Um texto pouco conhecido de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) revela a atenção do jovem poeta, aos 21 anos, às transformações ocorridas na literatura brasileira no início do século passado.
Intitulado As Condições Atuais da Poesia no Brasil, foi publicado, em duas partes, pelo jornal Gazeta Commercial, de Juiz de Fora em 20 e 22 de julho de 1924. Nunca ganhou urna edição em revista acadêmica ou livro, apesar de marcar o “début” crítico de Drummond e de permitir conhecer, com precisão, como o poeta analisava as mudanças ocorridas no cenário cultural do País trazidas pela Semana de Arte Moderna de 1922.
Agora, Jorge Sanglard, organizador da antologia Poesia em Movimento (Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora) e funcionário da Funalfa, uma fundação cultural ligada à prefeitura de Juiz de Fora, está negociando uma republicação do texto com a família de Drummond.
“Ousemos proclamar, portanto, que há um nova poesia no Brasil. É essa, mesmo, a única afirmação possível num momento de incerteza”, afirma Drummond em determinado momento de seu ensaio.
A melhor sinopse do que o texto contém já foi feita e está publicada em Bibliografia Comentada de Carlos Drummond de Andrade – 1818-1034, do crítico (e tradutor de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust) Fernando Py. Na verdade, trata-se de uma ampliação de um trabalho que ia, anteriormente, até 1930. Segundo Py, o texto de Drummond “contém comentário aos livros A Flauta Que Eu Perdi, de Guilherme de Almeida, Epigramas Irônicos e Sentimentais, de Ronald de Carvalho, e Pauliceia Desvairada, de Mário de Andrade. Cita outros modernistas, como Ribeiro Couto, Cecilia Meireles e Manuel Bandeira, além de referir-se a Olegário Mariano, Onestaldo de Pennafort e Gonçalves Dias. Em linhas gerais, defende e faz apologia do modernismo”.

Carlos Drummond de Andrade, em 1970
Viagens de Carlos Drummond
Drummond, em 1924, conheceu pessoalmente os paulistas Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Gofredo da Silva Teles – que haviam passado por Belo Horizonte, onde morava o poeta, na famosa viagem a Minas Gerais com o artista e escritor francês Blaise Cendrais. Nesse ano, também começa a se corresponder com Mário de Andrade. O estudante de farmácia (ingressara em 1923), que fazia parte do grupo do Café Estrela, também frequentava Juiz de Fora, onde publicou os textos. Py lembra que um dos seus poemas, “Girassol”, deve ser “mais ou menos” autobiográfico e narra um fato ocorrido numa ida à cidade.
“É um material pouco conhecido, mas que tem uma importância grande como documento”, afirma Murilo Marcondes de Moura, estudioso da obra do poeta. Um dos fatos que ele destaca é que o texto marca a “independência intelectual” do poeta – que, apesar da apologia do modernismo, começa a discutir a poesia brasileira numa clara reverência ao parnasiano Olavo Bilac: “Emudecida a lira gloriosa de Olavo Bilac, operou-se no País uma grande transmutação de valores poéticos”, escreveu ainda Drummond.
O poeta também discute questões relativas ao nacionalismo da poesia nascente e advoga uma posição de universalismo da poesia: “As palmeiras de Gonçalves Dias não nos farão esquecer as paisagens ‘civilizadas’ da Europa (e vice-versa).”
Alguns dos temas tratados seguiram fazendo parte das preocupações de Drummond, em suas colaborações para o Diário de Minas e para A Revista, órgão modernista de Belo Horizonte dirigido, entre outros, pelo poeta.
A relação de Sanglard com o texto começou por intermédio do também jornalista Wagner Corrêa de Araújo. Araújo, no final dos anos 1960, foi procurado pelo poeta Affonso Romano de Sant’Anna, que preparava uma tese sobre Drummond. Araújo pediu ajuda ao próprio poeta, que indicou o jornal de Juiz de Fora para o qual colaborara. Drummond diz, então, que os jornais da cidade (que vivia um bom momento econômico) tinham uma tradição de “acolher gente moça, naturalmente sem pagar níquel”, mas que não tinha cópia nem gostaria de revê-los, pois tal lhe cheirava “a exumação de cadáveres”. Diante a resistência do poeta, Araújo resolveu guardar o bilhete e esquecer “o cemitério de papel”.
Recentemente, em meio as comemorações do centenário de nascimento do poeta, Araújo procurou Sanglard e sugeriu que ele tentasse reencontrar alguns textos de Drummond. Sanglard encontrou-os numa coleção de jornais que pertencia à Associação Comercial de Juiz de Fora. Depois de ler a crítica do jovem Drummond, Affonso Romano de Sant’Anna afirmou que o texto ajuda a entender melhor o clima de revisão das ideias nos anos 1920”. “Percebe-se também o jogo de alianças estéticas que estava se armando. A questão do nacionalismo e do universalismo é importante.
Drummond sacou que o modernismo não poderia ser xenófobo, queria algo mais amplo, na linha de Machado, que, aliás, ele valoriza.”
Livre entre os mais livres, é o sr. Manuel Bandeira
Romano de Sant’Anna, que é autor de Carlos Drummond Andrade: Análise da Obra, acha que o texto “As Condições Atuais da Poesia de Drummond”, apesar de “juvenil”, traz “sinalizações importantes” do que pensava o poeta. “Drummond reconhece o valor de Olavo Bilac, mostra-se seu fã, o que era sinal de coragem e individualidade crítica”, afirma. “Sobre a questão da literatura regional que critica, ele não poderia prever, nem ninguém, que um gênio como Guimarães Rosa poderia reelaborar esse material num nível mítico-planetário.” Drummond escreve que “seria lamentável” reincidir “no erro de fazer literatura com o sertão, inculto, primitivo e rudimentar!”
Sant’Anna acha também que Drummond exagera nas críticas a Monteiro Lobato, talvez ainda influenciado pela polêmica em torno da pintora Anita Malfatti, duramente atacada pelo escritor no artigo “Paranoia e Mistificação”. “Os elogios a Guilherme de Almeida são exagerados, mas a percepção da singularidade de Cecília Meireles é ótima. E o melhor: sacou como a poesia de Oswald de Andrade era algo tópico e de fôlego curto. Aliás, ali já estava a sua opção: era muito mais Mário de Andrade.”
Sobre Cecilia Meireles, Carlos Drummond escreve que ela se afirmou com “Nunca Mais” e “Poema dos Poemas”. “Sua alma atormentada pede as consolações do extremo misticismo, atingindo regiões hiperbóreas a que, até agora ninguém havia chegado em nossas letras.” Outros poetas passam pela análise do crítico Drummond. É o caso de Manuel Bandeira. “Livre entre os mais livres, inquietante na largueza e nos seus ritmos e na amargura do seu pensamento, é o sr. Manuel Bandeira, o primeiro em ordem cronológica dos nossos modernos poetas, pois que o seu Carnaval é a publicação anterior a toda nossa agitação literária. Nele a tortura interior, surgindo face do público, tornou-se vulgar. Dir-se-ia que a sua face faz caretas de dor. Isso não impede de manejar as cordas da sátira e ser impiedoso para com os sapos do parnasianismo.”
Além de comentar outros poetas, como Olegário Mariano e Ribeiro Couto, Drummond ainda defende que a poesia vivia um momento especial. “Os espíritos gozam de tamanha liberdade que se embriagam. Cada um seguiu o seu rumo, e os rumos foram desencontrados. Os poetas mais representativos do momento são independentes entre si, o que é louvável (…). É preciso aproveitar a todo transe a liberdade!”
Os poetas pelo poeta
Olavo Bilac
Bilac foi, mesmo, o único artista de moldes parnasianos de que conservamos o nome livre de irreverências. Preservou-o a alta nobreza dos seus versos, que tão cedo não serão esquecidos. (…) Respeitemo-lo com razão. E quando não agissem outros motivos, sua obra seria considerada ao menos pela feição nacionalista de muitos dos seus poemas, sabido que o nacionalismo é, paradoxalmente, uma tendência de peso na moderna literatura brasileira.
Alberto de Oliveira
Já o mesmo não acostece com o sr. Alberto de Oliveira, que vem sendo impiedosamente atacado, e a quem, com boa justiça, não poderíamos desejar melhor sorte. Em nenhum outro poeta a lira parnasiana foi mais insensível, nem correspondeu menos às nossas necessidades espirituais.
Oswald de Andrade
Tendo viajado muito o sr. Oswald de Andrade cansou-se da Europa. Daí o sabor selvagem de suas ideias, que ele faz questão de chamar de ideias de bárbaro. Acontece que o sr. Oswald é um bárbaro corrompido pela inteligência.
Mário de Andrade
O sr. Mário é um regionalista urbano, segundou frase de um dos nossos melhores críticos. Vivendo em São Paulo, tornou-se o cantor das avenidas paulistas. Eis aí o poema da cidade, escrito pelas mãos nervosas de um homem que sentiu a alma polimorfa das ruas.
Guilherme de Almeida
É a esse desvirtuamento da campanha modernista no Brasil que brilhantemente responde o sr. Guilherme de Almeida, publicando as suas vivas e saborosas “Canções Gregas”. Este poeta malicioso e ágil nos ensina que, sob o céu azul, a alma dos homens tem mil e uma vivendas, e ama transportar-se às mais diversas regiões.
Ronald de Carvalho
Em frente a nossas paisagens, o sr. Ronald de Carvalho tem um sorriso de tenra melancolia, mas nas dobras desse sorriso há o quer que seja irônico (ou seja ilusão de um leitor mal-avisado).
Texto originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo de 9 de novembro de 2002.