Guerrilheiro Mujica protagonizou episódios cinematográficos da história uruguaia, afirma historiador
Ex-presidente, morto aos 89 anos, foi um dos mais importantes líderes dos Tupamaros, que atuaram no país durante os anos 60 e 70
Antes de José “Pepe” Mujica ser presidente do Uruguai e marcar o final de sua vida como ícone da esquerda latino-americana, ele construiu sua figura, há pouco mais de 60 anos, quando deixou de ser líder da juventude de um partido de direita para ser um dos principais militantes da que foi, talvez, a mais bem articulada guerrilha da América do Sul.
A história de Mujica como figura nacional está atrelada ao seu período como membro do Movimento de Libertação Nacional, mais conhecidos como Tupamaros, organização que aderiu tanto ao apelido que o incorporou à sua sigla oficial: MLN-T.
Segundo o historiador Mateus Fiorentini, os Tupamaros nasceram de “um movimento que reunia frações de diversos setores desiludidos com a democracia liberal uruguaia”.
“Influenciados pela Revolução Cubana, a perspectiva guevarista e o pensamento defendido por Régis Debray acerca da luta armada, o MLN-T foi constituído por grupos que romperam, principalmente, com o Partido Socialista e com o Partido Nacional. Mas, a organização reunia setores de movimentos maoistas, anarquistas, inclusive do Partido Comunista Uruguaio (PCU), que estava comprometido com processo que levou a criação da Frente Ampla, em 1971”, comenta o acadêmico, licenciado pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP), com mestrado pelo Programa de Pós-graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM-USP).
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Fiorentini conta que entre os Anos 60 e 70, Mujica participou de algumas das operações mais ousadas e violentas que a organização realizou, embora ele mesmo evitasse usar o termo “guerrilha” para descrever os Tupamaros.
“Ele costumava dizer que os tupamaros não foram uma guerrilha, mas um movimento político que usava táticas de guerrilha para promover denúncia social e disputa de consciência junto à sociedade”, recorda Fiorentini.
Do berço liberal à guerrilha
Mujica iniciou sua militância política aos 14 anos, nos movimentos de juventude do Partido Nacional, influenciado pela família que era vinculada a esse partido.
No interior da organização, se associou ao setor conhecido como herreristas, seguidores do pensamento de Luiz Alberto de Herrera, que defendia ideias mais liberais dentro do partido.
“Pepe chegou a ser presidente da juventude ‘nacionalista’, mas depois acompanhou outro líder da sigla, Enrique Erro, quando este decidiu sair e se incorporar à Unidade Popular. A partir daí, teve uma série de experiências, incluindo visitas à União Soviética e a Cuba, depois a adesão a grupos maoistas, até que decidiu se envolver com o MLN-T”, conta Fiorentini.
Preferência pelos fuscas
Em seus primeiros anos como tupamaro, Mujica se dedicava a atividades de apoio, entre elas ações de aquisição de automóveis. O historiador conta que ele teria sido um dos responsáveis pela preferência da guerrilha pelos fuscas.
“Essa marca de utilizar fuscas em suas operações teve tanta repercussão que foi parar no setor de marketing da Volkswagen. A empresa chegou a publicar anúncios dizendo ‘compre um fusca, o carro preferido dos tupamaros’”, comenta o acadêmico.
O último carro que Mujica teve antes de morrer foi um fusca azul, ele chegou a posar para uma foto no interior do veículo junto com o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, quando este o visitou em janeiro de 2023.

Ricardo Stuckert
Fugas cinematográficas
A ascensão de Mujica no interior do MLN-T foi resultado de sua participação em alguns dos operativos mais importantes, recordados até hoje como alguns dos episódios mais impressionantes já registrados em Montevidéu.
O então guerrilheiro tupamaro participou de diversos assaltos a bancos e outras ações dedicadas a angariar fundos para financiar a luta revolucionária. Nem todas elas terminaram bem: até 1973, Mujica já tinha acumulado quatro passagens pela prisão e alguns casos de confrontos com as forças de repressão – em uma delas, ele chegou a ser baleado seis vezes, mas ainda assim sobreviveu.
Mas o operativo mais recordado da história dos Tupamaros, e que teve Mujica como uma das figuras centrais, foi a grande fuga do presídio de Punta Carretas, em setembro de 1971, quando mais de 100 prisioneiros políticos – a maioria tupamaros – escaparam da que era até então a maior penitenciária da capital uruguaia.
A façanha foi possível graças a uma articulação feita dentro e fora da cadeira, e que teve o futuro presidente como um dos organizadores do lado de dentro, e também como um dos que realizou a escavação do túnel que permitiu a fuga. Vale acrescentar que o presídio foi desativado nos Anos 90 e atualmente, no local onde ele ficava, existe um shopping center.
“Essas ações que marcam a trajetória dos tupamaros estão carregadas de eventos épicos ou heróicos, alguns deles até cinematográficos. A participação de Mujica em alguns deles contribuiu para a sua ascensão no interior da organização e a constituição essa imagem um pouco mítica que se atribui a ele”, comenta Fiorentini.
O historiador ressalta que “os tupamaros possuíam uma disciplina militar mas não possuíam centralização política e nitidez ideológica, sua unidade se produzia a partir da reunião de elementos comuns entre as organizações que o compunham e se expressaram principalmente na defesa de um artiguismo anti imperialista e anti oligárquico com vistas a construção de uma sociedade socialista com forte viés nacionalista”.
Pepe e Lucía
Outro ponto importante da passagem de Mujica pelos Tupamaros é o fato de que foi durante esse período que ele conheceu Lucía Topolansky, que sua companheira até os últimos dias de sua vida.
Fiorentini destaca que Topolanksy tem uma origem social bem diferente de Mujica. “Ele é oriundo de uma família do setor mais pobre da classe média uruguaia, uma família do campo. Ela, entretanto, é de uma família das classes altas de Montevidéu. Se vinculou ao MLN-T em 1969, enquanto cursava Arquitetura na Universidade da República (principal universidade pública do país)”, recorda.
Lucía ganhou notoriedade dentro da organização devido à sua habilidade para falsificar documentos e pelo fato de que sua formação como arquiteta a tornavam figura importante na resolução de questões logísticas e estruturais.

A fuga do presídio de Punta Carretas foi um dos episódios mais ‘cinematográficos’ da vida de Mujca
A companheira de Mujica também participou do operativo para a fuga do presídio de Punta Carretas, em setembro de 1971, mesmo do lado de fora, já que muitos dos seus conhecimentos em arquitetura eram enviados aos presos do lado de dentro para que fosse construído o túnel.
Contudo, vale recordar que dois meses antes, em julho de 1971, ela foi protagonista de uma ação similar em um presídio feminino. A chamada Operação La Estrella, na qual ela foi uma das 38 presas políticas escaparam da Penitenciária de Cabildo.
Com o desmantelamento do MLN-T, em 1972, ambos foram presos e ficaram 13 anos separados. O autogolpe de Juan María Bordaberry, em junho de 1973, iniciou uma ditadura que vigorou no Uruguai até 1985.
Pepe e Lucía haviam iniciado seu relacionamento quando ele passou a liderar a coluna 10, mesma célula na qual ela participava, porém eles não sabiam seus verdadeiros nomes: dentro da organização, ela era chamada de Ana, e ele de Ulpiano. A manutenção de identidades falsas era uma das regras dentro da organização, para evitar possíveis delações.
“Durante o período da ditadura, mesmo estando presos, eles conseguiram trocar cartas que eram trasladadas pelos seus respectivos advogados”, relata Fiorentini. O casal passou a morar junto somente a partir de 1985, quando foram libertados, após o fim da última ditadura uruguaia.
Refém da ditadura
Os 12 anos de ditadura foram os mais duros da vida de Pepe Mujica. Ele foi escolhido como um dos quinze “reféns”, como eram chamados pelo próprio regime os presos políticos ameaçados de morte.
Apesar do desmantelamento do MLN-T, ainda havia ex-tupamaros soltos, razão pela qual o governo ditatorial impôs a seguinte regra: se alguma célula da guerrilha voltasse a atuar, um refém seria fuzilado – ou mais de um, dependendo do caso. O tormento dos reféns da ditadura uruguaia está retratado no filme Uma Noite de 12 Anos, de Álvaro Brechner.
Segundo o historiador Mateus Fiorentini conta que “esses prisioneiros eram mantidos em isolamento extremo e submetidos a diversas formas de tortura, física e psicológica, que incluíam restrições de necessidades básicas a ameaças de morte”.
“Foi uma estratégia que serviu à narrativa oficial até certo ponto. É possível considerar que a manutenção destes prisioneiros mantinha presente, no imaginário popular e na propaganda do regime, o discurso que apregoava o medo da ‘ameaça tupamara’, usado como fator de legitimação do terrorismo de estado praticado pela ditadura”, frisa o acadêmico.
Retorno à democracia
Após o fim da ditadura, Mujica e outros reféns foram libertados, assim como outros tupamaros que estavam em prisões comuns.
Boa parte deles se retomou a luta política, não através da guerrilha, mas sim da vida partidária, com a fundação, em 1989, do Movimento de Participação Popular (MPP), legenda que faz parte da Frente Ampla de esquerda.
A presença de muitos tupamaros no MPP faz com que muitos associem o partido à guerrilha, embora também existam militantes da sigla que sequer viveram aquele período. É o caso, por exemplo, do atual presidente do país, Yamandú Orsi, nascido em 1967 – quando o MLN-T já estava em ação.
“No caso do MPP, estamos falando dos tupamaros, de figuras que se identificam com os princípios tupamaros mas optaram por se desvincular do MLN-T, assim como outros setores da Frente Ampla que fazem parte do MPP”, comenta Fiorentini.
O historiador considera que “a herança tupamara se manifesta (No MPP) ao se reivindicarem enquanto movimento, não como partido. Segundo Mujica, as palavras nos separam, a ação nos une”.
