A polarização do mundo em meados dos anos 1970, causada pela disputa geopolítica entre Estados Unidos e União Soviética, dividiu o globo em dois grandes blocos. Mas alguns países buscavam uma outra via. A Conferência de Argel, realizada em 1973, reuniu os Países Não-Alinhados para discutir as transformações protagonizadas pelo chamado Terceiro Mundo. Exilados do Brasil por conta da ditadura civil-militar, os jornalistas Paulo Cannabrava e Neiva Moreira (que também fora deputado federal) participaram da conferência e perceberam a necessidade dar voz às novas ideias que os países em desenvolvimento estavam propondo. A libertação das colônias portuguesas na África, a efervescência no mundo árabe, as guerrilhas pela América Latina: esses foram alguns dos temas que ganharam uma leitura especial dos Cadernos do Terceiro Mundo.
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Se o embrião da revista que cobriria o Terceiro Mundo surgiu na Argélia, seu nascimento aconteceu na cidade argentina de Buenos Aires, quando Neiva Moreira, a jornalista uruguaia Beatriz Bíssio e o criador da agência de notícias Inter Press Service, Pablo Piacentini, se reuniram para concretizar o projeto de uma publicação voltada para os países do Sul. Em parceria com a editora argentina Julia Constenla, o primeiro número da publicação foi lançado em setembro de 1974, batizado, inicialmente, de Terceiro Mundo.
O jornalista Paulo Cannabrava relembra que os contatos feitos por ele e Moreira durante a conferência em Argel foram fundamentais para a estruturação da revista, pois, além de jornalistas internacionais, os brasileiros haviam se aproximado de “fontes extraordinárias”.
“Nós jantávamos com o Agostinho Neto e tomávamos café da manhã com o Arafat, então aquilo era um prato cheio para nós”, diz Cannabrava. Essas relações fizeram com que a revista conseguisse diversos furos de reportagem e entrevistas exclusivas – entre as entrevistas que mais se destacaram, estão a com Yasser Arafat, o líder da resistência palestina, e o líder da revolução cubana, Fidel Castro.
Primeiras edições e dificuldades
Após nove edições impressas em Buenos Aires, os jornalistas que editavam o periódico foram obrigados a deixar o país por conta do golpe militar argentino, em 1976. Exilados no México, Moreira e Bíssio se reorganizam para dar continuidade ao projeto da publicação que, em 1977, volta a circular, agora com o nome definitivo de Cadernos do Terceiro Mundo.
A partir de então, a revista alcançou expressivo sucesso editorial, passando a ser impressa em espanhol, português de Portugal e inglês, sendo amplamente distribuída na América Latina, Portugal, África e Estados Unidos. O aumento de assinaturas e anúncios vindos de governos progressistas ao redor do mundo, que constituíam as principais fontes de renda da publicação, foram essenciais e possibilitaram um aumento de circulação e qualidade gráfica da revista.
Para Cannabrava, “esse foi o momento mais glorioso dos Cadernos, pois passamos a ter reconhecimento mundial”. “Nós começamos a receber patrocínio de Moçambique, Angola e, após a Revolução dos Cravos em Portugal, passamos a editar uma revista em Lisboa, que era distribuída também em países africanos que falavam português”, afirma o jornalista.
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Anistia e Rio de Janeiro
Após a Lei de Anistia em 1979, Moreira e Bíssio retornam ao Brasil e passam a editar a revista no Rio de Janeiro. Com o intuito de promover a publicação e organizar a luta democrática no Brasil, debates sobre a conjuntura política do país e do Terceiro Mundo eram realizados em parceira com universidades.
“Nós frequentávamos muito a PUC e a USP para realizar palestras e debates, sempre muito proveitosos para a revista e para a luta democrática, pois, apesar da anistia, ainda estávamos em uma ditadura”, conta Cannabrava.
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“Nós jantávamos com o Agostinho Neto e tomávamos café da manhã com o Arafat, então aquilo era um prato cheio para nós”, diz Cannabrava
Durante o processo de redemocratização do Brasil, os Cadernos do Terceiro Mundo tiveram papel de destaque, principalmente na cobertura do noticiário latino-americano e africano. Foi criada a Editora Terceiro Mundo, com o objetivo de gerenciar a revista, aumentar seu alcance e melhorar sua distribuição e comercialização. Agregado a esse projeto, Cannabrava e Moreira passaram a editar o Jornal do País, publicação dedicada a cobrir e apoiar o movimento das Diretas Já. A empresa ainda lançou, em 1992, a Revista do Mercosul, focada na integração latino-americana, com edição bilíngue em português e espanhol, e a Ecologia e Desenvolvimento, premiada publicação que direcionava sua cobertura às causas ambientais.
Diálogos do Sul
Por dificuldades financeiras, a editora, que já havia fechado o Jornal do País, encerrou suas atividades no ano de 2005 e, junto com ela, os Cadernos do Terceiro Mundo. A revista foi impressa durante 31 anos e hoje passa por um processo de digitalização de seu acervo.
Hoje, Paulo Cannabrava dirige o site Diálogos do Sul, parceiro de Opera Mundi, espécie de herdeiro dos Cadernos, cujo foco de sua cobertura são temas fundamentais para o Sul Global e, principalmente, para a América Latina. Além disso, o portal se propõe a discutir os problemas do Brasil, de países da África, da Ásia e do Oriente Médio, sendo um agente que estreite as relações entre os territórios do Sul.