No final da década de 1970, a região do ABC Paulista e os sindicatos que ali estavam atraíam diversos tipos de militantes contra a ditadura civil-militar brasileira. Muitas organizações de luta armada já haviam revisto seus princípios e decidido trabalhar em outras frentes. Uma delas, a Ala Vermelha, organização dissidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), havia sofrido muitas quedas desde o final dos anos 1960 e, quando muitos de seus quadros saíram da prisão anos depois, a organização decidiu que era o momento de se aproximar da classe trabalhadora a partir da indústria de ponta, das grandes montadoras do ABC.
Os membros da Ala Vermelha decidiram que a melhor maneira de cumprir tal tarefa seria por meio da informação, na montagem e edição de jornais que falassem com os operários e para os operários. Assim, em março de 1975, sai o primeiro número do ABCD Jornal, o primeiro periódico a ser editado pelo grupo.
Em formato tabloide, o jornal tinha como objetivo principal difundir as principais questões da luta sindical que, naquele período, representava a locomotiva da luta democrática no Brasil. Como um jornal de bairro, o ABCD abordava problemas da região e dava voz aos moradores e protagonistas das histórias das vilas operárias.
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Além do ABCD Jornal, a Ala Vermelha editou e imprimiu outros periódicos em regiões estratégicas, como o Repórter de Guarulhos, Jornal da Baixada e o Jornal da Vila, todos fazendo parte do plano da organização de aproximação da classe operária pela comunicação.
Financiado essencialmente pela Ala Vermelha e por eventuais doações, o jornal foi dirigido do primeiro ao último número por duas grandes figuras da militância de esquerda brasileira, ambas já falecidas: Antonio Fernando Bueno Marcello e Julio de Grammont.
Marcello trabalhou em grandes redações do país, como Estadão, Folha de São Paulo e Correio Braziliense, além de ter sido assessor da Secretaria de Imprensa da Presidência da República até 2014, ano de sua morte. Grammont, um dos primeiros filiados do Partido dos Trabalhadores e responsável pela criação da “estrela do PT”, faleceu em um acidente de carro em 1998.
“ABCD era da Ala”
Alípio Freire, jornalista que foi membro da Ala Vermelha e também participou da criação do jornal, relembra que, “na época, ninguém sabia que o ABCD era da Ala. Tínhamos acabado de sair da cadeia, muito carimbados. Não podíamos correr esse risco”. O jornalista afirma que, na época das grandes greves dos metalúrgicos do ABC, o jornal foi um dos únicos alternativos a imprimir 200 mil exemplares – “uma coisa inacreditável, inclusive por conta da ditadura”. “Quando São Bernardo sofre a intervenção, e o jornal do sindicato passa a ser controlado pela polícia, o ABCD se torna imediatamente o jornal do comando de greve”, conta Freire.
Sua circulação era, principalmente, de mão em mão, sendo raramente comercializado em bancas. Segundo Freire, os próprios trabalhadores do jornal iam distribuir o ABCD em pontos de concentração de operários, nas saídas de fábricas, em assembleias, nos sindicatos e onde mais existissem leitores em potencial.
O jornalista também conta que, além de produzir jornais, os membros da Ala Vermelha criaram centros culturais nos locais onde instalaram seus periódicos. “No ABC, nós tínhamos teatro, cinema, espaço para debates e palestras etc. Foi uma experiência muito bonita e muito positiva”, afirma Freire.
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“No ABC nós tínhamos teatro, cinema, espaço para debates e palestras etc. Foi uma experiência muito bonita e muito positiva”, afirma Freire
Dissolução e PT
No começo dos anos 1980, com o crescimento e fortalecimento do recém-formado Partido dos Trabalhadores (PT), muitas organizações clandestinas que naquele momento orbitavam em torno da luta operária no ABC se aproximaram do novo partido e passaram a integrar o projeto como organizações dentro da agremiação. Em 1983, a Ala Vermelha no Estado de São Paulo decidiu, em congresso, pela autodissolução e pela integração de seus quadros ao partido.
Freire, que foi vice-presidente do Diretório Regional do PT entre 1980 e 1983, afirma que, com a dissolução da organização, os jornais também pararam de circular. “No momento em que a Ala decide se autodissolver, os jornais são fechados”.