Impediram a nossa marcha com um pelotão de choque, tiros e bombas de gás.
Com o nosso sangue, comemoram mais uma vez o descobrimento.
Matalauê, 27 de abril de 2000
Matalauê está me chamando (Alameda) romance-depoimento que pesquisa a saga dos índios brasileiros da carioca Vera Moll, representa uma verdadeira aventura literária, tanto por parte de quem o escreveu – o grande desafio narrativo da autora – como por parte do leitor que a partir deste momento está convidado a ingressar nesta expedição pelas mãos seguras e emocionadas da autora, que funcionarão como guias por tais territórios, vidas, vivências, lendas, relatos seculares, obras antigas, figuras históricas do passado e presente, praticamente desconhecidos de nós.
Mas não devia ser assim, uma vez que os nativos do continente estão na formação do povo brasileiro, enriquecendo-nos com suas línguas, costumes, nomes, comidas, objetos, artesanato, lugares, mas que a partir deste Matalauê ganharão um sentido novo, mais íntimo, pois é assim que Vera vai nos guiar pelos assombros e obsessões que a impeliram em dois planos: o externo, pelo texto apaixonado da “Outra Carta 500 Anos Depois”, lida na televisão pelo índio Matalauê, denunciando o extermínio e nossa responsabilidade e cumplicidade como brasileiros perante tal situação; e o interno: por ser ela própria descendente da personagem que ela chama Irene, “uma índia pega a laço”.
O dialogismo de Vera Moll é o recurso narrativo, o fenômeno estético por excelência deste romance-pesquisa que nos fará conhecer profundamente um a um de seus personagens – reais ou imaginários: um Pedro Álvares Cabral jovem e fogoso, a sensual índia Jaciá, o guerreiro Kirimã, Jorge, o pajé amigo, ou Antonio Overa, o índio erudito, os guias da autora na materialidade do presente no Rio de Janeiro, nos fazendo percorrer aldeias e vilarejos indígenas, discutindo o choque de culturas, as adaptações bem e mal sucedidas, a ameaça permanente de expulsão, suas profundas contradições e armadilhas; Irene, a trisavó da autora, a tal índia pega a laço, a quem Moll presentificará, dando voz e vida.
Divulgação
Autora de Matalauê está me chamando, Vera Moll
Sem contar os relatos e as sagas de cientistas, expedicionários, aventureiros, desbravadores, personagens profundamente envolvidos com os índios para o bem e para o mal, alguns pouco conhecidos do grande público, como o inglês Anthony Knivet, Jean de Léry, André Thevet, Auguste de Saint-Hilarie, Von Martius, Spix, Rugendas, Maximilian Wied Neuwied, o português Pero de Campo Tourinho e o General Couto de Magalhães. Sem contar Pierre Clastres e o etnocídio, o papel sangrento dos bandeirantes, a outra face da moeda que nos vendem eternamente luminosa.
Embora muitas vezes imaginemos o contrário, alguns grupos indígenas resistiram aos brancos durante séculos, bravamente, encarniçadamente. Sobre tudo isto e muito mais dará testemunho este Matalauê, mas – o mais importante – permitirá que os próprios índios façam sua defesa, eis a grande contribuição literária de Vera Moll: trazer à vida àqueles eternamente mortos e silenciados.
*Márcia Denser é escritora e autora. O texto foi publicado como prefácio do livro Matalauê está me chamando