O jornalista e escritor Gilles Lapouge morreu na última sexta-feira, dia 31 de julho. O texto abaixo foi originalmente publicado em 12 de agosto de 2000, no jornal O Estado de S. Paulo, quando ele lançou o livro eletrônico L’Amazonie, disponibilizado à época, gratuitamente, pela revista Magazine, do jornal Estadão.
Gilles Lapouge está ansioso. Aos 77 anos, o correspondente do Estado em Paris vive hoje duas novas experiências: lança um livro antes em português que em francês e, também pela primeira vez, põe um livro na Internet em vez de mandá-lo para as livrarias.
A partir de hoje, a revista eletrônica Magazine, do portal Estadão, torna disponível L'Amazonie. O download da obra inédita de Lapouge é gratuito e pode ser feito nos formatos HTML (que pode ser lido por qualquer navegador) e PDF (que exige o programa Acrobat Reader). O e-book é o primeiro publicado pelo portal.
“É uma visão da Amazônia por alguém de fora, mas um estrangeiro menos estranho do que os estrangeiros que normalmente vão à Amazônia”, afirma Lapouge. O jornalista francês já viveu em São Paulo por três anos (“Gosto muito dos cariocas, mas prefiro os paulistas”), fez outras duas grandes viagens pelo país e escreve para o Estado há 49 anos.
E, apesar de ter 13 livros publicados na França, afirma ser mais conhecido no Brasil que no seu país natal. L'Amazonie é o que tradicionalmente se chama de livro-reportagem. Mistura informação bruta, estatística, com análises e impressões e depoimentos colhidos pelo jornalista. Traz também 25 fotos de Helcio Nagamine, que o acompanhou durante a viagem pela Amazônia – inicialmente imaginada para a publicação no jornal, o que acabou não ocorrendo. Mas é uma reportagem ao modo de Lapouge: informa de uma maneira ensaística e bem-humorada.
“Passei quatro semanas entre Belém e Porto Velho. É um tempo um tanto curto. Teria sido melhor dispor de quatro meses, de quatro anos – e, ainda assim, teria sido rápido demais. Teria sido mais razoável percorrer a grande floresta em quatro séculos, mas, para isso, me desculpem, eu não teria tido tempo”.
Lapouge, que realizou a viagem em 1997, começa seu livro descrevendo as queimadas que encontrou pelo caminho. Na sua opinião, o fogo é o único elemento comum às diversas regiões que atravessou – os Estados do Pará, Rondônia e Mato Grosso. “Curiosamente, hoje em dia, fala-se menos dos incêndios do que em outros tempos. Ou porque as pessoas se habituaram a eles e até mesmo os ecologistas acabaram se cansando. Ou então porque outros lugares do planeta são candidatos ainda mais fortes do que o Brasil para receber esse prêmio da morte.”
Do fogo, alimentado pela floresta que se esvai, Lapouge vai para as cidades, cuja construção é, na sua opinião, uma especialidade brasileira. “Nos outros países, são necessários séculos para que uma cidade saia do chão – e, nos melhores casos, no Egito, na Suméria, na Grécia ou em Roma, foram necessários três milênios. ‘Três milênios para fazer Babilônia ou Ur?’, dizem os brasileiros, rindo. ‘Vejam só! Pois a gente, aqui, faz uma cidade num abrir e fechar de olhos’. Machadinho, por exemplo, 15 anos no máximo.”
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‘Teria sido mais razoável percorrer a grande floresta em quatro séculos, mas, para isso, me desculpem, eu não teria tido tempo’, diz Lapouge
Das cidades, Lapouge passa para os homens. Procura ouvir suas ideias, compreender suas obras, seus modos, suas religiões, suas escolhas, seus limites. Discute teologia com José – um pequeno proprietário endividado, frequentador do Tabernáculo da Fé –, cujas opiniões sobre o tema estão bastante distantes das de Lapouge.
“Não relato essa conversa com José apenas por achá-la pitoresca. Ela dá um testemunho da velocidade com que as seitas colonizam as cidades pioneiras da Amazônia, como o resto do Brasil, aliás. Às vezes, trata-se de uma ‘moda’. Uma noite, perguntei à garçonete do restaurante de Machadinho se ela era religiosa. Ela tinha acabado de sair da Igreja Católica e entrara, uns 15 dias antes, para uma seita. Qual delas? ‘Xi, eu esqueci, que horror! Mas eu tenho um prospecto lá em casa, amanhã eu falo para o senhor…’”, escreve.
O caminho segue, e Lapouge amplia, página a página, sua visão da Amazônia. Não é simples. “Há quem diga: ‘É melhor a savana arborizada do que a floresta tropical úmida. É melhor o Pantanal do que a Amazônia’. E é verdade que o Pantanal é uma festa, uma arca da Noé, uma árvore de Natal. É mais rico em animais de grande porte do que toda a Amazônia junta e oferece generosamente, a quem o visita, braçadas de flores, de bichos, de céu, de espaço, com uma generosidade que não tem mais fim. O Pantanal mostra seus tesouros. A Amazônia esconde os dela”.
Parte da viagem de Lapouge foi acompanhada pelo agrônomo Evaristo Eduardo de Miranda, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a quem deve boa parte das informações técnicas sobre desmatamento contidas no livro. Mas, por dez dias, o repórter andou sozinho pela região, sem um guia especializado. “Não é a mesma coisa”, diz.
Não é a primeira vez que o Brasil se torna assunto de um livro de Lapouge. Sua obra anterior, Besoin de Mirages, que é um livro de viagens pelo planeta, trata, entre outros lugares, da Amazônia. O país é também cenário central de Equinociais – Viagens pelo Brasil dos confins, esse publicado em português pela editora Pontes.
A tradução de L’Amazonie é de Lauro Machado Coelho. Na próxima semana, a revista Magazine põe no ar a versão original do livro – para quem quiser saber como é a Amazônia de Lapouge descrita em francês.