A escritora e tradutora Anna Maria Martins morreu neste sábado (26/12), aos 96 anos. O texto abaixo foi publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo em 19 de novembro de 2003, na época do lançamento da coletânea de contos Mudam os tempos.
—–
Anna Maria Martins começa o conto “Decisão” com um menino pulando na frente do carro da protagonista e, antes de o sinal abrir, limpando o para-brisas. “Para ser exata, posso apenas afirmar que nesse momento tive certeza absoluta de que teria coragem”, escreve ela. A narradora, no caso, tem coragem para mudar os rumos de seu casamento, que lhe garantia conforto, e o carro, de interior aquecido, enquanto fazia frio do lado de fora, o do menino.
“Esse é o momento de tomada de posição da escritora”, explica ela. “Uma denúncia, por mais leve que seja, e me utilizo dos personagens para isso. Mas não faço panfleto”, complementa.
Anna Maria lança a coletânea de contos Mudam os tempos. A obra começa com um conto inédito, quase uma novela, que acabou por emprestar seu nome ao livro. E conta, ainda, com mais 22 contos, de tamanhos variados, retirados dos outros quatro livros publicados por ela entre 1973 e 1995.
“Não tenho muitos inéditos. Trabalhei muito, nos últimos tempos, com produção literária, participei de júris e fazia oficinas literárias”, conta ela. “Talvez eu produza pouco, também, porque exijo muito do meu texto.”
A opção pelo conto, ela justifica num breve depoimento publicado ao final do volume: “Comecei fazendo poesia, mas logo me dei conta de que não era essa a minha forma de expressão. Insisti na prosa. Minha ficção é de fôlego curto. Creio que não me aventuro ao romance (não se trata, porém, de urna afirmativa categórica; poderei, eventualmente, mudar de ideia).”
Academia Paulista de Letras/Divulgação
Anna Maria Martins morreu neste sábado (26/12), aos 96 anos
O conto “Mudam os tempos” tem como protagonista uma repórter, que é encarregada de escrever sobre um “publicitário/poeta lançando livro de poemas eróticos, ilustrações idem, edição semiluxo. Lançamento provavelmente badalado”. A ficha, que lhe passa quase informalmente o editor, complementa: “Idade: cerca de quarenta. Ex-hippie, ex-drogado light.”
O publicitário, ainda, permite a Anna Maria encontrar um assunto comum a muitas de suas narrativas: uma certa fricção entre a elite paulistana e a classe média — no caso, entre mulheres da relação do autor e a repórter, filha de imigrantes italianos — mas não industriais.
“Pertenço a essa classe”, diz ela, ao comentar o texto de apresentação de Cremilda Medina. “Meu bisavô era latifundiário, de família tradicional. Cresci passando férias na fazenda. Vi os italianos crescerem, tanto os ex-colonos quanto os industriais. São personagens que conheci e que aproveito na minha ficção.”
Anna Maria acha que ainda há, muito veladamente, um certo preconceito contra os descendentes de italianos, cada vez mais enfraquecido.
Cremilda, na verdade, complementa uma frase da própria Anna Maria, da época em que incluiu a autora numa coletânea intitulada A posse da terra — Escritor brasileiro hoje, publicada há 17 anos. “De algum tempo para cá, tenho me valido de um certo tom satírico para exibir — denunciar? — circunstâncias, fatos e hábitos de uma determinada camada social, dentro do contexto urbano.” A comentarista emenda: “Burguesia e classe média. Já se disse que Anna Maria Martins constrói seus personagens (femininos e masculinos) a partir desses estratos sociais. Ela não o nega. Vê e transfigura artisticamente todas as mazelas da sociedade de consumo, põe o dedo na ferida da asfixia dos hábitos e valores que regem essas camadas”.