Segunda-feira, 21 de abril de 2025
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Na última semana, o pânico voltou a tomar conta do santuário Sayyida Zaynab, localizado em cidade de mesmo nome, a 10 quilômetros ao sul de Damasco. Militantes do Hayat Tahrir al-Sham (HTS), nova força governante da Síria, tentaram ingressar armados no templo religioso. A reportagem de Opera Mundi chegou ao local poucas horas depois dos acontecimentos, no dia 11, mas ainda a tempo de presenciar novas incursões – detidas por fiéis xiitas, de forma pacífica, limitando a presença da milícia ao pátio externo.

Seus combatentes não puderam entrar na sala onde está enterrada Zaynab bint Ali (626-682), neta de Maomé, cuja mãe se chamava Fátima e era filha do patriarca islâmico, casada com um primo do principal profeta muçulmano. Seu pai foi Ali ibn Abi Talib, o mais importante de todos os imames (sacerdotes islâmicos), o legítimo sucessor de Maomé para os xiitas – expressão que deriva de shi’at Ali, os seguidores de Ali.

“Não queremos que ninguém entre aqui com armas”, disse Hussein Zayat, muçulmano xiita proveniente de Aleppo, no norte da Síria. “O santuário é sagrado, um lugar de abrigo. Os rebeldes vêm aqui e gritam ‘Allahu Akbar’ (Deus é grande, Deus é o maior, em árabe). Todas as crianças aqui são refugiadas de Aleppo e ficam muito assustadas quando ouvem os gritos, e lutamos para acalmá-las”, acrescentou.

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Hussein Zayat é muçulmano xiita proveniente de Aleppo, no norte da Síria

Não se nota em Sayyidah Zaynab a mesma euforia do que em outras partes do país com a queda de Bashar Al-Assad. A comunidade xiita, majoritária nesse local, se lembra com pavor do massacre ocorrido em fevereiro de 2016, quando 134 pessoas foram assassinadas e 180 ficaram feridas depois de quatro explosões reivindicadas pelo Estado Islâmico. Não é à toa que, nesse grupo, provoca tensão a chegada ao poder de salafitas e jihadistas: há medo de exclusão política e perseguição religiosa.

Sayyida Zaynab: município de maioria xiita na periferia de Damasco

De forma cautelosa, os fiéis revelam seus temores, na expectativa que, dessa vez, tudo saia melhor que no passado recente. “Tenho orgulho e honra de ter nascido xiita”, confessa Yasmin Taha, proveniente de Homs, cidade no oeste da Síria. “Desejo que este novo governo traga segurança, proteção e estabilidade. Espero que não haja divisão entre seitas”.

Com o fim do velho regime e a ascensão do HTS, a correlação de forças entre os ramos religiosos deve sofrer brusca modificação. Sob Assad, quem dominava as estruturas políticas eram os alauitas. Essa corrente islâmica nasceu de uma variante heterodoxa e esotérica do xiismo, elaborada no século IX por Mohammad bem Nusseir. Seus seguidores veneram Ali, como os xiitas, mas acreditam em reencarnação, carecem de mesquitas, ignoram o jejum e a peregrinação a Meca, toleram o álcool e suas mulheres não utilizam véu. São tidos como heréticos por correntes sunitas.

Yasmin Taha
Yasmin Taha: ‘desejo que este novo governo traga segurança, proteção e estabilidade’

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As estatísticas sírias são controversas, depois de tantos anos em guerra civil. De acordo com o Banco Mundial, a população estaria em 23 milhões de moradores. Desses, 87% seriam árabes, 10% curdos e 3% de outros grupos étnicos. Pela repartição religiosa, segundo múltiplos estudos, 90% professariam fé muçulmana – os sunitas comporiam 74% e os xiitas bateriam em 16%, com 11% de alauitas – enquanto o cristianismo alcançaria cerca de 6% e outras crenças não passariam de 4%.

A vitória do HTS e seus aliados expressa a possível hegemonia das ramificações mais ortodoxas do sunismo: o salafismo e o jihadismo. Essas duas doutrinas fazem uma leitura fundamentalista do Alcorão e defendem a imposição de seus valores através de uma guerra santa (jihad, em árabe), que eventualmente conduza à reconstrução do regime de califado – uma forma teocrática de monarquia absoluta – por todas as terras de maioria muçulmana.

Túmulo de Zaynab bint Al
Túmulo de Zaynab bint Al, neta de Maomé e filha do principal patriarca xiita

Essa é a razão do temor xiita. O HTS é herdeiro da Frente al-Nusra, que se filiava a al-Qaeda e estava aliada ao Estado Islâmico durante a primeira etapa da guerra civil, de 2011 a 2017. Fazia parte, portanto, da coalizão de grupos salafitas e jihadistas que tocaram o terror contra as denominações religiosas discordantes de sua posição.

Sob a liderança de Abu Mohammad al-Julani, os novos detentores do poder teriam supostamente rompido com o fundamentalismo islâmico e abandonado as velhas práticas. Mas muita gente tem dúvidas sobre a autenticidade dessa conversão e suspeita que não passe de marketing passageiro.

A ascensão do HTS é um fenômeno que inquieta também os xiitas libaneses. No país vizinho existe um sentimento de que a ascensão dos salafistas sírios poderia representar ameaça existencial para a sua comunidade. Ali Hussein, xiita libanês nascido em Haret Hreik, subúrbio de Beirute, relatou a Opera Mundi suas preocupações que o novo governo interino sírio. “Uma das principais razões pelas quais o Hezbollah se envolveu na guerra civil síria foi a crescente proximidade de salafistas e jihadistas com as fronteiras libanesas”, afirma. “Estes grupos são extremistas e acreditam que qualquer religião ou seita diferente da sua é indigna de existir”.

Durante a guerra civil síria, o Estado Islâmico e a Frente al-Nusra enviaram homens-bomba para Dahye, a província na qual nasceu Hussein, provocando explosões que resultaram em inúmeras mortes. A lembrança deste acontecimento o deixa inseguro sobre o futuro.

“O Hezbollah entrou na guerra para defender as fronteiras do Líbano e impedir que os salafistas continuassem esses ataques em Dahye”, relata. “Há um perigo real de que esses extremistas possam tomar conta de todo o Líbano, assim como fizeram em regiões da Síria. Isso representa ameaça aos xiitas no Líbano. Mas provavelmente enfrentarão forte resistência, particularmente na região de Bekaa. Ninguém sabe o que acontecerá”.