Quem foi e quem não foi Xica da Silva, a personagem que virou musa no filme de Cacá Diegues
Em livro publicado em 2003, historiadora Júnia Ferreira Furtado procurou resgatar a vida da mulher que inspirou livros, filme e novela
Francisca de Paula, João, Rita, Joaquim, Antônio Caetano, Ana, Helena e Luís. Mana, Quitéria Rita, Manaria, Antônia, José Agostinho.
De 1753 a 1770, Francisca da Silva de Oliveira teve esses 13 filhos com o desembargador João Fernandes (antes, tivera mais um). Parda forra, alforriada por João Fernandes no ano em que ele a comprou, morreu em 1796 (nasceu entre 1731 e 1735), “‘senhora de uma casa’, possuidora de bens imóveis e de numerosos escravos”.
Essa Chica da Silva, mulher quase comum do século 18 em Minas Gerais, depois de muitos acasos da história, veio, a partir dos anos 1970, se transformar numa imagem marcada pela personagem interpretada por Zezé Mota no filme de Cacá Diegues Xica da Silva: forte, belíssima, sensual, capaz de manipular os homens brancos e defender os negros. Uma imagem positiva, mas, talvez, tão irreal quanto seu inverso, a primeira Chica da Silva a virar mito.
Essa outra Chica nasceu da pena do advogado Joaquim Felício d. Santos, que, em 1853, foi nomeado procurador na partilha amigável dos bens de uma neta de Francisca da Silva de Oliveira. Joaquim Felício, entre uma audiência e outra, também escrevia uma coluna da história da região no jornal O Jequitinhonha. Usou os autos do processo, combinou-os com os preconceitos do seu tempo (muito mais resistentes à união entre um branco e uma negra que no tempo de Chica da Silva) e a descreveu assim: “Não possuía graças, não possuía belezas, não possuía espírito, não tivera educação, enfim, não possuía atrativo algum que pudesse justificar uma forte paixão.”
Coincidentemente, foi um sobrinho-neto de Joaquim Felício, o escritor João Felício dos Santos, que, apoiado por uma tradição modernista (entre os autores que passaram por Chica está Cecilia Meireles), escreveu, nos anos 1970, o romance Xica da Silva, adaptado para cinema por Cacá Diegues, reforçando os aspectos que hoje associamos a Chica/Xica.
Em Chica da Silva e o Contratador de Diamantes (Companhia das Letras, 464 págs.), a historiadora Júnia Ferreira Furtado, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, procura narrar a trajetória desse raro mito feminino do Brasil Colônia. “Quis pôr Chica no seu contexto e mostrar que ela não era uma exceção. Como ela, na região de Tejuco (atual Diamantina), havia muitas outras mulheres forras que buscavam uma inserção social”, diz Júnia. “Não escrevi para desmontar o mito; apenas quis narrar sua história, porque nem o cinema nem a TV ensinam muito sobre Chica ou sobre a realidade do século 18.”
Num certo sentido, mesmo a história não conseguia, até recentemente, responder bem à pergunta “quem foi Chica da Silva”: “A historiografia a tem retratado com base na reconstrução de uma imagem estereotipada das mulheres negras, escravas ou forras. Estudos recentes indicam que, uma vez alçadas à condição, muito comum na época, de concubinas de homens brancos, as forras procuravam se reinserir na sociedade, usufruindo as vantagens que esta podia lhes oferecer, a fim de minimizar o estigma da core da escravidão.”
Para Minas Gerais, os europeus raramente levavam suas esposas, e costumavam manter relações “consensuais” (não consideradas legítimas pelo Estado católico português) com mulheres como Chica, num processo de “branqueamento étnico e cultural” que, para Júnia, “revela não as características democráticas das relações entre as raças, mas as armadilhas sutis por meio das quais se esconde a opressão racial no Brasil”.

Zezé Motta como Xica da Silva, no filme de Cacá Diegues (1940-2025)
O trabalho de Júnia nasceu depois de ela participar de um seminário sobre as possibilidades de estimular o turismo histórico na cidade. Ela iniciou, então, uma busca de informações que dessem elementos para montar um museu na casa de Chica. “Comecei a pesquisa sobre ela e percebi, rapidamente, que a figura que surgia nos documentos era muito diferente da do mito.”
A casa atualmente está aberta para visitação, mas ainda não funciona como um museu. Se Chica, no comportamento, não se parecia com a Xica vivida por Zezé Mota e Taís Araújo (na novela da Manchete, de 1996/1997), como seria fisicamente?
Não é possível dizer com precisão. O que Júnia apurou é que, pardas como ela, descendentes de negros mina, eram consideradas muito bonitas pelos europeus, especialmente quando jovens (Chica tinha entre 18 e 22 anos quando foi comprada por João Fernandes).
O inglês John Gabriel Stedman, por exemplo, numa viagem pelo Suriname, descreveu uma escrava, de nome Joana e mestiça: “De estatura mediana, ela era perfeita, com as mais elegantes formas que podem servistes na natureza, movendo suas bem formadas pernas como uma deusa quando caminha.”
Júnia diz apenas que “o certo é que João Fernandes ficou vivamente impressionado com Chica da Silva.”
Mas quanto tempo essa beleza teria durado? Também é difícil responder. Como Chica viveu praticamente como esposa de João Fernandes, foi alguém de posses e fazia pouco esforço, é provável que tenha ocorrido com ela o que costumava se dar com as brancas de vida sedentária.
“Durante sua estada no Rio de Janeiro”, escreve Júnia, um viajante observou que as moças atingiam a maturidade por volta dos 18 anos. “Depois ficavam gordas, moles, pálidas e com papadas.”
(*) Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo em 25 de maio de 2003, com o título “Francisca da Silva de Oliveira, mais desconhecida como Xica”.
