Segunda-feira, 9 de junho de 2025
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Primavera de 1973. Não eram tempos de amor na America do Sul. Ela não se chamava Ana, mas era assim que seus camaradas e a polícia uruguaia a conheciam. Ana, a guerrilheira, detida em uma prisão militar feminina, construída especialmente para mulheres tupamaras, em algum lugar desconhecido no interior do Uruguai, com uma carta na mão, que era de Emiliano, ou Ulpiano, ou seja lá qual fosse o seu verdadeiro nome.

Em junho daquele ano, a ditadura recém iniciada no Uruguai anunciou com pompa que havia acabado com o Movimento de Liberação Nacional, guerrilha conhecida no país e no mundo inteiro como Tupamaros – o nome era tão marcante que até o apelido acabou fazendo parte da sigla: MLN-T. Centenas de jovens revolucionários foram mandados à prisão, quinze deles se tornaram conhecidos como “reféns de guerra”. Um desses reféns era Ulpiano.

Apesar do decreto ditatorial, ainda havia tupamaros soltos e espalhados pelo país. Por isso o regime decidiu criar a figura dos reféns, que passaram a viver sob a seguinte regra: se alguma célula dos Tupamaros voltasse a atuar, um refém seria fuzilado – ou mais de um, dependendo do caso. O tormento dos reféns da ditadura uruguaia está retratado no filme Uma Noite de 12 Anos, de Álvaro Brechner.

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Um carcereiro da prisão feminina gostava de chutar as grades da cela de Ana e relembrar as últimas humilhações, de diferentes tipos, que impunha a ela e suas companheiras. Ana continuou lendo a carta. Ele insistiu: “você vai ficar aqui por milhares de anos”. Ela retrucou: “quando eu sair daqui, vou viver a minha vida, e você será um fantasma”.

Entre as gargalhadas dos demais gendarmes, Ana tentou encontrar algo onde escrever uma resposta. Precisava contar sua verdade, que seu nome não era Ana, que era filha de uma família de classe alta de Pocitos, bairro nobre de Montevidéu. Tinha uma irmã gêmea, tinha uma família enorme, tinha saudades, e também tinha medo, mas não medo da morte. E queria se encontrar com ele.

Dias depois, seu advogado lhe forneceu papel, caneta e a grande coincidência de suas vidas. Ele era casado com a advogada de Ulpiano. Os defensores nada podiam fazer pelos guerrilheiros nos tribunais. Livrá-los da prisão em meio a uma ditadura era impensável. A única opção era servir como um casal de carteiros, trabalhando por um amor que lutava para sobreviver.

Amor nos tempos da guerrilha

Ana e Ulpiano foram dois prisioneiros vivendo um típico amor tupamaro. O MLN-T surgiu em meados dos Anos 60, fundado por um grupo de estudantes socialistas que queriam fazer a revolução no Uruguai, inspirados pelo sucesso da Revolução Cubana.

Diferente das guerrilhas urbanas de outros países, os Tupamaros começaram a atuar antes de instalada a ditadura. A vida na clandestinidade impedia que houvesse relações fora da organização e saber o verdadeiro nome das pessoas com quem trabalhavam podia colocar a vida delas e a sua própria em risco. O amor deles nasceu quando ela se chamava Ana e ele Ulpiano, não importava o que diziam os documentos de identidade.

No meio da história, também houve uma fuga da prisão. Ana era uma estudante de arquitetura com talento para a falsificação de documentos. Uma dessas identidades falsas permitiu que o camarada de codinome Emiliano passasse a se chamar Ulpiano, para fugir de um mandado de captura. E assim eles se conheceram.

Ana tinha um namorado que também era do MLN-T. Se chamava Blanco Katrás, e foi capturado pela polícia, junto com ela, meses depois daquela falsificação. Ana só passou alguns meses na cadeia, mas Blanco terminou sendo executado pela polícia uruguaia.

“Não era o primeiro namorado que eu perdia naquelas condições, e já tinha visto muitos outros camaradas morrerem. Não há tempo para sentir pena quando você precisa salvar a própria pele”, disse Ana, anos depois, em um livro que contou sua história.

Libertada em 1971, ela encontrou refúgio no mesmo porão em que estava escondido Ulpiano, que já era, naquele então, um dos homens mais procurados do país.

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A caça aos Tupamaros no Uruguai passou a ser mais intensa nos Anos 70, com a ajuda de agentes do governo dos Estados Unidos. Anos antes, em agosto de 1970, os guerrilheiros sequestraram e assassinaram um agente do Departamento Federal de Investigação (FBI, por sua sigla em inglês), chamado Dan Mitrione. Ulpiano foi acusado de fazer parte dessa operação – que é retratada no filme Estado de Sítio, de Konstantinos Costa-Gavras.

Talvez tenha sido por volta de 1971 que Ana e Ulpiano passaram a viver de porão em porão pelos bairros do centro velho de Montevidéu. “Eles passaram a andar juntos na época mais dura, quando nem sempre havia um teto. Às vezes, era preciso dormir em pântanos fora do perímetro urbano da cidade. Talvez a relação, digamos, física, não tenha começado nessa época, mas com certeza o carinho mútuo sim”, relata Henry Engler, um ex-tupamaro, amigo pessoal de Ulpiano.

Amor nos tempos do cárcere

O pouco que se sabe sobre o começo da relação é que eles se tornaram imprescindíveis um para o outro nos últimos meses, antes do início da ditadura.

Após a prisão, a relação sobreviveu com a ajuda dos advogados-carteiros. Ela revelou seu nome, se chamava Lucía, Lucía Topolansky. Disse que sonhava em sair dali e encontrá-lo. Ele respondeu dizendo que seu nome era José Alberto Mujica Cordano.

Archivo pessoal
Lucía e Pepe, anos depois de deixarem de ser Ana e Ulpiano

A carta-desabafo de Pepe Mujica, ex-Ulpiano, era a mais bela carta de amor de todos os tempos, segundo as companheiras de presídio de Lucía – “era toda sentimentalona, como todas as coisas do Pepe”, segundo María Elia Topolansky, irmã gêmea de Lucía, também ex-tupamara. Passou por todas as mãos e fez sucesso até entre os carcereiros – “naqueles anos, cada carta que chegava era para todas”, conta Lucía.

Diz a lenda que a ternura das palavras de Mujica amoleceu as restrições que havia para correspondência entre presos, e assim eles puderam trocar mais cartas que os demais casais tupamaros separados entre prisões.

Essa situação durou exatamente os doze anos, até que eles finalmente se reencontraram com a saída da prisão, a única da qual eles não puderam fugir.

Amor nos tempos da liberdade

No dia 14 de março de 1985, Lucía e sua irmã gêmea deixaram a cadeia e foram para a enorme casa da família. No mesmo dia, José Mujica – ou Pepe, apelido pelo qual era conhecido – foi libertado, depois de onze anos na solitária, “conversando com os ratos e agarrado na esperança” segundo ele mesmo.

“No dia seguinte, Lucía foi embora da casa dos nossos pais, foi morar com o Pepe, e nunca mais voltou”, conta María Elia Topolansky.

Desde então, eles viveram juntos em uma chácara de um bairro de classe baixa, na periferia de Montevidéu. Começaram cultivando flores e vendendo no mercado municipal, mas sem esquecer os ideais políticos.

Ambos formaram parte do grupo fundador do Movimento de Participação Popular (MPP), constituído majoritariamente por ex-tuparamos. O partido se tornou um dos mais importantes da Frente Ampla uruguaia, e entre seus membros está o atual presidente do país, Yamandú Orsi.

Através do MPP, Pepe se candidatou e se elegeu deputado em 1995. Em 2000, ele passou a ser senador, e Lucía deputada. Em 2005, ela se elegeu senadora, e nesse mesmo momento, 30 anos depois do começo da relação, 20 anos depois de começarem a viver juntos, decidiram formalizar o matrimônio, que durou outros 20 anos.

Cinco anos depois do casamento, Pepe assumiu como presidente do Uruguai.

 

PS.: a melhor forma de mergulhar na história de amor de Pepe Mujica e Lucía Topolansky, e também na história dos Tupamaros, é mergulhar na história dela, escrita pelos jornalistas e historiadores uruguaios Nelson Caula e Alberto Silva, autores do livro Ana, La Guerrillera, que traz detalhes de tudo o que se contou neste texto e muito outros episódios sobre a luta do MLN-T, a vida na clandestinidade e a disputa política travada no Uruguai antes, durante e depois da sua mais recente ditadura.