diga que ainda há contingentes norte-americanos no Iraque, em território iraquiano. E esse preço do barril do petróleo, ele causa um grande impacto na produção de alimentos, porque encarece o frete e também encarece o custo de produção, porque você tem impacto nos combustíveis do maquinário agrícola, nós vivemos no contexto de agricultura mecanizada de larga escala, comercial, e também impacta na produção de fertilizantes.
E aí, por que isso tem a ver com a Primavera Árabe? No sentido de que, apesar da maioria desses países do Oriente Médio — ou Ásia Ocidental — apesar de que eles poderiam lucrar com a exportação de petróleo, devido aos preços elevados, também foram muito prejudicados com a alta do preço dos alimentos, visto que a maioria deles são importadores até de produtos mais básicos, como, por exemplo, o trigo. É importante que se diga que, também no ano de 2010, haverá uma seca no sul da Rússia, nas regiões cerealistas do Chernozem russo, que também é presente na Ucrânia e no Cazaquistão. Teve um período de seca e de incêndios florestais, e isso vai impactar na alta do preço do trigo, que é uma importante fonte de alimento não só para a região do Oriente Médio, mas também vários países do mundo, inclusive o Brasil. E essa seca também vai ocorrer na bacia do rio Eufrates, que é a principal zona irrigada, a principal zona agrícola do território sírio. Isso fez com que o preço dos pães, que é um produto muito subsidiado pelo governo sírio, disparasse – os preços dos alimentos dispararam, e, obviamente, a população acabou indo para as ruas pedindo reformas econômicas, que depois evoluíram para reformas políticas após a supressão das manifestações pelo governo sírio.
Entretanto, apesar da Síria ser um dos últimos países afetados pela Primavera Árabe, é importante que se diga isso, inclusive alguns analistas entrevistados pela Globo News na época, algumas cientistas políticas até norte-americanas e britânicas, falavam que a Síria era estranha, que as manifestações chegaram tarde, porque lá parecia uma espécie de uma ilha de estabilidade no Oriente Médio. Você tinha manifestações no Bahrein, por exemplo, e até mesmo manifestações na Arábia Saudita, e não estava ocorrendo nada em território sírio. Entretanto, essas manifestações acabaram se radicalizando por conta da interferência de países externos que queriam afastar e retirar a Síria do eixo que ela possui com o Irã e colocá-la numa esfera de influência mais sob a tutela da Turquia e dos países do Golfo e, por consequência, do chamado Ocidente. Então, se antes você tinha um discurso de reformas políticas e econômicas, esse discurso vai acabar sendo suplantado por discursos extremistas, especialmente do ponto de vista religioso, e uma maior presença de grupos jihadistas que vão acabar se tornando a maior parte das manifestações e vão pedir a derrubada do regime sírio.
Há quem diga que o próprio governo sírio teria incentivado que esses jihadistas tomassem as ruas justamente para ter uma justificativa para a repressão. Há relatos de que presos políticos com um histórico jihadista, com discursos fundamentalistas, tenham sido libertados justamente para se infiltrar nas manifestações e mudar a narrativa, uma justificativa para o governo, mas também você vai ter um fluxo de pessoas pela fronteira jordaniana e pela fronteira turca, um fluxo de militantes islamitas pelas duas fronteiras que vão acabar se infiltrando nos protestos. Esses grupos vão acabar se radicalizando, tomando postos policiais, tomando prédios governamentais, tomando quartéis das Forças Armadas e integrando desertores do Exército sírio. E uma vez que eles se armassem, começariam ações violentas visando a derrubada do regime e a tomada de poder.
Então você vai ter, nesse sentido, um fator interno, que eram os problemas políticos e econômicos enfrentados pela Síria por conta da Primavera Árabe e também até antes da Primavera Árabe, se considerarmos as reformas econômicas neoliberais feitas pelo Assad, diminuindo o estado de bem-estar social que existia na Síria – claro que eu não estou fazendo uma comparação com a Europa, mas um Estado subsidiado, um Estado assistencialista sírio sendo substituído por reformas de mercado, inclusive com a desestatização de empresas, a desoneração de alguns gastos, a própria retirada de alguns subsídios que tinham sobre combustíveis e alimentos, e isso vai acabar causando o seu ponto crítico com a seca que eu já mencionei e a Primavera Árabe.
Mas esse fator interno vai ser visto como uma janela de oportunidade por potências regionais do Oriente Médio, como a Turquia e os países do Golfo Pérsico, para derrubar o regime e retirar a Síria da sua parceria estratégica com o Irã, aquilo que chamamos de eixo da resistência. Uma vez colocando a Síria num contexto de guerra civil, de destruição do Estado sírio, você teria o enfraquecimento do eixo da resistência. Essa visão também vai ser compartilhada pelo governo de Israel, que vai enxergar uma janela de oportunidade nisso, embora não tenha participado ativamente na guerra civil síria, e também pelos Estados Unidos a partir do momento em que permitem a canalização do que chamam de ajuda não letal para esses grupos rebeldes.
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O governo de Bashar al-Assad conseguiu persistir no poder ao longo de uma década de conflito, apesar das ofensivas rebeldes e da pressão internacional. Quais fatores podem ser apontados para explicar essa persistência do governo sírio, considerando tanto as dinâmicas internas quanto as intervenções externas?
Pegando até um gancho da outra pergunta, você tinha no início das manifestações nas quais a prioridade era demandas sociais, principalmente mudanças políticas e econômicas. Primeiro a volta dos subsídios que foram retirados nas reformas do governo Bashar Al-Assad, e se uma vez que isso não é conquistado, então há exemplo dos vizinhos da região que estão também passando por essa ebulição social, então o caminho natural é buscar novas formas de representatividade política, ou seja, eleições, uma troca de governo, reformas no gabinete, porque você tem uma situação onde novas demandas sociais surgem e o Estado não está sendo capaz de respondê-las adequadamente.
Porém, a partir do momento em que esses grupos islamitas começam a ganhar força dentro das manifestações e ocorre essa mudança, uma mudança de narrativa e uma eventual radicalização e armamento incentivado por países estrangeiros, acaba dando a justificativa para o regime que está no poder, o Baatismo, o partido Baath comandado por Saad, para justificar a sua permanência no poder. É claro que nos primeiros anos da guerra você vai ver a implosão do país em vários focos de violência: rebeldes tomando prédios governamentais e depois cidades inteiras. Então, muitas cidades no interior vão acabar sendo tomadas, e depois você tem a tomada parcial da cidade de Aleppo, que era o centro financeiro da Síria – a cidade já fora maior que Damasco, e era a mais importante, maior e mais cosmopolita de toda a Síria. Nela, havia um mosaico, um retrato da sociedade síria antes da guerra, no qual você tinha a convivência entre diversos grupos religiosos árabes e até não árabes.
E aí as forças sírias vão passar por muito tempo enfrentando uma guerra exaustiva em várias frentes – estamos falando de um conflito que, primeiro, não acabou totalmente, mas podemos dizer que a fase quente dele dura quase 10 anos: de 2011 até aproximadamente 2020, e está requentando agora, com o término desse interregno, essa paz temporária e ilusória. Então, o governo teve que lutar em várias frentes, com o apoio indireto, numa primeira fase do conflito de alguns atores externos, como o Irã, Rússia, e alguns atores locais, regionais, de menor expressão, mas que buscavam dar o seu apoio militar, econômico ou diplomático, de maneira indireta, no caso um fornecimento de armamento e apoio à Síria nos órgãos internacionais, lembrando que estamos falando de um período em que a Síria foi até excluída da Liga Árabe, já estavam até previstos de que o governo não ia resistir por muito tempo, e já estavam reconhecendo as autoridades do Conselho Nacional Sírio, que é a oposição.
Isso vai ser visto entre os países ocidentais, e também entre as monarquias do Golfo, a Turquia também, países como a Líbia, que também tinha passado pela sua guerra civil, ou seja, a maior parte do mundo árabe também estava já inclinado a reconhecer a oposição como essa confederação rebelde que reunia tanto grupos seculares, mas também jihadistas, como os verdadeiros mandatários da Síria.
Mas você também teve atores locais que buscaram apoiar o governo, como o Iraque, Argélia, Armênia. O estado armênio chegou a enviar voluntários para a Síria, um time de médicos, cada um ajudando na sua escala. O ponto de virada da guerra vai se dar em setembro de 2015, quando, apesar de todos os esforços, avanços e reveses do governo sírio, em setembro daquele ano, a cidade de Idlib, que fica perto da rodovia Damasco-Aleppo, ou seja, o principal eixo rodoviário do país, ligando as principais cidades, ela é tomada pelos jihadistas islâmicos.
Além disso, você tinha já o crescimento do chamado Estado Islâmico do Iraque Levante, que estava tomando os territórios no interior dos dois países. Isso fez com que, a pedido do presidente sírio, uma delegação iraniana fosse visitar Moscou, chefiada pelo general da Guarda Revolucionária, o Qassem Soleimani, que foi morto em 2020 pelos Estados Unidos, para criar um grupo de trabalho com a Rússia, Iraque e o Hezbollah, junto com a Síria, para coordenar esforços e derrotar o Estado Islâmico e restaurar a estabilidade do regime sírio e também, em consequência, do regime iraquiano.
Então você tinha uma situação num vácuo de poder gigante, e aí, quando essa situação se tornou crítica, em 2015, a participação do Irã e da Rússia vai se tornar direta no conflito. Antigamente era um apoio indireto, era um apoio mais material, e agora a intervenção desses países vai se tornar direta em coordenação com as forças sírias.
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Manifestantes seguram bandeira da Síria durante evento
Quem são esses grupos extremistas que tentam tomar o poder de Assad? Como podemos entender a fragmentação desses grupos, especialmente em relação à diversidade de suas motivações e objetivos dentro da Síria? E ainda quais são as facções mais relevantes dentro dessa oposição?
A partir do momento que a narrativa jihadista passou a monopolizar os discursos rebeldes, o governo sírio usava a sua, em contrapartida. No sentido de que a Síria do Baath é secular, representa a diversidade cultural, religiosa e étnica que os jihadistas islâmicos não têm, e se caso o governo sírio perder o poder, as minorias religiosas seriam perseguidas. É claro, também, que temos que levar em conta que o governo sírio tem o seu componente étnico e religioso. Visto que a maioria dos árabes alauítas, um ramo liberal do islamismo xiita, formava também uma das bases apoiadoras do governo Assad, assim como as minorias cristãs presentes no país. Vamos ver também essas minorias na oposição, mas numa escala muito menor.
A base mesmo da oposição síria, principalmente os jihadistas, vai se constituir na maior parte da população síria que são árabes sunitas. Só que muitos vindos da população rural empobrecida, por conta da retirada dos subsídios e dos problemas decorrentes da primeira guerra árabe, que vão também acabar sendo tragados pelo discurso jihadista, pelo discurso islamita, promovido e incentivado também pela Turquia e pelas monarquias do Golfo Pérsico. Principalmente aí no caso o Catar, que vai ter um papel fundamental nisso, mas também a Arábia Saudita, Bahrein e Emirados Árabes.
Inicialmente os protestos eram encabeçados pelo chamado Conselho Nacional Sírio. Os componentes desse grupo eram lideranças, ativistas sírios exilados em países ocidentais, como Europa, Estados Unidos, Canadá, Austrália, que faziam oposição ao regime do Baath. Eles reuniam intelectuais, personalidades, ativistas políticos, sociais, blogueiros, pessoas que buscavam influenciar a opinião pública dentro e fora da Síria para se voltar contra o Assad.
Porém, com a entrada dos militantes islamitas nas manifestações, um dos grupos que vai se destacar dentro desse mosaico será a chamada “Frente al-Nusra”, o braço da Al-Qaeda na Síria, que operou no território sírio durante a Guerra do Terror. Esse mesmo grupo que foi combatido durante esse período, agora estava integrado à Confederação Rebelde, integrado às forças de oposição. Mas, apesar do inimigo em comum, que era o regime sírio, as agendas políticas para o futuro da Síria eram diferentes. Na força das armas, a al-Nusra tinha mais projeção que o Conselho Nacional Sírio, que já estava ficando minoritário. Vários outros grupos menores vão se integrar à oposição: também jihadistas, islamitas, o Partido Islâmico do Turquestão, o Partido Turcomeno, milícias formadas por diversos grupos sectários. Outros grupos também serão mais liberais, e muitos desses, às vezes, se enfrentavam entre si, além de enfrentar o governo sírio.
A coesão entre os rebeldes era muito questionável, porque eles tinham agendas diferentes e queriam criar redutos territoriais e eleitorais distintos para o futuro sírio. Outro esforço a destacar, que não tem relação direta com os rebeldes, mas vem de um aproveitamento da perda de poder do governo, é das chamadas Forças Democráticas Sírias, ou como podemos chamar, Rojava, que representa os curdos, habitantes do nordeste da Síria, mas também conta com outros grupos étnicos e religiosos nas suas fileiras. Vão integrar árabes, assírios, armênios, árabes sunitas, árabes alauítas, e vão formar uma nova estrutura política no nordeste da Síria, dentro dos chamados princípios do confederalismo democrático do Abdullah Öcalan, preso na Turquia e ligado ao partido dos trabalhadores curdos, o PKK.
E, com isso, o surgimento de Rojava na fronteira turca vai ser também um dos motivos da maior intervenção do envolvimento da Turquia no conflito, especialmente apoiando grupos jihadistas.
Quais são os aliados mais importantes desses grupos, e como esses alinhamentos impactam a dinâmica do conflito?
O principal apoio desses grupos vem do governo turco e também da monarquia do Catar, que é importante que se diga, também faz generosas doações à Irmandade Muçulmana, que vai compor parte da oposição síria e também estarão presentes até no próprio Conselho Nacional Sírio. Ainda que a Irmandade Muçulmana não tenha uma agenda idêntica aos fascistas da Al-Qaeda, que têm agendas muito mais extremas, você vai ter também o apoio da Arábia Saudita, que já estava começando a se envolver na guerra civil do Iémen.
Outros países, como Kuwait, Bahrein, Emirados Árabes, também vão mandar quantias em dinheiro e armamentos para os rebeldes na Síria, usando as fronteiras da Turquia, do Líbano, da Jordânia e até mesmo a fronteira do Iraque, visando armá-los com capacidade ofensiva suficiente para conseguir tomar os territórios e derrubar o regime em Damasco. Tanto que armamentos pesados foram fornecidos aos rebeldes, mísseis anti-tanque, mísseis anti-aéreos, justamente para neutralizar a superioridade da Força Aérea síria e também derrotar as unidades blindadas do Exército sírio, as unidades blindadas e mecanizadas, ou seja, inverter a superioridade numérica e qualitativa que as forças do governo possuíam.
O Hayet Tahirir al Sham (HTS), ou Organização pela Libertação do Levante, uma das maiores organizações jihadistas na Síria, visa a criação de um Estado teocrático e a substituição do governo de Assad. Quais são as principais reivindicações desse grupo e como ele se posiciona em relação aos outros atores no conflito, como as forças curdas e os grupos rebeldes apoiados pelo Ocidente?
A partir de 2018, começa a ter uma diminuição progressiva da intensidade do conflito sírio. Então, devido às ações das tropas sírias, em coordenação com os russos, iranianos, o Hezbollah e o Iraque, como já citei, já começava a se desenhar um cenário no qual os rebeldes teriam que se acomodar e se reorganizar. Nesse período, eles se aglomeram no saliente da província de Idlib, que seria a maior cidade que os rebeldes ainda iam manter sob seu controle, mesmo agora com a conquista de Aleppo.
Desde então, houve diversas situações com negociações políticas, nas quais rebeldes poderiam escolher se desarmar e se integrar às forças governamentais, mas também poderiam negociar um corredor humanitário para que saíssem da situação de cerco e fossem escoltados até uma zona controlada por rebeldes. Isso fez com que muitos, por meio dessas negociações políticas, pudessem sair das cidades onde estavam combatendo. E, para evitar a derrota completa pelo governo sírio, eram transportados até a cidade de Idlib.
É a partir desse momento que Idlib vai protagonizar uma guerra fatídica entre o Conselho Nacional Sírio, que controla o chamado Exército Livre da Síria, ou Exército Nacional Sírio, com a Al-Nusra. E essa frente vai praticamente expurgar a oposição liberal e secular de várias cidades, inclusive Idlib. Muitos prédios, escolas, hospitais, órgãos que eram governados pelo Conselho Nacional Sírio, vão ser expulsos e desapropriados pela frente Al-Nusra.
Essa frente vai se tornar tão majoritária nessa região, praticamente monopolizando não só o governo, mas a provisão de serviços públicos para a população, que vai acabar englobando essas facções menores, fazendo com que surja o movimento que chamamos de HTS. Esse movimento vai ser resultado da fusão da Al-Nusra com várias outras organizações menores. E também, no contexto da guerra civil síria, uma mudança de nome também era uma maneira de retirar a sua associação à Al-Qaeda de Osama Bin Laden e se colocar como uma outra força política em disputa pelo poder na Síria.
O HTS é um desdobramento e vai ter a mesma agenda política e ideológica que você vai encontrar na própria Al-Qaeda, conservadora no ponto de vista religioso, mas, ao mesmo tempo, intolerante e impositiva em relação aos outros credos. O objetivo deles, no caso, seria a transformação da Síria numa teocracia islâmica, só que tendo como base a monarquia saudita ou a monarquia catária, do ponto de vista social. Não, por exemplo, o Irã.
O que exatamente uma alternativa do HTS significaria para a população síria, especialmente no que tange à segurança, aos direitos humanos e à estabilidade regional? Como podemos avaliar o impacto das políticas do HTS na vida cotidiana dos civis que vivem sob seu controle ou ameaça?
Seria uma teocracia sunita com forte influência da Irmandade Muçulmana e dos grupos islamitas que também são presentes no Golfo Pérsico. Isso numa sociedade plural, do ponto de vista religioso da Síria, poderia significar um grave perigo às minorias religiosas, até porque consideram os alauítas, que seriam a minoria religiosa mais importante da Síria, que está presente no litoral mediterrâneo do país, como se fossem hereges. Isso é muito grave, porque poderia dar margem para a perseguição religiosa ou então o extermínio físico dessas populações.
Inclusive muitos relatos aconteceram de massacres étnicos e religiosos que ocorreram durante a guerra civil da Síria contra cristãos, armênios e alauítas perpetrados por esses grupos rebeldes. Esse foi um dos motivos mais importantes que fez boa parte da população síria voltar a apoiar o regime Assad. Mesmo que o governo estivesse impopular no primeiro ano de conflito, no período das manifestações, mas ele passaria a ganhar legitimidade uma vez que esses rebeldes jihadistas estavam aplicando uma agenda genocida do ponto de vista religioso contra as minorias étnicas na Síria.
O HTS controla o saliente de Idlib e algumas regiões menores do norte, contando com apoio turco. Eles vivem de doações dos países do Golfo e também da Turquia para fornecimento de energia elétrica, funcionamento de hospitais, escolas e universidades. A gente está falando de uma pequeníssima porção territorial da Síria, extremamente afetada por nove anos de guerra, uma região que foi muito bombardeada e com a sua infraestrutura completamente destruída.
Então, não dá para esperar que o desenvolvimento dessa região seja muito diferente ou até melhor do que as outras regiões controladas pelo governo. E, devido à presença de uma corrente islamita, influenciada pelos países do Golfo Pérsico, você tem um corpo político marcado por um rígido controle social, na qual os direitos da mulher são muito mais restritos do que nas regiões governamentais.
O governo sírio é um governo militar, sabemos, mas é um regime laico, é um regime secular. Foi uma República influenciada pelo nacionalismo árabe, pelo socialismo árabe dos anos 1960, pelo nasserismo. Então, as mulheres na Síria gostam de muito mais direitos políticos e sociais do que boa parte dos países do Oriente Médio. Isso não veremos no saliente de Idlib – diversidade de gênero, direitos reprodutivos, nada disso é assegurado nas áreas controladas pelo HTS.
De que maneira o apoio externo, como o fornecimento de armamentos e treinamento, tem intensificado a violência e prolongado a guerra, impactando diretamente a população síria?
Esse fluxo de armamentos, tanto vindos de fora como também capturados dentro, foi crucial para o prolongamento do conflito. E havia uma chaga social presente antes da guerra, que era o descontentamento social por conta do fim dos subsídios agrícolas e de combustíveis. Uma população rural, jovem, desempregada e que estava saindo do campo, afetada pela seca, tentava conquistar novas oportunidades de trabalho e de renda nas cidades – as demandas, como uma bola de neve, foram progressivamente sendo ignoradas pelas autoridades, ou pelo menos não respondidas de maneira satisfatória.
Isso deu muito caldo, abriu uma janela de oportunidades para que a população jovem se radicalizasse e se orientasse aos discursos da oposição e, principalmente, aos discursos islamitas. Muitos eram prometidos salários em boas quantias de dinheiro, que também eram pagos pelas potências estrangeiras. A Irmandade Muçulmana via Catar pagava também, e isso fez com que não apenas ganhassem realmente um aumento, um incremento nos seus números, nas suas fileiras, mas garantiam a coesão, a motivação necessária para lutarem. Então, estavam pagos, doutrinados, ideologicamente motivados e isso fazia com que se tornassem combatentes ferozes contra as tropas do governo.
Além disso, é importante destacar que, assim como ocorreu na Líbia em 2011, boa parte do arsenal conquistado pelos rebeldes de armamentos, tanto leves como pesados, foi tomado de arsenais governamentais por intermédio até de desertores. Muitos soldados e oficiais do Exército sírio desertaram nos primeiros meses e levaram consigo as armas que dispunham.
E estamos falando de uma sociedade que já era muito militarizada antes da guerra, temos que lembrar que a Síria é um país que sempre teve Forças Armadas onerosas, inchadas, numericamente grandes, por conta da sua rivalidade com Israel durante praticamente todo o século 20. Eles dispõem de um arsenal militar gigantesco, até para seu tamanho, de um país pequeno, com uma população pequena se comparada com seus vizinhos – Iraque, Turquia – com uma economia muito mais frágil, uma economia agrária terciária, ou seja, a Síria é um país industrializado, capaz de produzir as mercadorias ou mesmo armamentos para suas Forças Armadas. Não é um país que se destaca na exportação de petróleo ou de gás natural, como a maioria dos países do Golfo, mas dispõe de uma grande máquina militar, que é influente do ponto de vista político.
Essa estrutura vai ruir, não completamente, mas ela vai se desgastar muito nos primeiros anos de guerra, quando os desertores do Exército, mal pagos, mal motivados, com uma moral baixa, deixam os rebeldes tomar os depósitos de munições e de armamentos, incrementando o poder de fogo das forças opositoras ao regime.
Então, é importante falar do fornecimento de armas externas, você teve um fluxo de contrabando muito ativo por praticamente todas as fronteiras do território sírio. A Síria foi um dos principais destinos do contrabando de armas durante a guerra civil, pagos pelos países do Golfo e vindos de todas as origens possíveis, até mesmo armas do Leste Europeu foram deslocadas da Croácia e Albânia para a Síria com dinheiro do Catar e com dinheiro da Turquia.
Mas é importante também que se diga que os próprios arsenais sírios foram tomados pelos rebeldes e facilitados pelos desertores, e esses arsenais eram extremamente importantes, faziam parte de uma estrutura militar muito grande, muito poderosa antes da guerra.
O governo de Assad, durante a guerra, tem contado com aliados estratégicos cruciais, como a Rússia e o Irã. Como podemos entender essa aliança, e o que Moscou e Teerã buscam alcançar?
Moscou e Teerã têm também os seus objetivos. A decisão de se envolver na guerra da Síria, tanto indiretamente nos primeiros anos de guerra como diretamente após setembro de 2015, faz parte das agendas.
Vamos começar: para o Irã, a Síria é um membro importante do que ele chama de “eixo da resistência”, porque é o elo de ligação mais direto com o Hezbollah no sul do Líbano para enviar o apoio iraniano, e de maneira mais consequente, também para o movimento Hamas da resistência palestina. A Síria, portanto, tem a sua importância estratégica nesse contínuo territorial que liga o Irã, Iraque, Síria e o Hezbollah como um cerco ao território israelense, se a gente somar, por exemplo, com o Hamas em Gaza e mais recentemente o movimento Houthi no Iémen. Se olharmos o mapa, percebemos esse contínuo em volta do território israelense, que é um dos principais rivais geopolíticos do Irã, assim como também da Arábia Saudita e dos países do Golfo, que também são rivais, são adversários geopolíticos do governo iraniano. Então, o país tem esse papel duplo, ser uma cabeça de ponte para Israel, mas também afastar a influência dos países e das monarquias sunitas do Golfo no Oriente Médio.
E para a Rússia, a Síria é um aliado de longa data da Guerra Fria, do qual o país tem presença estratégica desde os tempos soviéticos. Com a Primavera Árabe, Moscou, com a perda da Líbia, que naquela altura não era bem um satélite russo de primeira ordem, mas era um país que estava tentando sair do isolamento internacional, e estava buscando retomar os laços estratégicos que tinha com a Rússia, decidiu se abster na votação de condenação ao regime de Muammar Gaddafi, abriu espaço para intervenção direta da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) na derrubada do regime.
No período da guerra civil na Líbia, era o governo do Dmitry Medvedev, que tinha uma inclinação mais simpática ao Ocidente, o que abriu caminho para a invasão da OTAN. Com a volta do Putin ao poder no ano seguinte, os russos já estavam cientes de que um cenário líbio poderia se repetir na Síria, onde as manifestações internas não fossem tratadas como uma questão política interna da própria Síria, e sim haveria envolvimento de forças estrangeiras. Então, a diplomacia passou a tomar a parte do governo sírio em todas as resoluções adotadas contra o país.
Não é à toa que a Organização das Nações Unidas (ONU) não vai conseguir uma resolução que condenasse as ações da Síria, mesmo com os países ocidentais e até mesmo a Liga Árabe se manifestando a favor. Na época, Assad era visto como um pária isolado internacionalmente, onde só tinha o apoio de poucos aliados, como a Rússia e o Irã, ou seja, era visto como uma espécie de voto vencido. Mas a Rússia ficou determinada de que era preciso proteger o seu parceiro estratégico da Guerra Fria, também para proteger as suas bases navais no Mediterrâneo (estou falando da presença russa no porto de Tartus) e também existia o perigo dos militantes jihadistas estrangeiros que estavam presentes na Síria.
Muitos deles eram do Cáucaso, não só dos países do Cáucaso como o Azerbaijão, mas também das Repúblicas russas do Cáucaso Norte, como Chechênia, Dagestão, Cabárdia-Balcária, Adiguésia, e países da Ásia Central: militantes uzbeques, turcomenos, tadjikis, kirguizes, tinha relatos até de uigures, a minoria tártaro-muçulmana da China, e os russos tinham receio de que, uma vez que conquistassem o poder na Síria, esses militantes levariam as suas experiências militares para seus países e poderiam treinar grupos terroristas locais e trazer instabilidade para essas regiões, que a Rússia enxerga como sua esfera de influência.
Então, a intervenção russa na Síria também vai ser motivada por questões de segurança interna, porque a militância islamita na Síria poderia causar um transbordamento para a Ásia Central e para o Cáucaso. Se pegarmos um retrospecto histórico, a Rússia vai apoiar a Aliança do Norte contra o Talebã no Afeganistão pelos mesmos motivos. O governo Yeltsin e o governo Putin vão apoiar a Aliança do Norte mesmo depois da retirada soviética em 89, contra os Talebãs no Afeganistão pelo mesmo motivo, porque havia o risco de militantes islamitas usarem o Afeganistão como base de operações para lançarem atividades insurgentes na Ásia Central e no Cáucaso russo.
Existe algum outro país ou grupo que tenha sido fundamental para a manutenção do regime sírio? Quais são os objetivos políticos e militares por trás desse apoio?
Com exceção da Rússia e do Irã, houve alguns aliados importantes, embora menores, mas dentre eles eu destacaria dois. Um pela sua importância estratégica e o outro pelo fornecimento dos seus militantes: Iraque e Líbano.
O governo do Iraque, desde o começo da guerra da Síria, especialmente, foi um dos poucos a tentar uma atitude mais equilibrada em relação à condenação do regime sírio. Mesmo durante as reuniões da Primavera Árabe, o Iraque buscava ter uma posição mais equilibrada, mais moderada: ele condenava as ações da guerra, mas ele não apontava o governo sírio como principal responsável, e, ao mesmo tempo, buscava alertar para a possibilidade de que o jihadismo presente na Síria poderia transbordar para os países da região.
Quando o Estado Islâmico começa a ganhar força no conflito e começam a tomar cidades dos dois lados da fronteira, o governo do Iraque começa a coordenar esforços com o governo sírio. Tanto é que a aviação iraquiana e a síria começam a atuar em conjunto, de uma maneira de evitar o traslado dos militantes dos dois lados da fronteira, fronteira essa que já não existia mais, porque os próprios militantes do Estado Islâmico já tinham retirado as demarcações.
E vale destacar não o Líbano em si, mas o grupo Hezbollah, que vai enxergar na guerra civil na Síria com muita preocupação, no sentido de que, uma vez que o regime sírio caísse, isso poderia abrir caminho para uma futura intervenção israelense, para destruir o grupo. Então, o Hezbollah acaba enviando muitas de suas unidades, muitos de seus voluntários, para combater junto com as forças sírias. E é importante que se diga que o Hezbollah, que já tinha experiência de guerra com Israel em 2006, vai pegar esses combatentes experientes e eles vão ser um grande reforço para as forças sírias. O grupo vai ter um papel fundamental no avanço das tropas síria, tanto que há o caso da cidade cristã de Maalula, que foi reconquistada por militantes do Hezbollah.
Além disso, outro aliado importante que a gente deveria considerar são os curdos da Forças Democráticas Sírias (FDS). No início, eles estavam meio que travando uma disputa paralela ao governo sírio e aos rebeldes. Então, assim, houve episódios de enfrentamento entre as forças do governo e os curdos, mas à medida que os rebeldes avançavam e depois com o surgimento do Estado Islâmico, e o que o Estado Islâmico fez nas cidades até curdas que eles tentaram tomar e assediar, fez com que os curdos fizessem uma aliança táctica com o governo sírio, desde que o governo sírio respeitasse a autonomia deles.
Desde que a guerra acabou, ou pelo menos desde que o cessar-fogo foi realizado, acaba tendo uma convivência relativamente cordial entre o regime sírio e Rojava. E existiam até conversações de que Rojava entregaria alguns postos de fronteira para o regime sírio de maneira gradual, até como uma maneira de evitar que o Exército da Turquia lançasse ofensivas terrestres contra a Síria, de modo a desarmar, destruir o movimento Rojava por conta da sua ligação e da sua simpatia com o PKK.
A recente intensificação do conflito em Aleppo e em outras regiões da Síria coincide com uma escalada das tensões no Oriente Médio, especialmente com os ataques de Israel contra Gaza, Líbano e até mesmo o Irã. Existe uma conexão entre essa instabilidade regional e o fortalecimento das forças rebeldes?
Olhar os recentes acontecimentos na Síria e não estabelecer uma conexão com a guerra no Líbano e a guerra em Gaza é mostrar uma ignorância atroz sobre o desenvolvimento desses dois conflitos.
Você tem um contexto do grupo Hezbollah, que, embora tenha conseguido arrancar um cessar-fogo com Israel, está profundamente desgastado e exausto da guerra, que sofreu muitas perdas durante o recente conflito, sem garantias de um acordo que vai ter efeito. Uma Rússia e um Irã que estão envolvidos nas suas guerras — a operação militar na Ucrânia e o Irã em uma ponte aérea, até mesmo usando a Síria para mandar reforços materiais ao Hezbollah e também criar zonas de contrabando para Gaza — então, o ataque na Síria nesse contexto gera um alívio, sim, para Israel e os Estados Unidos, mesmo que tanto o Ocidente quanto Tel Aviv não se manifestem publicamente a favor dos rebeldes islamitas, até por conta de que hoje já é mais público a associação deles com o jihadismo internacional, algo que não era tão explícito durante a guerra civil, hoje já é sabido, as ligações da frente al-Nusra, do HTS, a grupos islamitas como a Al-Qaeda.
Então, mesmo que os Estados Unidos, europeus e Israel não declarem apoio público ao HTS, eles enxergam sim como um fôlego adicional que agora o governo sírio, o iraniano e o Hezbollah vão ter que concentrar esforços novamente na Síria.
O governo russo, já envolvido na guerra da Ucrânia, vai ter que redirecionar esforços para evitar que os rebeldes, que vergonhosamente tomaram a cidade de Aleppo, avancem ainda mais. Até poucos dias atrás estavam ameaçando a cidade de Hama, o que poderia piorar o desastre para o governo sírio. Então, eles perceberam que os russos e os iranianos precisam novamente concentrar esforços, energia e recursos para reforçar as defesas sírias, e isso faz com que se distanciem consideravelmente do conflito no Líbano, do conflito na Palestina e até mesmo do conflito da Ucrânia.
Então, nesse sentido, a ação do HTS acaba beneficiando os atores israelenses e os atores ocidentais, nas suas respectivas formas.