No dia 23 de fevereiro, o povo libanês finalmente teve a oportunidade de velar o corpo de Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah assassinado em 27 de setembro de 2024 durante um forte bombardeio das forças israelenses em Beirute. A reportagem de Opera Mundi esteve em Dahieh, subúrbio da capital libanesa, para conversar com Bilal Hijazi, um muçulmano xiita e um dos sobreviventes desse ataque.
O libanês de 58 anos, que atualmente trabalha em uma gráfica, disse que foi “assustador” sentir a força das 85 toneladas de explosivos que acertaram o local que Nasrallah estava.
Da varanda da sua casa, é possível ver a destruição do prédio. Os escombros se tornaram um local “sagrado” para os moradores do bairro. “Nós ficamos em estado de choque, sem saber o que fazer. Nosso único objetivo era pegar as crianças e fugir daqui. A gente já tinha escutado barulhos de bombas, mas o impacto naquele dia foi diferente”, disse ao comparar o efeito do ataque com um terremoto ou um vulcão em erupção.
O significado da morte de Nasrallah
“Para mim, quando mataram o líder do Partido de Deus (Hezbollah, em árabe) foi o sinal de que a guerra havia mesmo começado”.
Até então as forças israelenses só tinham atingido pontos específicos mais ao sul do Líbano, na fronteira com Israel. “Foi naquele momento que decidimos sair de casa. Peguei dois colchões e fui com a minha mãe, irmã, esposa e os meus dois filhos que viviam aqui para um abrigo em uma faculdade libanesa”, lembrou.
Para uma pessoa religiosa como ele, a morte de Hassan Nasrallah realmente foi uma perda muito grande, pois, para os muçulmanos ele representa o símbolo da vitória dos oprimidos nesta guerra. “Derrubou a gente. Ele era um ser humano, não era um profeta, não era um santo, era uma pessoa como eu ou como qualquer outro. Então, se Jesus morreu, isso não quer dizer que todos os cristãos tenham que morrer, entende?”.

Após 20 dias dormindo no alojamento, a esposa de Hijazi, que é brasileira, conseguiu embarcar em um dos 13 voos disponibilizados pela Força Aérea Brasileira durante a operação Raízes do Cedro, que retirou mais de duas mil pessoas do Líbano nos piores dias do conflito. Atualmente, a sua família vive em Foz do Iguaçu, no Paraná. “Eu dormi durante 60 dias dentro do meu carro. Graças a Deus permaneço trabalhando para enviar dinheiro à minha família, pois a região onde fica a gráfica é cristã. Lá não houve ataques”, explicou.
Hijazi foi para o Brasil pela primeira vez ainda criança, em 1982. Órfão de pai, ele vivia em um orfanato quando Israel invadiu o Líbano pela segunda vez, em uma incursão de grande escala que deixou milhares de feridos e cerca de 4 mil mortos. Em 1989, o libanês solicitou um visto na Embaixada do Brasil para trabalhar. “Viajei em setembro daquele ano como refugiado e sem dinheiro para o táxi.” Mesmo com a crise econômica durante o governo de Fernando Collor, ele conseguiu juntar dinheiro para comprar um apartamento. Agora, pretende vendê-lo para deixar o seu país novamente.
“Enquanto a minha mãe estiver viva, vou ficar aqui no Líbano, mas eu tenho dois filhos menores, eu preciso olhar para o futuro deles. Todo o meu dinheiro está bloqueado no banco. Hoje só consigo tirar 300 dólares por mês. Para recomeçar a vida no Brasil, ou no Paraguai, onde eu também tenho documento, é muito difícil se eu não tiver capital”, afirmou.
O libanês aguarda neste momento uma oportunidade de ir ao Canadá para ficar com a filha mais velha, que está prestes a dar à luz. Os outros dois meninos, que estão no Paraná, já ingressaram na escola, sendo que o mais novo foi aprovado para estudar em uma turma à frente. “O povo do Líbano sofre, por isso não temos tempo para ser ‘moles’. Aqui nós não temos sistema de saúde público ou, por exemplo, uma infraestrutura estatal capaz de fornecer eletricidade a preço justo. Tudo você tem que comprar. Eu fico pensando porque eu tenho que viver longe da minha família. Meu filho perguntou por que o pai ainda não foi para o Brasil. Essa dor eu não tenho como explicar”, desabafou.
Um histórico de violações
Ao ser questionado pela reportagem se o cessar-fogo assinado em 24 de novembro tem sido respeitado, Hijazi foi categórico ao afirmar que Israel nunca respeitou nenhum tipo de acordo de paz. “Eu digo isso porque realmente é assim, e não porque sou libanês ou porque é um país inimigo. Não! Eles nunca respeitam nada, ainda mais com o apoio dos Estados Unidos. Eu escutei no jornal que depois do cessar-fogo, mais de 50 pessoas já perderam a vida.”, disse.
Hijaz reconhece que Israel realmente não tinha a resistência libanesa como alvo principal. O objetivo, segundo ele, era atingir diretamente o líder do Hezbollah, pensando que, ao eliminar Nasrallah, as coisas terminariam rapidamente como ocorreu na Síria.
Enquanto nos mostrava os figos oriundos do sul do Líbano, uma das poucas coisas que havia para comer naquele dia, Hijazi contou algumas histórias sobre como os moradores daquela região estão sobrevivendo às agressões de um dos Exércitos mais poderosos do mundo, impedindo com os seus próprios corpos que os sionistas invadam o território.
A respeito da instrumentalização da religião como um dos fatores da guerra, Hijazi explicou que, assim como no cristianismo, que possui diversas doutrinas (católicos, ortodoxos, armênios e protestantes), no islamismo isso também ocorre e que, segundo o profeta Maomé, há apenas um caminho para o paraíso. Porém, cada um pode pensar e seguir por onde achar melhor, ‘desde que não jogue bombas nos outros’. “A verdade é que ou eles nos matam ou a resistência é que vai matá-los, porque se eles invadirem, eliminarão todo mundo. É só olhar para Gaza!”
“Você nunca vai sentir o que a gente ou um palestino sente”
Atualmente o Parlamento libanês é dividido entre as três principais bases religiosas, sendo o primeiro-ministro indicado por muçulmanos sunitas, a presidência da Câmara dos Deputados por muçulmanos xiitas e a Presidência da República reservada aos cristãos maronitas.
“Existe um problema neste país porque as religiões não estão integradas como ocorre, por exemplo, no Brasil. O muçulmano aqui e o cristão ali, cada um busca um líder. Se o líder deseja que haja integração, isso pode acontecer. Contudo, se os líderes atuais não promovem essa união, a população sofre. Eles não permitem que o povo se integre”, explicou.

Em setembro de 2024, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, mostrou na sede da ONU, em Nova York, o mapa intitulado “The Curse”, onde países, como o Irã, Síria, Iraque, Iêmen e Líbano, apareciam pintados de preto representando “o arco de terror que o Irã criou e impôs do Oceano Índico ao Mediterrâneo.” Antes, o premiê já havia exibido a cartografia da “Grande Israel”, que simplesmente exclui a Palestina e impõe a anexação ilegal da Cisjordânia ocupada.
“O Estado de Israel diz querer ir até o Rio Litani, mas se a gente deixar, eles tomam o país inteiro, parte da Síria e do Iraque também. Os sionistas, infelizmente, se escondem atrás dos judeus. Não posso entender ou aceitar que Deus tenha mandado essas pessoas matarem crianças para serem livres. Eu não posso matar crianças judias. Mas, os sionistas estão matando a gente. A resistência nunca jogou bombas em escolas ou em civis israelenses, apenas em bases militares”, reforçou.
Para ele, o Hezbollah é um partido respeitado pelo povo porque é o único capaz de proteger a comunidade, já que possui armas que o Exército libanês não tem. “Ninguém quer fornecer armas ao Exército libanês. Se conseguirem alguém que nos proteja, eu concordo que o partido deve ser desarmado.”
Questionado sobre a possibilidade dos dois Estados e da abertura das fronteiras, Hijazi se mostrou pessimista: “será que Israel aceitaria que a gente vivesse no nível que eles vivem? Quer dizer, Israel e Dubai são quase iguais. Mas, Israel e Egito? Na Jordânia não fizeram acordo de paz? Como é que o povo de lá está vivendo? Para Israel, qualquer país que esteja na sua fronteira, na sua mira, futuramente será tomado. Esse é o plano.”
“Quem fala ‘não’ para os EUA, jamais viverá em paz”
Ao compartilhar as suas memórias com Opera Mundi, Hijazi recordou já ter visto muitas coisas nos seus quase 60 anos de vida. “Quando criança, eu ia até os tanques israelenses, olhava para os soldados e eles me davam comida. Só que eu não comia. Aí eles me perguntavam o porquê e eu dizia: ‘porque a minha mãe me falou para não comer nada que viesse das mãos de um israelense’”, contou.
O ressentimento dos povos árabes contra as agressões de Israel não é uma novidade. Porém, Bilal afirma que sempre tentou conversar sobre o tema com os seus amigos brasileiros. “Eu explicava o que os sionistas representam para nós, mas ninguém acreditava.”
Para o libanês, o Estado israelense tem como objetivo reprimir toda a região, impedindo que as pessoas vivam com dignidade. “No Brasil não somos terroristas, mas aqui nós somos. Só os que ficam aqui é que são marcados. Você já correu o risco de perder o seu passaporte? Já correu o risco de perder o seu país? Então, você nunca vai sentir o que a gente sente ou o que um palestino sente.”
Antes de nos despedirmos, Hijazi falou sobre como enxerga o futuro dentro do que chamou de “nova ordem mundial”, em que, segundo o imperialismo norte-americano, a China é o verdadeiro e grande vilão.
“Qual é a ameaça que Síria, Iraque, Iêmen e o Líbano têm contra os Estados Unidos e a Europa? Esses países não têm problema nenhum com o Hezbollah. Os Estados Unidos fizeram a Ucrânia guerrear contra os russos, não fizeram?! A ameaça não está em supostas armas químicas, nem em exército nenhum. O problema é a China e a desvalorização do dólar. A Venezuela não é muçulmana, é cristã, e mesmo assim eles vivem em conflito porque também têm petróleo, como nós. A verdade é que quem fala ‘não’ para os Estados Unidos, jamais viverá em paz”, finalizou.
