O livro de contos de Dalton Trevisan, Capitu Sou Eu (Record, 112 págs.), remete em seu título, a um só tempo, ao romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, e à síntese causídica de Gustave Flaubert, autor de Madame Bovary – “Bovary c’est moi”, “Bovary sou eu”. Mas quem é Dalton Trevisan?
Dalton Trevisan, nascido em 1925 e que talvez nunca venha a ser entrevistado, recluso em Curitiba, é o velho e estranho contista de sempre nessa nova obra, que não surpreende, mas também não decepciona. E que consegue, a partir de clichês, tensões programadas, bom humor e, ainda, muitas citações (muitas vezes à própria obra, como é o caso de A Polaquinha), contar as histórias mais simples com elegância e transformar as referências literárias sofisticadas em agressões que tiram o equilíbrio do leitor, despertando paixões momentâneas e perguntas duradouras, sem, necessariamente, fazê-lo descer (ou cair) de todas as suas convicções e preconceitos.
Embora o conto que abre o livro, “Capitu Sou Eu” (leia trecho abaixo), permita uma associação direta com o que o encerra, “O Menino do Natal” (ambos tratam da sedução entre mulheres mais velhas e homens jovens), talvez seja melhor começar por um dos poemas que compõem a coletânea, “Cantares de Sula mita”, que remete a outro clássico da literatura erótica, o Cântico dos Cânticos, de Salomão, um dos livros que integram a Bíblia.
O que é um pouco mais que sugestão no texto bíblico torna-se bem mais explícito em Trevisan. Sulamita, no caso, não pede que seu parceiro derrame vinho em seu ventre, mas que ele murmure “gentilmente palavras porcas”, que “bata mordaxingue por favor”, que fungue no cangote e a agarre “todinha”. Caso contrário, aí, sim, ela há de morrer. Mas morrer mesmo, morrer “mortinha de amor” ou morrer apenas um pouco, como descreve o orgasmo a língua de Flaubert?
Sulamita, em seu segundo cantar, explica: “moça honesta já não sou/ e como poderia/ se você me corrompeu até os ossos”; “como seria honesta/ se você me deitou nos teus braços” e… Enfim, o resto fica para quem se deparar com o livro.
Ninguém é ou ao menos parece honesto nos contos de Capitu Sou Eu. Todos jogam ou desejam parecer jogar. A mulher que não chora nem veste luto quando o marido caminhoneiro morre de mal súbito o faz porque realmente acredita que o companheiro matou a filha “de propósito” ou porque, como achava o caminhoneiro que não se via pai da menina, não tinha nele “o único homem”? A moça de “A Gente se Vê”, que abre a porta de casa para o narrador que encontrou no ônibus, depois de um longo tempo, é uma “matadora” ou simples caça do sujeito?
O conto em que a dúvida fica ainda mais forte é “Sapato Branco Bico Fino”, que narra a trajetória de um homem que, aparentemente, se acredita um gigolô, mas que, pouco a pouco, se revela outra coisa.
Ele se casa, e a mulher não se incomoda com a vida que ele leva. Segundo o suspeito narrador, ela deixou de perguntar quando ele voltaria depois que, certa vez, ele soltou um “já te alcanço” e levou três dias para chegar. Mas será que ele não foi prostituído pela mulher, já que era assim que ganhava a vida e, portanto, sustentava as crianças? Será que não era ela a cafetina do próprio marido? Afinal, ele mesmo conta, não poderia ser considerado o pior dos maridos: “Até hoje levanto cedinho, faço o café, levo pra mulher na cama Dava banho nos filhos pequenos, trocava fralda, vestia, levava pra escola”.
Como Trevisan é econômico nas palavras, nas descrições e no desejo de ser “visto”, nunca é possível confiar no que está escrito. Nesse sentido, o título do livro talvez não ficasse mal se fosse Bentinho Sou Eu. Porque é Bentinho, o Otelo brasileiro, conforme definiu Helen Caldwell, o autor das suspeitas memórias que acusam Capitu, mas não lhe dão voz em nenhuma circunstância.
A sexualidade não é a única forma de exibição deste jogo duplo em Trevisan nem é este o seu livro em que Joões e Marias mais “abusam” e são “abusados”.
Há outras questões, outras violências que uns personagens impõem aos outros. E, muitas vezes, elas todas se misturam. No outro poema (ou outro conto na forma de poema) que integra o livro, “A Navalha de Van Gogh”, a primeira linha pergunta: “Do que eu mais gosto em você?”, dúvida que o narrador vai tentando responder até a estrofe final: “Ai, essa orelhinha petulante,/ mas tão e tanto que pede/ não trinos ou tercetos,/ (…)” – mas, sim, o afiado instrumento que está no título do texto.
Quanto ao primeiro conto, ele começa com a discussão em torno de Capitu. Discussão entre a professora, que a defende, e o aluno, que a ataca. Os dois vão se encontrar num clichê, ou seja, num dia de chuva. E ela ficará dependente (especialmente do ponto de vista sexual) dele. Quem manipula quem? Varia, também, do que o leitor acha do romance: é Capitu que trai Bentinho ou Bentinho que inventa a traição? Ao fim e ao cabo, ela acaba usando, ingênua e ironicamente, uma revista literária para tentar reconquistar o garoto.
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Trecho
A professora de Letras irrita-se cada vez que, início da aula, ouve no pátio os estampidos da maldita moto.
Aos saltos de três ou quatro degraus, lá vem ele na corrida, atrasado sempre. Esbaforido, se deixa cair na carteira, provocante de pernas abertas. Mal se desculpa ou nem isso. Ela reconhece o tipo: contestador, rebelde sem causa, beligerante.
O selvagem da moto é, na verdade, um tímido em pânico, denunciado no rubor da face, que a barba não esconde. E, aos olhos dela, o torna assim atraente, um cacho do negro cabelo na testa.
Na prova do curso, o único que sustenta a infidelidade de Capitu. Confuso, na falta de argumentos, supre-os com a veemência e gesticulação arrebatada: infiel, a nossa heroína, pela perfídia fatal que mora em todo coração feminino. Insiste na coincidência dos nomes: Ca-ro-li-na, da mulher do autor (com os amores duvidosos na cidade do Porto), e o da personagem Ca-pi-to-li-na…
A traição da pobre criatura, para ele, é questão pessoal, não debate literário ou análise psicológica. Capitu? Simples mulherinha à-toa. “Mulherinha, já pensou?”, ela se repete, indignada. “Meu Deus, este, sim, é o machista supremo. Um monstro moral à solta na minha classe!” E por fim: “Ai da moça que se envolver com tal bruto sem coração…”.
Na prova escrita os erros graves de sintaxe e mera ortografia já não são disfarçados pelo orador com pedrinhas na boca. E por que, ao sublinhá-los na caneta vermelha, tanto a perturbam as garatujas canhestras?
Publicado original no jornal O Estado de S.Paulo de 12 de outubro de 2003. Título original: “‘Capitu Sou Eu’, diz o novo Dalton Trevisan”.