O Rio é, para Ruy Castro, uma cidade em que as histórias começam pelo épico e terminam no samba. E assim é há pelo menos 300 anos, muito antes de o samba propriamente dito surgir, talvez 501 anos (o livro reconta a história da cidade desde a viagem de Américo Vespúcio, em 1502). O Rio, dito de outra forma, já foi muito mais perigoso do que é hoje, e é justamente a tensão dessa cidade violenta e festiva que a toma “excitante demais”.
“Crônica de uma cidade excitante demais” é justamente o subtítulo do livro de Ruy Castro Carnaval no Fogo (Companhia das Letras, 256 págs.), uma verdadeira ode à ex-capital do Brasil. A obra faz parte de uma coleção dedicada a cidades do mundo, que, em português, já conta com livros sobre Paris, Florença e Sidney.
“Ela se destina ensinar um pouco sobre o Rio aos não-cariocas – porque os cariocas já sabem de praticamente tudo que falei ou muito mais”, diz o autor. “Há, por parte da imprensa, uma espécie de satanização do Rio, que acaba contaminando o próprio cidadão carioca”, acha Castro. “O carioca sai pouco, na verdade não tem muito porque sair da cidade, e acaba tendo pouca consciência do que ocorre fora e acha que esses problemas são exclusivos do Rio.”

Capa de ‘Carnaval no fogo’, de Ruy Castro
Antes que os cinco capítulos dessa crônica de 250 páginas comecem, uma introdução apresenta sua ideia central, aproximando a onda de violência de fevereiro de 2003, quando bandidos ligados ao narcotráfico tentaram fechar o comércio do Rio, do carnaval. Em Ipanema, ao mesmo tempo em que o boato se espalhava, um bloco iniciava a festa. “Os pivetes (que espalhavam os boatos) foram embora. O bloco dançou e pulou noite adentro. Carnaval, como sempre, restabelecera a moralidade.”
Há incontáveis associações semelhantes, a começar pela morte do capitão-mor Estácio de Sá, que comandou, no século 16, a expulsão dos franceses e que acabou sendo morto numa batalha, em 1567. “O Rio deu o nome a um bairro – o Estácio –, no qual, 360 anos depois de sua morte, o produto mais típico da cidade ganharia contornos definitivos: o samba.”

Ruy Castro rindo, de perfil; usa óculos, os dentes são amarelados e o cabelo é preto
Cariocas trabalham mais que a média do Brasil
Carnaval no Fogo apresenta uma visão bastante apaixonada do Rio. Se o autor faz questão de dizer que não tomou liberdades com o passado, esse passado é visto com um olhar de quem vive e é envolvido pela cidade, aceitando inclusive alguns de seus defeitos. O Rio de Ruy “pode ter sido até o inventor de um gênero literário: a crônica” (gênero em que milita, aliás, sua mulher, a escritora Heloísa Seixas), seus moradores tomam “uma média de 2,73 banhos por dia” (o ponto de partida é de que um carioca toma, numa estimativa, mil chuveiradas por ano), a cidade “recebe todo mundo sem fazer perguntas”, os índios que habitavam a região antes da chegada dos europeus tinham uma vida “feliz e paradisíaca”, e o carioca trabalha mais do que os habitantes de outros lugares (neste caso, Ruy apresenta números do IBGE, que indicam que a jornada semanal de trabalho da cidade é de 40h47min – “o carioca não tem culpa se lhe sobram 127h13min por semana para não trabalhar”).
Sobre a questão do trabalho, aliás, Ruy mostra-se disposto a contrariar a ideia geral que se faz do carioca. “Uma coleção de clichês assola e mancha a imagem do Rio. Alguns deles são os de que o carioca não trabalha, passa o dia na praia e não pode ver uma esquina ou um botequim sem parar para conversar com alguém que acabou de conhecer e de quem já ficou íntimo”, escreve. O “problema”, no caso, é que a rua, a cidade e a praia, no Rio, são tão atraentes que “todo mundo pode ver o carioca não trabalhando”.
Nessa defesa talvez merecida da ex-capital do País, Ruy ignora a rivalidade com São Paulo, que praticamente não aparece no livro – é citada, por exemplo, como a sede de uma marca de roupas chamada Garota de Ipanema –, nem mesmo quando Ruy divide as cidades entre masculinas (Londres, Nova York e Tóquio, “graves, impessoais, sem fricotes”) e femininas (Paris, Roma e Rio, “românticas, volúveis, envolventes”). Ele escreve ainda que “o Rio é o maior polo de conhecimento científico e tecnológico do Brasil”. “O Rio é um polo desde 1808”, justifica em entrevista. “Teve muito tempo para acumular tal conhecimento.”
Ainda sobre a rivalidade, Ruy Castro afirma que nem pensou nela (“acho meio boba”) e que não imaginou, em nenhum momento, enquanto escrevia o livro, em compará-la com São Paulo: “O Rio me assoberbou.”
Trecho
Rua é a palavra-chave. O carioca tem uma longa intimidade com ela, e ela com ele. É na rua que ele se sente em casa. Isso se reflete até na literatura produzida aqui nos últimos 150 anos. Os principais ficcionistas do Rio – Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Lima Barreto, Marques Rebêlo, Nelson Rodrigues, Carlos Heitor Cony – sempre foram atentos observadores da ação na cidade. O Rio pode ter sido até o inventor de um gênero literário: a crônica, uma narrativa curta e só aparentemente trivial, feita para jornais e revistas, misturando realidade, ficção e comentário, e cujo cenário é quase sempre a rua (no mínimo, uma janela). O maior dos cronistas, Rubem Braga, gerou uma quantidade de grandes seguidores – Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Elsie Lessa, José Carlos Oliveira – e a tradição prossegue hoje com Aldir Blanc, Heloisa Seixas, Joaquim Ferreira dos Santos. Os cronistas são as antenas da cidade, os primeiros a perceber as mudanças do vento.
Publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 13 de setembro de 2003 com o título: “Uma cidade carioca demais”.