Primeiro a vida existe, depois a literatura se faz. Começo assim a pensar no segundo livro de Paloma Franca Amorim, que agora exercita a prosa longa, com seu primeiro romance: O Oito (Alameda, 2021). Vinda de uma consolidada escrita de contos e crônicas publicados em diversos suportes, do impresso ao digital, Paloma nos convida a mergulhar em uma outra margem de sua escrita.
Quando se abre um livro que foi cuidadosamente construído ao longo de anos, todos os elementos que o compõem nos dizem alguma coisa. É assim que tem que ser. Nesse sentido, a epígrafe do livro de Paloma, um trecho fisgado de Barthes: me pareço com esses garotos que desmontam um despertador para saber o que é o tempo, parece situar bem a motivação de seu romance. A epígrafe é a chave que revela o mistério atrás da porta: a torrente de pensamentos incontroláveis de uma narradora que, ao pisar novamente em sua cidade natal, é inundada por memórias que se transformam, pouco a pouco, num mosaico que forma a trama. A epígrafe também é, ao mesmo tempo, uma espécie de lanterna que ilumina os caminhos pelos quais se revelam o aparecimento e desaparecimento de uma constelação de personagens, e a cidade de Belém, capital do Pará, também é uma das personagens, por isso se transforma linda e melancolicamente no correr das páginas do livro.
Uma escritora residente em São Paulo é contratada para escrever um artigo numa revista de turismo sobre seu local de origem e por isso regressa a Belém onde passa duas semanas em um hotel para realizar o trabalho: “escrever sobre os prazeres e encantos da Amazônia oferecidos aos mais seletos visitantes”. Entre os deslocamentos no espaço e no tempo, o pulsar da vida em suas múltiplas formas surge em uma espiral de memórias. Eis o pano de fundo do romance, construído com ironia e lirismo.
Nas duas primeiras linhas, vemos o anúncio de um elo e de sua interrupção. Sabemos, desde logo, que a personagem narradora e Paulo vivem uma relação amorosa conturbada — saberemos mais adiante: conflito que se estende na conexão profissional do casal com a literatura e o teatro. A construção desse jogo de expectativas, de ausência e presença de Paulo na vida da narradora me parece um artifício que dialoga muito com o romance Cuaderno ideal, da escritora mexicana Brenda Lozano. Não só por isso, mas por essa trama de Penélope, que faz e se refaz em uma viagem que acontece dentro e fora da personagem narradora.
Os labirintos da memória são os caminhos encontrados pela protagonista para tentar capturar uma geração e uma cidade atravessadas pelas contradições. Uma juventude desejosa de vida e cercada pelas desigualdades sociais, pelos jogos de poderes mesquinhos e suas tragédias.
Apesar de tudo, jovens e suas energias inesgotáveis: “Caíamos juntos no meio dos asfalto, dobrados pela boemia, os joelhos iam que iam se ralando e as gargalhadas eram agudíssimas rompendo a tranquilidade da vizinhança”.
Essa efervescência juvenil, conduzida, muitas vezes, pelo álcool e outras drogas, esses jovens, que clamam pelo direito à cidade, pela liberdade de existir em sua diversidade, pelo direito de amar as pessoas independente de gêneros, tudo isso parece se comunicar, guardadas as devidas proporções, com outro romance: a viagem iniciática de María del Carmen pelas noitadas de Cáli, cidade colombiana em que se passa a história da personagem de classe média inventada por Andrés Caicedo em Viva a música!
Em O Oito, ao invés da salsa, jazz: In A Sentimental Mood, composta por Duke Ellington e interpretada por ele e Coltrane, parece nos sugerir o tom da narrativa, envolta em emoção e efeitos inesperados.
A autora opta pela narrativa em primeira pessoa. Nos coloca diante de uma narradora pouco confiável, que tece a história pela incerteza, pelo caminho não linear. Seus capítulos são fragmentários, sempre encabeçados pelo número 8. Por meio da reiteração, funde diferentes acontecimentos da infância, adolescência e percalços da vida adulta. Faz, assim, emergir dessa espiral de memórias uma experiência singular.
Em certo momento, diz a narradora consciente das territorialidades: “Viver na capital era muito diferente de viver nos interiores ou nas cidades ribeirinhas. A única coisa que talvez tivéssemos em comum era o rio a nos circundar as narrativas todos os dias de nossas vidas”.
Em outro, reflete: “Sempre me dá vontade de ficar em silêncio quando estou muito perto do rio, porque o rio fala a sua maneira”.
Entre sonhos e tensões, a escola, o bar e o teatro, a protagonista, cujo nome não é revelado, tem na pomada de andiroba e no armário bege de cozinha disparadores de memórias que evocam sua mãe, essa figura político-social feminina que é facilmente reconhecida no que a filósofa Aza Njeri chama de legado afrodiaspórico do matriarcado africano. É com o corpo, a palavra e o conjunto civilizatório que caminhamos para uma vida mais digna.
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A personagem narradora de O Oito parece tocar em nosso ombro ao nos dizer: “Estamos vivos, estamos vivos, sim”
Ao recordar um momento em que o amor se revela possível, a protagonista compartilha conosco: “Felizmente, ainda sobrava tanta vida no horizonte, era uma adolescente e estava tomada de felicidade porque a partir daquele email o futuro me reservava um grande amor”.
Ao combinar o contexto social e político da Belém de sua memória e os dramas pessoais pelos quais atravessa, a narradora nos conduz ao Oito Bar. Nesse estabelecimento aberto por Joana e seu companheiro Antonio, um estrangeiro de Portugal, as perversidades alimentadas pelos vícios humanos põem na roda as injustiças e o egocentrismo tipicamente brasileiros. Joana, movida pelo desejo de congregação do pulsar da vida na rua, talvez não enxergasse o mal que avizinhava seu comércio: “dizia achar bonito o nome do bar, porque o número oito, quando deitado, por exemplo, ao longo de uma folha de papel, torna-se o símbolo do infinito”.
Diante desse livro, sinto que minha leitura é como o próprio romance escrito por Paloma: uma busca por observar com atenção a vida em seu movimento de metamorfose. É impossível capturar o sentido total de tudo que nos cerca, mas como é bom nos perdermos nesses caminhos por descobrir.
Por fim, a personagem narradora de O Oito parece tocar em nosso ombro ao nos dizer: “Estamos vivos, estamos vivos, sim, quantas coisas em nós morreram para que pudéssemos estar vivos?”.
Finda a leitura, senti que esse livro fez ecoar em mim a mesma conclusão de Paulinho da Viola que, no documentário dirigido por Izabel Jaguaribe, nos revela: “Meu tempo é hoje: eu não vivo no passado, o passado vive em mim”.
*Evanilton Gonçalves é autor de O coração em outra América (Paralelo13S)