Líbano, quinta-feira, 21 de novembro de 2024. Eu estava em Dahiyeh, subúrbio de Beirute controlado pelo grupo xiita Hezbollah, buscando obter autorização para exercer atividades jornalísticas no local.
Quem dirigia o carro em que estávamos era um grande amigo libanês que passou sua vida inteira em Dahiyeh e recentemente perdeu a casa em que morava com os pais, em um dos brutais bombardeios israelenses. Conosco estava Laura, uma colega brasileira que veio comigo para apoiar a produção de conteúdo audiovisual.
Estacionamos na rua de uma das sedes administrativas do Hezbollah. Caminhamos por menos de um minuto antes de sermos abordados por membros do grupo. Pediram que apresentássemos documentos e mostrássemos vídeos e fotos que havíamos feito no bairro.
Meu amigo discutia com os homens em árabe e eu era capaz de entender poucas palavras: claramente se tratava de uma apuração com o objetivo de identificar se nossa presença poderia estar vinculada aos interesses de Israel. De fato, queriam saber se éramos espiões enviando informações para os sionistas.
Os homens do Hezbollah pegaram nossos celulares e minha câmera fotográfica. Levaram-nos para um pátio entre três prédios, onde passaríamos as próximas horas. No chão, milhares de cacos de vidros registrando os ataques diários de Israel a Dahiyeh.
Um gato alaranjado circulava ao redor dos meus pés me pedindo carinho, trazendo uma certa trivialidade àqueles primeiros minutos com “um dos grupos terroristas mais perigosos do mundo”, de acordo com a classificação comum no Ocidente.
Eu estava assustadoramente calma.
“Habibi ou habibti?”, perguntei ao homem que nos vigiava, para saber se era um gato macho ou fêmea. “Habibi”, ele me respondeu, aprovando com o olhar a atenção que eu dedicava ao animal.
“Por que vocês estão em Dahiyeh no meio da guerra?”, questionou. “Por que estão filmando e tirando fotos? Para quem estão enviando esse material?” Expliquei meu trabalho como correspondente para Opera Mundi e que estava tentando mostrar, ao público brasileiro, a extensão da destruição causada pelos israelenses.
O homem parecia cético quanto às minhas intenções, mas em nenhum momento levantou a voz ou nos tratou de maneira desrespeitosa. Enquanto isso, meu amigo tentava reivindicar a nossa liberação com outros membros do grupo, explicando a eles o meu alinhamento à causa palestina.
Depois de passarmos cerca de uma hora e meia em pé naquele pátio no meio de Dahiyeh com membros do Hezbollah, esperando que eles verificassem nossos aparelhos eletrônicos, Laura precisou ir ao banheiro. Aquela parecia uma necessidade obscenamente humana para quem estava sob a custódia de um grupo armado. Para a nossa surpresa, dois homens escoltaram Laura até um banheiro próximo. Na volta, trouxeram cadeiras e garrafas de água. Cigarros e isqueiros também se faziam disponíveis.
Há uma crença ocidental, sobre os membros do Hezbollah, de que seriam inebriados por uma fé cega, machista, e de serem violentos com mulheres. Mas o que eu via passava longe dessa caricatura: estava nas mãos de um grupo de homens determinados a defender o seu território e se proteger contra os constantes ataques israelenses. Apesar da óbvia tensão, foram gentis e respeitosos.
Os membros do Hezbollah são pessoas comuns. Muitos têm diplomas e trabalham em atividades profissionais corriqueiras. São homens dedicados à uma religião que prega a segurança e a proteção das mulheres, ainda que isso possa ser visto como machismo no nosso lado do mundo.
Enquanto esperávamos a revista dos nossos equipamentos eletrônicos, conversamos com alguns dos membros do grupo xiita, especialmente com o homem que me havia respondido sobre o gato. Em momento de estranha descontração, disse a ele que estavam nos tratando melhor do que ocorreria com a polícia francesa. Ele riu, desconcertado.
Três ataques aéreos israelenses foram lançados enquanto permanecemos naquele pátio. O som das bombas era ensurdecedor. Lembro-me de ter achado cômico o meu medo de morrer se relacionar aos ataques indiscriminados de Israel, não aos homens do Hezbollah que me cercavam.
Entre um cigarro e outro, Laura e eu começamos a jogar stop enquanto Kareem e membros do grupo verificavam alertas emitidos por Israel sobre futuros bombardeios. Os próximos alvos estavam a poucos metros de distância. Vários homens do Hezbollah, em questão de minutos, evacuraram a rua. Começamos a ficar muito inquietas. Que jeito burro de morrer, pensei.
Laura estava com frio. Trouxera café e um casaco. Pensei na minha mãe. Cerca de três horas haviam se passado e ela já devia ter dado conta do meu sumiço.
Com a iminência do próximo ataque aéreo, dois homens nos colocaram em uma hammer e disseram que nos levariam para fora de Dahiyeh, para um lugar seguro, onde o governo libanês continuaria a investigação sobre nós.
Fiquei cerca de cinco minutos sozinha dentro do carro com o mesmo homem que havia me respondido sobre o gato – ele no banco do motorista, eu no banco traseiro do meio. Conversamos pelo espelho retrovisor interno. Ele me parecia desconfortável de nos ter submetido a tamanho escrutínio e pediu desculpas. Perguntei sobre sua família. Contou-me que estava em lugar seguro. “Fica com o meu número, se precisar de alguma coisa”, disse.
Sob o barulho incessante de drones israelense, deixamos Dahyeh no carro do Hezbollah, e fomos entregues às autoridades libanesas, sob a custódia de quem passaríamos as próximas 24 horas.
Mal sabia, naquele momento, que três dias depois de sermos interrogados não só pelo Hezbollah mas também pelo serviço de inteligência libanesa, e de termos sido liberados sem qualquer suspeita, um jornalista libanês traçaria uma falsa relação de causalidade entre um dos nossos conteúdos filmados e um ataque de Israel ocorrido no mesmo dia, sugerindo que tivéssemos informado o governo israelense.
O artigo, sensacionalista e oportunista, exibiu os nossos nomes e nos colocou, de forma irresponsável, em situação de risco, atenuada somente depois de muitas conversas e articulações. O jornalismo e a guerra, dois meios escandalosamente masculinos, são mares revoltos para mulheres.
Até onde sei, ninguém gosta de ser preso, ainda mais no meio de um conflito armado. Não posso dizer, portanto, que minha experiência tenha sido agradável. Tampouco conheço outras mulheres jovens que ficaram sob custódia do Hezbollah. Tudo o que compartilho aqui é de minha perspectiva pessoal e intransferível. Mas as horas que passei naquele pátio em Dahiyeh fez-me refletir sobre a fragilidade da narrativa imperialista, que rotula os homens do Hezbollah como animais a serem temidos.
Apesar da brutalização colonial a que são submetidos, são militantes inexoravelmente humanos.