Na cidade libanesa de Tiro, situada a apenas seis quilômetros da fronteira com Israel, o sentimento de medo e insegurança se entrelaça com a esperança de reconstrução.
Apesar do cessar-fogo em vigor desde 27 de novembro, o exército israelense continua exercendo sua política de intimidação no sul do Líbano, mantendo uma presença constante de drones e tanques de guerra nas vilas fronteiriças.
Foi em meio ao contraste entre o azul do mar e os prédios bombardeados na orla da cidade que a reportagem de Opera Mundi conheceu Cláudia Martins Melhem, de 41 anos. Natural de Curitiba, capital do Paraná, a brasileira teve a sua casa atingida por seis mísseis israelenses.
“Eu já estava no Brasil quando recebi a notícia. Fiquei sem chão e me perguntando por que fizeram isso justo comigo. Ao mesmo tempo, pensei naqueles que perderam a vida. A irmã da minha sogra, por exemplo, perdeu filhos; meu marido perdeu primos, além de muitos amigos. Meu prejuízo foi só material e eu sabia que, com o tempo, seria possível reconstruir tudo de novo”, desabafou rodeada pelos destroços do lugar onde viu as suas três filhas crescerem.
Cláudia deixou Tiro em meados de setembro, quando Israel intensificou os ataques no sul do país. Ao testemunhar uma bomba caindo a apenas duas quadras de distância, ela e o marido Hussein, um libanês de 44 anos, dono de uma padaria, correram para fugir com as meninas em direção a Beirute. Melhem foi uma das brasileiras que conseguiu deixar o Líbano por meio de voos organizados pela Força Aérea Brasileira (FAB).
“Com o tempo, você aprende a identificar quando os mísseis saem e entram na região, pois os ruídos são diferentes. Saímos apenas com os documentos e as roupas do corpo. Levamos dois dias para chegar a Beirute. Para você ter uma ideia, foram nove horas de viagem somente entre Tiro e Saidoon, um trajeto que normalmente fazíamos em 40 minutos”, contou.
Sobre a operação Raízes do Cedro, criada pelo Itamaraty e que repatriou mais de 3 mil cidadãos brasileiros da zona de conflito no Líbano, Cláudia garantiu ter recebido a assistência necessária da Embaixada, mas observou que muitas pessoas, especialmente na região sul, não tiveram a mesma sorte.
“Nós passamos por isso durante um ano, com avisos da Embaixada para que as pessoas não ficassem em áreas de risco. Mas, é preciso entender que não é fácil. Muitas vezes, não é simplesmente sair dessas áreas e seguir para outra cidade. Também houve injustiça com muitos que não conseguiram deixar essas zonas. Conheço pessoas que perderam a vida porque não chegaram a tempo de embarcar no voo de repatriação”, lamentou.

Vários prédios foram bombardeados na orla da cidade de Tiro, perto da fronteira com Israel
O recomeço com apoio do Hezbollah
Questionada sobre o que a levou de volta ao Líbano semanas depois de ter a sua casa destruída, Cláudia Melhem explicou que, apesar do apoio de familiares e ONGs no Brasil, o Hezbollah garantiu um suporte financeiro para que ela e sua família pudessem recomeçar. “É uma espécie de reembolso que o partido oferece. No meu caso, como estava em uma casa alugada, eles devolveram o valor em dinheiro para a compra de móveis novos. Mas para quem perdeu sua casa própria durante os bombardeios, eles vão ajudar na reconstrução”, detalhou.
Para amigos próximos, a resposta é mais simples. “Eu voltei porque me sinto melhor aqui”, confessou Cláudia.
Apesar das tragédias e dos conflitos, ela enfatiza que já são 17 anos vivendo no Líbano e que suas filhas nasceram no país. “É incrível dizer isso, mas a verdade é que aqui em Tiro eu encontro segurança. Eu saio na rua sabendo que ninguém vai me assaltar, que ninguém vai mexer com as minhas filhas, sabe? É o tipo de garantia que a gente, infelizmente, não tem no Brasil”.
Embora as incertezas persistam, um sentimento de otimismo permeia o ambiente após a eleição do presidente Joseph Aoun e a nomeação de Nawaf Salam como primeiro-ministro. Mesmo diante da oposição do Hezbollah a essa mudança política, a tensão se origina, em parte, da desconfiança em relação a Israel. Hussein Melhem lembra que são as forças israelenses que pressionam as fronteiras, criando uma sensação eterna de instabilidade.
“Todo mundo já está cansado da guerra. Não é a primeira, já é a terceira ou quarta. O libanês é diferente dos outros povos do mundo árabe. Parece que tem pele de crocodilo, já não sente mais nada. Mas o povo do sul do Líbano tem um coração muito bom. As pessoas aqui querem ser felizes, querem comer bem, querem entrar no hospital e ter atendimento de qualidade, querem ver o dinheiro no bolso. Enfim, só querem uma vida digna”, explicou o comerciante.
Durante o período do acordo de trégua, a reportagem observou a presença ativa de drones israelenses em quase todo o território libanês, incluindo Beirute. No último dia 15 de janeiro, o exército de Benjamin Netanyahu realizou ataques aéreos em cidades como Hoummin Al-Faeqa, além de avançar por terra em direção a vilas como Al-Dabesh, em Bint Jbeil, segundo maior município da província de Nabatiye, no sul do Líbano.
“Nós voltamos para cá pensando que agora as coisas vão se estabilizar e que a vida, aos poucos, vai voltar ao normal. Vamos ver se, a partir do dia 27 de janeiro, o cessar-fogo será definitivo. Assim, podemos começar a montar a nossa casa novamente. Minhas filhas já estão na escola, o país conseguiu restabelecer muitos pontos de energia e internet, e não houve corte de água. Por isso, acho que já dá para seguir em frente”, conclui Cláudia.

Hussein Melhem tem uma padaria em um dos bairros mais atingidos de Tiro, cidade no sul do Líbano
Vivendo no fogo cruzado
Antes mesmo da paranoia com o caso das explosões dos pagers em diversas partes do Líbano, a população já enfrentava momentos de pânico e transtornos. O aumento da tensão começou no país a partir de 7 de outubro de 2023, quando o Hamas avançou sobre o território israelense, matando mais de mil pessoas em uma festa rave. Desde então, os reflexos do genocídio que Israel provocou na Faixa de Gaza, com a desculpa de agir em retaliação àquela ação do grupo palestino, passaram a fazer parte do cotidiano dos libaneses, especialmente daqueles que residem no sul do país.
Em 17 de setembro, após a detonação de milhares de pagers e walkie-talkies, que resultou na morte de 39 indivíduos e deixou mais de 3 mil feridos, autoridades libanesas e o alto comissário da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Direitos Humanos seguem apurando os pormenores dessa ação sem precedentes perpetrada por Israel.
“Era exatamente uma e meia da tarde quando os pagers explodiram. Eu estava saindo da casa de uma cliente para buscar minhas filhas na escola quando começou o barulho das ambulâncias. Me deparei com várias pessoas, que não eram do Hezbollah, sem as mãos, com os olhos esbugalhados, com a cabeça ferida. Foi um momento bem difícil”, recordou.
A ação que envolveu o Mossad, serviço de inteligência israelense, que chegou a criar uma empresa de fachada para realizar a missão. Mesmo entre alguns países aliados de Tel Aviv, o episódio foi classificado como um ataque terrorista contra a população civil.
Além de ser uma das cidades mais antigas do mundo, Tiro abriga acampamentos de refugiados palestinos que foram expulsos de seu território durante a Nakba (palavra que significa “catástrofe” em árabe), entre 1947 e 1949. Com o avanço das milícias sionistas, seguido da criação do Estado de Israel, cerca de 750 mil palestinos foram forçados a deixarem as suas casas, gerando um contingente populacional que se espalhou entre Gaza, Cisjordânia, Jordânia, Síria e o próprio Líbano. Atualmente, mais de seis milhões de pessoas descendentes vivem com status de refugiados.
Segundo dados da ONU, mais de 90% desses refugiados palestinos estão abaixo da linha da pobreza, uma situação decorrente da proibição imposta pelo Líbano de possuírem propriedades e de trabalharem em profissões dignas e bem remuneradas. A justificativa oficial para essas restrições é evitar que a naturalização comprometa seu direito de retornar à Palestina, o que, por sua vez, isentaria Israel da obrigação de cumprir a resolução do Conselho de Segurança que garante essa proteção.

Hezbollah está ajudando a população a reconstruir casas e estabelecimentos bombardeados por Israel
Não somos terroristas
Hussein Melhem lembra que, além de ser a maior força política da região, o Hezbollah também foi o único grupo a apoiar os palestinos contra o genocídio de Israel. Ele afirmou que a convivência com pessoas ligadas a essa corrente política sempre foi tranquila, pois fazem parte do comércio, das empresas, do transporte, das instituições e da vida cotidiana da comunidade.
“Nada se constrói neste país sem o Hezbollah no meio. Eles fazem parte dessa área do sul. Não podemos falar em isolamento porque, sem eles, nada avança. Podemos discordar de algumas coisas, mas não podemos impedi-los de fazer parte. Eu tenho clientes do partido, eles compram comigo e nenhum deles me olha duas vezes. O que fazem é defender a terra deles. Então, se são terroristas, como dizem lá fora, todo mundo que vive aqui no sul do Líbano também é terrorista? Isso não me parece justo”.
Cláudia acrescenta que a sua convivência com xiitas, sunitas e maronitas sempre foi harmoniosa e que, talvez, isso se deva à energia e resistência presentes em ambos os lados. “Meu esposo, por ter vivido um tempo no Brasil, está sempre falando de futebol, da cultura brasileira, da música, da culinária… Eu sempre fui muito bem recebida aqui, tanto que voltei depois de uma guerra, não é mesmo?”.
Sobre a morte de Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah assassinado por Israel, Cláudia não hesitou em expressar sua tristeza. Ela explicou que, apesar das divergências entre as correntes políticas e religiosas, todos acreditavam que ele lutava pela soberania do país.
“O Líbano é um lugar onde vivem pessoas de várias origens e religiões. Muitos não têm nada a ver com esse conflito e só querem viver. Discordo da ideia de que o Hezbollah seja um grupo terrorista, porque convivo com eles há quase duas décadas e não vejo terrorismo entre eles. Claro, eu não concordo com algumas atitudes que, inclusive, nos levaram à guerra, mas ‘terroristas’ eles não são. Essa é uma palavra muito forte para ser usada”, finalizou.

Casa da brasileira Cláudia Melhem foi atingida por seis mísseis israelenses