Passava das 14h de sábado (28/9), horário de Beirute, quando o partido político e grupo paramilitar Hezbollah confirmou a morte de Sayed Hassan Nasrallah, seu secretário-geral, no ataque promovido pelo exército de Israel à capital do Líbano na noite anterior. A confirmação encerrou horas de apreensão e dúvida, que se iniciaram pouco após o bombardeio – quando Israel afirmou que “o alvo” do ataque era Nasrallah – e se intensificaram por volta das 11h de sábado, quando as Forças de Defesa Israelenses (FDI) anunciaram sua morte.
A reação no Líbano foi imediata. A mídia local registrou que gritos com o nome do secretário-geral e choros foram ouvidos pelas ruas de Ghobeiry, um dos bairros que compõem os subúrbios de Dahieh, ao sul da capital – onde Nasrallah foi morto. Parte das pessoas recusava-se a acreditar. Outras iniciaram manifestações espontâneas. Minutos depois, começaram a aparecer os registros de tiros de armas de fogo, em vários pontos de Beirute. Os tiros disparados para o alto, que são um costume em ocasiões de luto e comemoração no Líbano, nesse caso sinalizaram as duas coisas: o luto pela morte do líder e também a “comemoração” de seu martírio, a morte em combate, uma honra segundo a visão de mundo islâmica xiita.
Junto ao choque, a incerteza que se abriu com a notícia tornou difícil reportar das ruas. Colegas – jornalistas locais e, especialmente, estrangeiros – relataram muita tensão, sobretudo no subúrbio de Dahieh. Eram moradores que não queriam ser fotografados ou dar entrevistas e mesmo manifestavam desconfiança e hostilidade em relação à imprensa, principalmente a mídia comercial ocidental.
Frequentemente retratado como uma figura simplória, grosseira, até mesmo limitada e agressiva por alguns veículos ocidentais, Hassan Nasrallah gozava de muito respeito não apenas entre a comunidade islâmica xiita, mas também entre líderes políticos e especialistas do mundo árabe – entre apoiadores, aliados, opositores e inimigos. Considerado um “menino prodígio”, assumiu o principal posto do Hezbollah em 1992, aos 32 anos, e é tido por aqui como uma figura de inteligência aguda, carismática e um estrategista insubstituível.
“Ele era menos conhecido e menos ouvido entre nós, aqui no Ocidente, e não se percebia a importância que ele tinha”, comentou Salem Nasser, professor de direito internacional da FGV-São Paulo e especialista em Oriente Médio, em transmissão ao vivo em seu canal do YouTube no sábado. “Ele foi o secretário-geral da libertação do sul do Líbano da ocupação israelense [em 2000], foi o secretário-geral da vitória relativa, mas muito importante, do Hezbollah sobre Israel na guerra de 2006 (…) e, depois, foi o secretário-geral da participação do Hezbollah na guerra da Síria, que foi fundamentalmente importante no combate e derrota do Estado Islâmico”, destacou.
Entre todos esses episódios – e outros momentos marcantes, como o enfrentamento do Hezbollah ao grupo Jabhat al-Nusrah, o braço da Al-Qaeda na Síria, quando esse ocupou parte do Líbano –, foi a guerra de 2006 a mais decisiva para que a popularidade de Nasrallah se ampliasse. Além disso, a criação de programas para implementação de escolas e hospitais em áreas xiitas é vista como parte de uma reorientação estratégica do Hezbollah, que garantiu mais sustentação popular à sua liderança. A percepção sobre seu papel de estrategista e organizador é reconhecida mesmo entre alguns setores política e ideologicamente libertários, que opõem-se à visão reacionária contra direitos das mulheres e população LGBT vocalizada por Nasrallah em diferentes ocasiões.
Com a morte de Nasrallah e de grande parte do primeiro escalão do Hezbollah por Israel, sobretudo nas duas últimas semanas, abrem-se muitas questões sobre o futuro da região. “A pergunta é se isso causará uma desestruturação do Hezbollah e por conseguinte, do bloco da resistência. Talvez, se possa descobrir que, apesar desse grande golpe, a resistência é bem maior do que isso e vá seguir. (…) Não me arrisco a dizer exatamente o que vai acontecer. Mas esse é o momento que estamos vivendo. Será que vai haver uma desestruturação? Será que ele [Hezbollah] vai seguir firme, como, me parece, está tentando demonstrar até agora?”, avaliou Salem Nasser, que adiciona ainda uma terceira possibilidade: a de que a morte de Nasrallah desencadeia uma reação ainda mais morte do bloco da resistência.
O Irã anunciou cinco dias de luto oficial pela morte do líder libanês. A cautela iraniana quanto às possíveis respostas – o país tenta há meses evitar uma escala regional – , agora é vista também com certa desconfiança. Ali Khamenei, o líder supremo iraniano, declarou no sábado que “o destino desta região será determinado pelas forças de resistência, com o Hezbollah na vanguarda”, sem detalhar a participação iraniana.
Noite de ataques e mais milhares de desalojados
O ataque israelense a Dahieh na sexta-feira (27/9) ocorreu por volta das 18h30, horário local. Os estrondos e nuvens de fumaça foram sentidos e vistos de vários pontos do país. No centro de Beirute, além de ouvir os estrondos, senti portas e janelas tremerem com as explosões consecutivas da primeira bateria de bombardeios. Já durante a noite, o exército israelense deu novas “ordens de evacuação” para diversos bairros de Dahieh e conduziu novos ataques, que duraram toda a madrugada. A mídia local registrou entre 30 e 50 ataques aéreos até a manhã de sábado.
Muitas famílias abandonaram suas casas durante a noite e a madrugada, em clima de pânico generalizado. O subúrbio de Dahieh, controlado pelo Hezbollah, é uma área residencial densamente povoada. Famílias contaram à imprensa local que conseguiram escapar minutos antes de os prédios serem atingidos, correndo ao som das bombas. Crianças entraram em estado de choque – um dos relatos é de um menino que ficou horas sem conseguir falar, após a fuga. Os bairros de Dahieh amanheceram destruídos, com ao menos seis prédios demolidos.
A maior parte dessas famílias não chegou aos abrigos – já insuficientes para acolher as centenas de milhares de desalojados pela intensificação da agressão na última semana. Muitas famílias dormiram ao relento – na orla de Beirute, na praia, na Praça dos Mártires e em frente à Mesquita Al-Amine, que permanece fechada. O drama tem ainda outras camadas, como a situação de sírios, que, segundo relatos, não têm conseguido acessar os abrigos oficiais.
Levantamento da Organização Internacional para Migrações da ONU divulgado na quarta-feira apontou que, somente entre os dias 19 e 25 de setembro, foram 90 mil pessoas desalojadas no país por conta dos bombardeios israelenses. Neste sábado, Filippo Grandi, comissário da ONU para refugiados, registrou em sua conta no X que há cerca de 200 mil desalojados no Líbano e outras 50 mil pessoas, entre libaneses e sírios, que já deixaram o país através da fronteira com a Síria. Já Nasser Yassin, ministro responsável pelo gabinete de crise do governo libanês, falou neste sábado em um milhão de desalojados no país pela agressão israelense.
Nem uma palavra
No sábado – enquanto os bombardeios israelenses continuavam no sul, no Vale do Beqaa e em outros pontos do Líbano, alguns deles atacados pela primeira vez –, o Ministério da Saúde libanês divulgou números atualizados sobre as vítimas dos ataques de Israel ao país. Desde 8 de outubro de 2023, foram 1.640 pessoas mortas – entre as quais, 104 crianças e 194 mulheres – e 8.404 feridas, disse o ministro, Dr. Firas Abiad. Ainda há muitos desaparecidos nos escombros e, por isso, o ministério alerta que os números irão subir. Os últimos onze dias, desde a escalada iniciada em 16 de setembro, concentram 1.030 mortos, sendo 87 crianças e 56 mulheres, e 6.352 feridos.
A barbárie dos últimos dias, no entanto, não provocou qualquer alteração no alinhamento irrestrito dos Estados Unidos, principal aliado e financiador da máquina de guerra israelense. Na última quinta-feira, Israel afirmou ter garantido um pacote de ajuda militar dos EUA, no valor de US$ 8,7 bilhões, incluindo US$ 3,5 bilhões para compras militares emergenciais e outros US$ 5,2 bilhões para sistemas de defesa aérea.
Em seu comunicado oficial sobre a morte de Nasrallah, Joe Biden reiterou que “os Estados Unidos apoiam integralmente o direito de Israel se defender contra o Hezbollah, Hamas, os Houthis e qualquer outro grupo terrorista apoiado pelo Irã”. Ele afirmou ainda que a morte de Nasrallah é uma “medida de justiça para suas muitas vítimas, incluindo milhares de americanos, israelenses e civis libaneses”.
Nem uma palavra do comunicado foi dedicada aos civis libaneses mortos por Israel – nem mesmo às mais de cem crianças.