Os conhecimentos que os povos da floresta guardam
Livro organizado por Manuela Carneiro e Mauro Barbosa registra informações e histórias de índios e seringueiros de uma das regiões com maior biodiversidade do planeta
Textos publicados originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, 14 de julho de 2002. Título original: “Conhecimento do Alto Juruá ganha enciclopédia”.
O Alto Juruá, região situada no extremo oeste do Acre, é considerada uma das áreas de maior diversidade biológica do país, expressa não apenas pela zoologia como também pela vegetação; o clima no Alto Juruá é mais úmido do que na maior parte da Amazônia brasileira; a bacia do Rio Juruá “apresenta uma configuração de drenagem dendrítica, lembrando raízes que se espalham em todas as direções”.
Além disso, o Alto Juruá tem, e isso é tão importante quanto a biodiversidade, uma diversidade cultural admirável, pela aproximação e troca de conhecimentos entre seringueiros e variados grupos indígenas: Kaxinawá, Ashaninka, Katukina, Jarniitã e Arara, além dos que recebem a classificação de “índios isolados”.
Cada um desses nomes indígenas cheios de ás e dáblios pode ser grafado de outras maneiras, dependendo das regras de padronização seguidas. A adotada acima, devidamente justificada (por razões históricas, ligadas à produção científica sobre esses grupos e à forma como eles próprios se identificam), é a mesma utilizada pela Enciclopédia da Floresta – O Alto Juruá: Práticas e Conhecimentos das Populações (Companhia das Letras), organizada por Manuela Carneiro da Cunha e Mauro Barbosa de Almeida.
No trabalho, os conhecimentos dos habitantes do Alto Juruá, indígenas e seringueiros, somam-se aos de biólogos, climatologistas, geólogos, antropólogos e outros estudiosos que pesquisam a região, reunindo um total de 38 autores, de artigos, mapas, fotografias e desenhos.
O uso do termo “enciclopédia” é justificado da seguinte maneira pelos organizadores: “o conhecimento que as populações têm da floresta que habitam é verdadeiramente enciclopédico, no sentido de cobrir áreas variadas: desde a madeira linheira que serve para a mão-de-força de uma casa; as enviras que prestam para amarrá-la; as fruteiras que o porquinho ou o veado preferem e debaixo das quais é quase certo caçá-los; os solos ideais para plantar milho; as iscas preferida do caparari (…). Não que cada um saiba o mesmo que todos os outros: cada qual aprofunda conhecimentos em certas áreas”.
Segundo o mesmo texto, o conhecimento descrito ou evocado “é o somatório de saberes individuais, e entendemos por saber formas de pensar, investigar, inovar, tanto quanto conhecimentos e práticas estabelecidos”.
Conhecimento povos da floresta x conhecimento científico clássico
Na introdução à obra, Manuela e Almeida narram um pequeno confronto entre o conhecimento científico clássico, representado por um biólogo, Adão Cardoso, e o tradicional. Adão queria explicar a diferença entre o que tem vida e o que não tem. Sua lógica esbarrou na lógica dos seringueiros numa questão só aparentemente simples. Os organizadores da enciclopédia, assim, se perguntam: “como se pode entender uma divergência como a que acabamos de contar, entre um biólogo e um seringueiro do Alto Juruá, sobre o que é e o que não é vivo? É possível haver entendimentos sobre a natureza tão diferentes entre si?”. A resposta é que sim. “O conhecimento da natureza, no Alto Juruá e alhures, depende de pressupostos e de práticas, e essas dimensões não se separam, antes se informam e se enriquecem mutuamente.”
Reprodução
Livro registra informações e histórias de índios e seringueiros de uma das regiões com maior biodiversidade do planeta
A enciclopédia, assim, defende a tese de que o conhecimento das populações da região é um patrimônio cultural, que precisa ser respeitado e preservado. Isso não significa, contudo, que deve ser congelado.
Como mostra um exemplo citado logo no início do trabalho, esse é um conhecimento não apenas pautado pela observação, mas também pela experimentação: um menino percebe que, entre seus seis pês de graviola, um apenas dava o fruto – os outros eram atacados. O menino observou que o pé que dava fruto estava festado por uma formiga chamada tapiba. Então, colocou a formiga em mais dois pés, atuando como um dentista, mantendo um grupo de controle de três pés. Trata-se de um saber em mutação constante, que se acumula e que também se transmite.
A obra é dividida em partes. Uma delas trata da história dos habitantes e da região, recorrendo também a análises ambientais. Em seguida, o livro detalha os ciclos e calendários das populações locais. Neste momento, destacam-se os desenhos sobre o calendário ashaninka realizados por Moisés Piyãko, presidente da Associação Ashaninka do Rio Amônia.
Verão e inverno da floresta
Além de revelar as diferentes paisagens da região, conforme as mudanças climáticas, Piyãko apresenta uma seleção de floradas das árvores que indicam a ocorrência do verão e do inverno – boa parte delas reproduzida nesta página.
Seus desenhos também são fundamentais para a parte que explica os sistemas de classificação dos Kaxinawá. Há também uma parte dedicada a atividades práticas (subdividida entre construir casas, botar roçados, recolher seringas, caçar, cozinhar, comer e ainda sobre o uso do cipó entre os seringueiros) e ainda um dicionário de bichos e plantas da região – reduzido em um terço. É que a enciclopédia, com suas mais de 700 páginas, não está completa: muitas informações foram propositadamente omitidas, por razões éticas.
Elas, na opinião dos autores, poderiam resultar em processos econômicos que não se reverteriam em benefícios para os moradores, mas que poderiam se transformar em lucros gigantescos para grandes empresas.
“Tudo o que foi passível de eventual interesse comercial para a indústria farmacêutica, como sementes, corantes, defensivos agrícolas, foi suprimido da versão final”. A legislação de direitos autorais não protege ideias nem favorece o pagamento de conhecimentos coletivos. Finalmente, vale a pena registrar que os autores abriram mão de seus direitos em benefício de associações de seringueiros e de índios e que tudo o que foi publicado contou com o consentimento dos grupos envolvidos na pesquisa.
Trecho
A primeira tarefa agrícola entre os Kaxinawá é o processo de seleção dos terrenos para botar o bai kuin (roçado de terra firme ou verdadeiro). Faz-se um pequeno “pique” na mata para definir seus limites e extensão, numa área da floresta onde não existam seringueiras, pois se reconhece que essas árvores necessitam de um entorno florestal inalterado para sua manutenção e o manejo sustentado. Define-se claramente o “caminho do meio” do roçado, que divide a área de cultivo em duas “bandas”. Ele tanto facilita a colheita dos “legumes” cultivados nos roçados como ajuda na preservação genética de diversas espécies e variedades de sementes nele cultivadas. Numa das bandas dos roçados cultivam-se plantas tradicionais do povo Kaxinawá e na outra costumam-se plantar as sementes adquiridas dos “cariús” (brancos) e de outras etnias. E há também os motivos mágico-religiosos: “se não abrir o caminho do meio do roçado, dividindo em duas bandas, quando a pessoa morre o espírito dela fica perdido, porque não tem rumo certo para seguir para o outro mundo depois da morte. (…) O caminho do meio é importante para não misturar as nossas sementes com as que a gente pegou dos brancos e dos Jaminawá. Comparação: a semente do milho massa, que nós chamamos de sheki kuin, é nossa mesmo, e não pode plantar ele misturando com o milho duro, cearense, que nós chamamos de nawã sheki, que, na nossa língua, quer dizer milho dos brancos. (…) Milho massa a gente planta numa banda do roçado e milho duro, na outra. Se plantar tudo junto fica milho cruzado”, Getúlio Sales Tenê, chefe Kaxinawá do Rio Jordão, no capítulo “Botar Roçados.
