*Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, 27 de julho de 2003.
Como nascem as doenças? Uma boa resposta para essa pergunta não pode se contentar com a identificação de seu “agente causador” (o que parece resolver o problema especialmente no caso de infecções), mas também tem de contar como ela é compreendida, explicada e, principalmente, “popularizada”.
O médico, romancista e, neste caso, ensaísta Moacyr Scliar, no seu Saturno nos Trópicos — A Melancolia Europeia Chega ao Brasil (Companhia das Letras) mostra exatamente isso: como as doenças são fenômenos históricos e culturais, não apenas biológicos, o que é ainda mais radical quando elas são do “espírito” e não do “corpo”.
Logo na primeira linha, o cruzamento entre história e medicina fica claro: “Em outubro de 1347, uma frota genovesa vinda do Oriente” entrou no porto de Messina, na Sicília. “Não foi uma chegada festiva, antes um tétrico espetáculo: quase todos os marinheiros haviam morrido ou estavam agonizantes. De peste.”
Na segunda página do texto, Scliar continua com outra data: “Em 1621 foi publicado na Inglaterra um livro intitulado A Anatomia da Melancolia”. Na terceira, une as duas pontas: “A peste retorna à Europa, um livro sobre a melancolia é editado com grande sucesso. Pergunta: que há de comum entre esses fatos? A resposta mais óbvia é: nos dois casos trata-se de doença. Mas não é bem assim. A peste é, inquestionavelmente, uma doença. A melancolia, como veremos, às vezes é doença às vezes não é.”
Por ser uma doença, ainda que às vezes, a melancolia permite que Scliar recorra a inúmeras citações — são 233 notas só na primeira parte do ensaio (felizmente, colocadas no fim do texto), denominada O Renascimento da Melancolia, e mais 113 na segunda, A Melancolia Chega ao Trópico. Apesar do rigor, o livro é, frequentemente, engraçado.
A história da melancolia levantada por Scliar passa pelo rei bíblico Saul (que se divide entre as exigências da religião e as decisões que toma como soberano), mas toma forma mesmo com os gregos. Com escasso conhecimento do corpo humano (o estudo da anatomia só se desenvolve na Idade Média), Hipócrates via no desequilíbrio dos “humores” do corpo (sangue, linfa, bile amarela e bile negra) a causa das doenças.
Para Hipócrates, a melancolia seria a perda do amor pela vida, uma situação em que a pessoa aspira à morte como se fosse uma bênção. “Mas a melancolia é só isso, uma doença? Platão distinguia duas formas de loucura: uma resultante de doença, outra de influências divinas; não ocorreria o mesmo com a melancolia? A dúvida deu origem a uma famosa questão de Aristóteles, o Problema XXX: “Por que razão todos os que foram homens de exceção no que concerne à filosofia à poesia ou às artes são manifestamente melancólicos?”
CPFL Cultura/Flickr
História da melancolia levantada por Scliar passa pelo rei bíblico Saul, mas toma forma mesmo com os gregos
Outro momento importante é o do Renascimento, quando há também uma identificação entre o mal que os livros (e o conhecimento livresco) podem trazer. O grande personagem da literatura analisado por Scliar é, claro, D. Quixote, que paga caro pela leitura de inúmeros romances de cavalaria, que, “felizmente”, “conta com Sancho Pança”, que “tem o temperamento certo para cuidar de seu senhor”: “Não é melancólico como Quixote, nem sanguíneo, o que o colocaria em conflituosa oposição à melancolia (Júpiter contra Saturno), nem bilioso – os biliosos são pouco tolerantes.”
A melancolia, pelo menos na forma como é contada por Scliar, chega ao Brasil com outra doença, dessa vez a febre amarela, que provoca um surto em 1849, depois de desembarcar de um navio norte-americano procedente de New Orleans e Havana.
O livro, por aqui, é Retrato do Brasil – Ensaio sobre a Tristeza Brasileira, de Paulo Prado, publicado em 1928 e um sucesso editorial em seu tempo como fora A Anatomia da Melancolia.
Entre os “personagens” de Scliar no Brasil está Oswaldo Cruz, o impetuoso médico capaz de provocar a ira dos cariocas durante a Revolta da Vacina, que também costumava meditar – “melancólico recolhimento alternado com febril atividade: a bipolaridade típica dos modernos”.
No campo da literatura, Scliar discute personagens como Simão Bacamarte, o alienista de Machado de Assis, Brás Cubas (que, morto, escreve com a tinta da galhofa e a pena da melancolia), Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, Macunaíma, de Mário de Andrade, e Macabéa, de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector.
Quanto às doenças, especialmente as do espírito, ele enumera várias, da histeria ao etilismo (alcoolismo), passando pelo distúrbio bipolar. Quanto às drogas, Scliar não esquece o Prozac.
Todas essas citações do texto, na verdade, servem mesmo para dizer o seguinte: se o autor desta resenha fosse médico, receitaria o livro para os colegas — e, claro, para os pacientes.
Trecho
Por que haveriam de ser tristes os portugueses chegados ao Brasil? Por que teria desaparecido o entusiasmo que, no passado, os tinha feito atravessar mares nunca dantes navegados?
Uma explicação reside na mudança cultural. O “português heroico” do século XV desaparecera: a derrota na África, a morte de dom Sebastião, a união com a Espanha, a crescente influência da Inquisição, os governos despóticos e incapazes, o luxo, a desmoralização dos costumes, a corrupção — o padre Vieira dizia que a palavra furtar se conjugava de todas as formas na Índia portuguesa, uma escola de cobiça e luxúria.
Tudo isso alterara o perfil dos colonizadores. Diz Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala: “O português, já de si melancólico, deu no Brasil para sorumbático, tristonho.” Para estes, o Brasil não deixava de ser um exílio, “um degredo, um purgatório”; aqui padeciam da lusa saudade que acabava se transformando em doentia tristeza. Laura de Mello e Souza atribui à colônia brasileira uma nova imagem: não o Paraíso das utopias, mas Purgatório (à época, uma invenção ainda recente) onde a metrópole portuguesa lançaria sua gente indesejável.
O degredo transformava o Brasil no lugar de depuração dos pecados do Reino; lá, colonos desviantes, hereges e feiticeiros eram “duplamente estigmatizados por viverem em terra particularmente propícia à propagação do Mal”.