Texto publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 6 de janeiro de 2001, com o título “O novo romance do embaixador Skármeta”.
É um romance latino-americano e contemporâneo, que transcorre na Europa de 1913. Assim o escritor chileno Antonio Skármeta (60 anos em 2001) define As Bodas do Poeta (Record), lançado no Brasil. Seu autor vive na Alemanha, em Berlim, onde exerce a função de embaixador do Chile, nomeado em maio de 2000 pelo presidente socialista Ricardo Lagos — a mesma Alemanha em que Skármeta se exilou em 1973, quando o golpe militar que derrubou e matou o presidente Salvador Allende levou o general Pinochet ao poder.
“O presidente Lagos queria intensificar as relações e achou que minha nomeação daria uma aspecto cultural à embaixada de Berlim”, diz ele. “O fato de eu ser um escritor conhecido na Alemanha deu à nomeação uma grande repercussão na imprensa local.”
Para Skármeta, a vitória de Lagos permitiu que o Chile voltasse a integrar “a grande família da política humana”.
Esse é o primeiro livro de Skármeta desde – ele mesmo o trata assim, sem nenhuma espécie de cerimônia ou modéstia aparente – “o sucesso mundial de O Carteiro e o Poeta”, obra levada ao cinema por Michael Radford (vencedora do Oscar de melhor filme estrangeiro), ajudando a ampliar ainda mais o alcance da obra do escritor chileno. A presença do “poeta” no título, no entanto, não implica relação direta ou qualquer gênero de continuidade. Trata-se de uma coincidência com o título em português – muito conveniente, diga-se, para a editora.
Se traduzido diretamente do espanhol, seu livro anterior deveria se chamar O Carteiro de Neruda, pois diz respeito exatamente à relação entre o poeta Pablo Neruda e seu carteiro, durante os anos do exílio.
Sejam elas forçadas, como no período Pinochet, sejam elas queridas, como agora, as estadas de Skármeta na Europa fazem lembrar o seu novo romance, também um retomo ao Velho Continente, mas numa perspectiva nitidamente latino-americana. As Bodas do Poeta narra a história de um banqueiro austríaco chamado Jerônimo Frank, um boêmio que tudo larga para viver na Costa da Malícia, na ilha de Gema, pequena e empobrecida, situada no mar Adriático. Lá, deve se casar com Alia Emar, a mais bela jovem do lugar.
O casamento, no entanto, enfrenta dois problemas: o primeiro é o amor de Alia Emar, cujos olhos estão voltados para Esteban Coppeta, um nativo, que, com o irmão Reino, carrega no sangue a herança de um herói anarquista. O segundo é a Guerra Mundial, a primeira, que está cada dia mais próxima. A ilha tem seus devaneios de independência em relação ao Império Austro-Húngaro, o que se choca diretamente com o expansionismo territorial e militar que resultou no conflito que durou de 1914 a 1918 e que teve seu início exatamente na região balcânica.
Reino Coppeta lidera um motim dos ilhéus, em que soldados do Exército austro-húngaro são mortos, poucos dias antes da cerimônia. Um jornalista ambicioso narrara a história e o casamento, em que nada ocorre exatamente como o planejado. E o sonho de libertar a ilha do Adriático se transforma em necessidade imperiosa de deixar a região, para evitar um massacre por parte dos militares austro-húngaros. Um grupo de 12 ilhéus tem de deixar a ilha, seguindo para a Itália, onde obtêm um escandaloso e único passaporte coletivo, com a foto de todos eles, permitindo que emigrem apenas para o país que lhes concedeu o documento: o desconhecido que atende pelo nome de Chile.
Sexo
Nem só de problemas políticos e amorosos se amarra uma história latino-americana, ainda que seja contemporânea e se passe muna Europa distante tanto no tempo e quanto no espaço. Skármeta procura apimentar a história transformando a ilha num paraíso mítico, exacerbando as referências sexuais nas mais simples ocasiões sociais.
“Na Costa da Malícia a música festiva para toda grande ocasião”, escreve, “é a turumba, o alegre ritmo dançado em duas modalidades”. Na primeira, de salão, no compasso de pianos e violinos, os homens “seguram a cintura das mulheres por trás e, com um movimento de vaivém que aprendem na escola primária, realizam ondulações incomuns na Europa, na Africa e até na América Latina”.
A outra modalidade “é chamada eufemisticarnente de ‘prostibulária’”, mas conhecida correntemente por outro nome, em que os varões tiram as mãos da cintura e as levam ao peito das mulheres. “Elas, compreensivas, já terão feito urna visita ao toilette e tirado os brassieres para que nada impeça a esponta-neidade do contato.” Tudo depende, é claro, da quantidade de vinho servida pelos anfitriões e da temperatura da noite, mas algumas dessas festas terminam com os homens levantando as calcinhas das damas, “agitando-as ao alto como quem se despede de uma pessoa que se afasta de trem”.
Parentela
Skármeta recorre à história pessoal para contar esse drama. Assim como Carlos Fuentes, em seu Os Anos com Laura Díaz (Rocco), busca na trajetória dos que imigraram para a América um sentido para o mundo em que nasceu e viveu. O mexicano Fuentes invoca a avó; o chileno Skármeta, o avô. “Dedico este livro, acima de tudo, aos meus avós, pois – mortos e enterrados no norte do Chile – não podem mais desmentir o que aqui é contado”, escreve Skármeta no prólogo da edição (o livro foi lançado nos países de língua espanhola em 1999).
O chileno de Antofagasta é descendente de migrantes de uma pequena ilha do sul da Croácia. A história do livro é, na verdade, uma reconstrução ficcional de fatos que levaram um grupo dos moradores da ilha a deixar a Europa para se estabelecer na América, entre eles o pai de Skármeta, que, na juventude, também enfrentou um poderoso dom Jerônimo.
“E uma história de amor, é uma história familiar, mas é também um épico”, explicou Skármeta, depois de lançar seu livro na Alemanha. “O que se passa, num local em que convergem tantas culturas, como ocorreu no Chile e em outros países latino-americanos, é que, para saber quem você é, tem de inventar um passado”, acha ele. Retornar ao mar Adriático é a forma que ele diz ter encontrado para reconstruir esse passado, agora já totalmente livre dos testemunhos dos imigrantes, mas profundamente grato a eles.
A identidade latino-americana, acredita Skármeta, seria assim construída, numa mescla de passado inventado e língua herdada, claro que também modificada pelas inúmeras outras línguas e tradições trazidas por imigrantes europeus ao continente. “Minha identidade é minha língua, minha maneira de contar.”
Entretanto, a história de As Bodas do Poeta não surgiu apenas para explicar o Chile, mas também para entender a Europa. O autor conta que decidiu escrever o livro quando iniciou-se a crise nos Bálcãs, com o desmantelamento da Iugoslávia. “Essa guerra tão atroz e ao mesmo tempo tão contemporânea”, como define Skármeta, lembrou-lhe da origem de sua família, que, na diáspora que antecedeu a Primeira Guerra Mundial, dividiu-se entre o Chile e os Estados Unidos – e assim começou toda a história.
A reinvenção da história
A reconquista da liberdade, que permeia o romance de Antonio Skármeta, As Bodas do Poeta, permite projetar um futuro.
Num mundo em que o conhecimento – e não a sabedoria – é que tem valor, os escritores latino-americanos insistem em invocar seus avós, como se fossem musas ou demiurgos prontos para trazer um caminhão de inspiração e fantasia. É esse o caso do veterano Carlos Fuentes, com seu admirável Os Anos com Loura Díaz, é também o do sexagenário Skármeta, com o respeitável As Bodas do Poeta.
Os dois, assim, mantêm a filiação à história oral, a uma tradição familiar, apesar de tudo, de toda a velocidade do mundo, de todas as suas transformações. Pode-se ainda achar mais traços comuns nas duas obras. A primeira começa nos Estados Unidos, onde um fotógrafo depara-se com a imagem de um antepassado num mural do artista Diego Rivera na decadente Detroit, outrora um polo industrial de fazer inveja a todo o planeta.
A segunda é toda dedicada a um momento crucial da região dos Bálcãs, o barril de Pólvora do século 20, já não se contentando em inventar, fantasticamente, um passado para o Chile, país de origem do escritor que quer também reescrever a história da Europa, assim como Fuentes põe de volta os mexicanos na história norte-americana.
Também é curioso o fato de tanto um quanto outro terem escrito seus livros às vésperas de grandes mudanças políticas nos seus respectivos países: Fuentes antes da vitória de Vicente Fox, pondo fim à dinastia do PRI (Partido Revolucionário Institucional), e Skármeta antes da eleição de Ricardo Lagos para a presidência, consolidando a abertura democrática pós-Pinochet.
Os dois livros (embora Fuentes negue ser um otimista) exalam um cheiro de felicidade, de liberdade reconquistada, de Possibilidade de entender o passado e, especialmente, de projetar um futuro.
A história dos irmãos Copetta e de uma mulher fascinante, tanto pelas descrições físicas quanto pelas atitudes que definem seu contorno psicológico, como o é Alia Emar, dão glória a um período que foi, sobretudo, dor. Há a luta anti-imperialista, há uma derrota momentânea, há a conquista sacrificada de uma nova terra.
A aventura – que na época em que ocorreu não passava da mais pura necessidade – agora ganha contornos épicos e mágicos, seguindo uma tradição da literatura de língua espanhola de grande parte da América Latina.
Essa marca dolorosa, no momento quase centenária (no caso de Fuentes, mais que centenária), pode ser lida como um sinal de predestinação para um futuro de conquistas, desde que venha acompanhada de sinais positivos – liberdade; inclusive sexual; coragem; companheirismo etc.
Assim ocorre em As Bodas do Poeta. A dúvida que fica na leitura tanto de Skármeta quanto de Fuentes é quanto tempo mais será possível ver tanta “glória no passado, tanta lágrima na história”, como um dia batucou Paulo Vanzolini, uma vez que a integração do imigrante europeu já parece totalmente consolidada, as famílias diminuíram e é difícil continuar a imaginar um continente povoado por esses avós e antepassados que são, sobretudo, entidades míticas.
Talvez, e isso é só uma especulação, esse gênero de romance esteja com seus dias contados. Enquanto ele não morre, o melhor é aproveitar.
Trecho da obra:
A agitação nupcial de Jerônimo e Alia Emar ocupou grande parte das línguas e dos prognósticos dos ilhéus, e teria continuado nos alvoroços da frivolidade e da perfídia se, cinco dias antes da cerimônia de casamento, do alto da torre da igreja, onde o sacristão e seus adolescentes acólitos arrumavam os véus festivos e as bandeiras papais, Reino Coppeta, filho do decapitado herói anarquista, não tivesse percebido com olhos de falcão e instinto político uma estranha barcaça que se aproximava da costa, contornando-a no mais clássico e sibilino estilo Jericó.
Reparou que a bombordo e a estibordo carregava canhões e, embora não tivesse distinguido nenhum emblema, percebeu que eram soldados do Império Austro-Húngaro que vinham recrutar jovens ilhéus ou degolar desertores.
A primeira reunião dos notáveis para tratar do assunto aconteceu nas alturas eclesiásticas, e uma rápida averiguação revelou a Reino que o terror aos militares fazia com que o grupo de católicos que o rodeava achasse que não era desprezível a ideia de entregar-se e vestir botões dourados, sabre e uniforme de figurino, e receber salário de funcionário público. Os bastardos, ruminou o filho do prócer, preferiam calçar botas de campanha em vez de enfrentar o patíbulo conto desertores.
Endoidecido pelo sangue dos Coppeta, que naquele instante fervia asna cabeça, Reino perdeu a fala suave, chamou o sacristão e seus sequazes de “cagões” e com um salto disparou do púlpito para a rua poeirenta, para recrutar milícias entre os pescadores e vinhateiros.