Existiram muitos Haroldos de Campos. Todos agradaram e desagradaram, todos foram provocadores e talvez autoritários, todos buscaram se firmar e terminaram cheios de seguidores, mas também de “detratores”. E será natural que ora um, ora outro, sobressaia, enquanto os outros “hibernam”, esperando a sua vez de serem relidos e reavaliados, até que a figura possa ser entendida com a tranquilidade necessária.
Primeiro, houve o poeta. Em 1950, ele publicou o Auto do Possesso. Estreava numa carreira que lhe permitiu, com o irmão Augusto de Campos e Décio Pignatari, lançar o concretismo, considerado por muitos – entre eles, o professor da Universidade de São Paulo João Alexandre Barbosa – o mais importante movimento da literatura brasileira depois do modernismo.
O concretismo respondeu, nos anos 1950, ao desejo de modernização e de afirmação nacional – por mais que essa palavra cause problemas de interpretação – na área cultural, buscando em Oswald de Andrade a referência modernista.
Achava que poderia produzir uma “poesia de exportação”, como seriam, também, para exportação, os automóveis da indústria.
Pignatari, na época, chegou a defender que os poetas calassem “suas lamúrias pessoais ou demagógicas” e tratassem de construir “poemas à altura dos novos tempos, dos objetos industriais racionalmente planejados e produzidos”.
Em 1980, quando Haroldo e Augusto lançavam antologias, o crítico Silviano Santiago escreveu que “os poetas concretos insistiram nos riscos da exportação – e esqueceram-se do leitor nacional.” Seus frutos teriam sido absorvidos, especialmente, pela música popular.
Embora seja inegável que a MPB, especialmente os “irmãos” Caetano Veloso e Gilberto Gil, mas também Renato Teixeira e outros, tenham lido e relido o concretismo, seu alcance foi maior.
Basta dizer que dois novos romancistas criados nas periferias de Rio e SP – Paulo Lins, autor de Cidade de Deus (1997), e Ferréz, de Capão Pecado (2000) – começaram a vida literária fazendo “poesia concreta” (termo usado pela primeira vez por Augusto de Campos) – uma forma poética que tem também um veio didático, porque parte da racionalização radical da língua. Também alcançou repercussão internacional – o mexicano Octavio Paz diria que “os concretistas sul-americanos em geral e os brasileiros em particular sempre deram uma lição de universalidade aos americanos e aos europeus”.
A poesia e o movimento concretista, cujo manifesto, nas artes plásticas, é de 1952, levaram ao trabalho crítico, que teve na revista Noigandres, de 1952, um papel central. A revista apostou numa nova forma de ler a literatura brasileira e universal, priorizando as questões estéticas e internas à própria literatura, em oposição às leituras do grupo nascido em torno da revista Clima, da USP, e da figura de Antonio Candido – que priorizou as relações entre literatura e sociedade (tal oposição é discutida por Leda Tenório da Motta no livro Sobre a Crítica Literária Brasileira no Último Meio Século).

Com base na transcriação, Haroldo de Campos traduziu diversos autores do mundo
O concretismo conhecerá rupturas (ainda nos anos 1950, surge o movimento neoconcreto, com a separação dos “cariocas”, especialmente do poeta e crítico Ferreira Gullar), mas o trabalho do segundo Haroldo de Campos, o crítico, caminhará, lado a lado, com o do poeta.
A partir de 1963, Haroldo passa a produzir suas Galáxias, série de poemas que tendem a recuperar formas barrocas – o que o levaria a afirmar, mais tarde, que já fazia três décadas que não produzia poesia concreta.
Ao mesmo tempo, desenvolve-se o crítico Haroldo de Campos, que assinará inúmeros e prolíficos ensaios.
Algumas obras suas renderam muita discussão e polêmica, especialmente Revisão de Sousândrade, de 1964, que reabilitou o poeta maranhense, e O Sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira, de 1989, em que polemiza com Antonio Candido. Em 2000, Haroldo de Campos, dessa vez poeta, fez publicar seu A Máquina do Mundo Repensada, poema que dialogava com Dante Alighieri, Luís de Camões e Carlos Drummond de Andrade.
Finalmente, e não menos importante, há a atividade de tradutor. E, nesse campo, seu trabalho especialmente, mas também o de Augusto, transformou-se num dos principais frutos “concretos” da poesia concreta. Haroldo traduziu Ezra Pound, Dante, Goethe, Joyce, Maiakovski, poetas chineses, Mao Tse-tung, japoneses, textos bíblicos, etc. Trabalhos que tinham como fundamento, sempre, uma palavra de ordem: a transcriação.
A última grande tradução publicada em vida de Haroldo de Campos foi o da Ilíada, de Homero, publicada em dois volumes pela Arx, depois de mais de dez anos de trabalho.
Haroldo optou por um verso em 12 sílabas, enquanto seus “antecessores” – Odorico Mendes e Carlos Alberto Nunes – haviam escolhido, respectivamente, dez e 16 sílabas.
Esse trabalho mostrou, de certa forma, que todos os Haroldos, no fim, também estavam juntos: o projeto “político” do poeta que busca na história da literatura universal a legitimidade para sua obra, o tradutor que busca dar nova leitura para o maior clássico da literatura mundial (“Ao optar pelo verso de doze sílabas, o tradutor tenta somar o luminoso com o veloz”, afirmou Antonio Medina Rodrigues quando o projeto ainda se iniciava) e o crítico, que procura, com a tradução, revalorizar um poeta – no caso, o romântico Odorico Mendes, que fundia palavras já no século 19 para encontrar saídas para sua tradução (em dez sílabas) – que considera injustamente mal lido.
Nos últimos tempos ele também passou a se interessar pelo Corão e pelo idioma árabe, tendo aulas com o prof. Michel Sleiman, do Depto. de Línguas Orientais da USP.
Texto publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo, em 17/8/2003, e no Jornal da Ciência (SBPC), em 18/8/2003.