No extremo sul do eeserto do Saara, saciavam a sede e a fome da população do Mali os até quatro quilômetros cúbicos de água doce do Lago Faguibine – um volume que enche quatro Paranoás de Brasília. Em 2021, sobrou da imensa reserva apenas a depressão que abrigava o transbordar do Rio Níger, o maior a atravessar a região.
Em imagens do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), é possível ver onde havia plantações, áreas pastoris e pescadores, a terra seca e infértil emanando gases tóxicos do que era a maior reserva fluvial do Sahel, região no norte da África entre o deserto e a savana.
À medida que a disponibilidade de água foi caindo, começaram a surgir disputas entre os locais pelos recursos hídricos. “Não se passa um dia sequer sem conflito entre pastores e agricultores. Não há muito espaço, e todos querem o pouco que restou”, conta o fazendeiro Mahamadou Ousmane.
Em algumas regiões do antigo lago, as costas que ali estavam presentes se tornaram solo para o crescimento de novas espécies de árvores. Segundo o Centro Internacional de Investigação Florestal, parte da população se adaptou à extração de madeira, mas sem plano de manejo para garantir a atividade no longo prazo.
Com a terra seca e assolada por gases inflamáveis, habitantes da região têm buscado exílio em Bamako, na capital malinense, para garantir o sustento de suas famílias.
O diretor regional do Comitê Internacional da Cruz Vermelha para a África, Patrick Youssef, disse que as pessoas mais vulneráveis do mundo, não raramente vivendo sob conflito, são as menos capazes de superar os impactos da crise do clima. “Nós incitamos os líderes globais a tomarem ações concretas na COP26 para levar as ações mitigatórias em relação ao clima àqueles que sofrem em silêncio”, afirmou em comunicado da entidade.
O Mali vive um conflito interno entre o Estado, grupos islâmicos e o povo Touareg desde 2012. “Além de vivenciar a guerra, o país é um dos mais pobres do mundo – está em 175º dos 188 países no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU”, aponta o CICV.
A região do Lago Faguibine começou a perder volume em grandes quantidades após a histórica seca que atingiu o Sahel entre os anos 1970 e 1980. Estudo do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas indica que houve uma influência humana na estiagem prolongada.
De acordo com o chefe da delegação do CICV no sul da África, Mamadou Sow, o continente está no eixo de conflitos armados e mudanças climáticas, e os eventos extremos são cada vez mais comuns.
“A vulnerabilidade das pessoas foi exacerbada. Refugiados que já começaram a reconstruir suas vidas de repente têm tudo varrido pela chuva, pelas enchentes. Eu acho que a solução, infelizmente, não é uma mágica no nosso nível”, ele lamenta.
Sow lembra ainda que a entidade atua para conscientizar produtores locais a adotar métodos que desgastam menos o solo, como cuidado no processo de aragem e as reservas d’água, com parcimônia na aplicação de herbicidas.
CICV
Lago Faguibine desertificado, com conchas de mariscos que viviam na região
“Não queremos mudar o estilo de vida deles da noite para o dia, mas, enquanto houver opções, tentamos ensiná-los a usar recursos mais ‘ecoamigáveis’ nos carros, nas residências e no campo. Queremos garantir que não sejamos parte do problema”, declarou.
Racismo climático
Os países da África, da América Latina e da chamada Ásia insular sofrem as consequências ambientais da extração e da agropecuária capitalista tanto de forma direta quanto a partir de secas, furacões, ciclones e outros desastres climáticos. Essa avaliação é do pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF) Diosmar Santana Filho.
Segundo Santana Filho, todas as pessoas do mundo estão sujeitas às consequências da crise do clima, mas a injustiça climática tem um viés de raça e etnia. “Vimos as enchentes na Alemanha que fizeram mais de 150 vítimas. Mas ali há um esquema de proteção social de um país desenvolvido. No Mali, não”, afirma.
Ele, que foi um dos membros da delegação brasileira na COP26, recorda a obrigação das nações ricas do G20 de ajudar a transição verde de países em desenvolvimento com US$ 100 bilhões por ano.
“Quando você pega os principais exportadores de minérios que vão ser a base da nova indústria automobilística de matriz elétrica e da construção civil mais sustentável, a grande maioria é extraída na África e na América Latina. Não é investimento, e sim mera compensação”, afirma. Os maiores importadores são China e países europeus, indicam os dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
O pesquisador defende que, há 521 anos, existe um sistema de exploração promovido por países centrais daqueles do sul global, que começou pautado na mineração de metais preciosos e na monocultura, que é a própria fonte do “racismo climático”. “São as relações humanas que pautam a política do clima”, acrescenta.
Santana Filho, que é baiano, dá o exemplo do quilombo Volta Miúda, que luta por seu reconhecimento no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) há 11 anos, na cidade de Caravelas, no sul da Bahia.
Com a exploração do eucalipto na região, lagos e açudes que eram fonte de pesca, agricultura e água potável vêm secando junto com a queda de volume da bacia do Peruíbe. “Com o assoreamento do curso, diminui também o leito do rio, que regula a área de mata ciliar, dando espaço para mais monocultura. É um ciclo que se retroalimenta”, explica o geógrafo.
“Por isso, é importante falar em racismo climático e ambiental. O território quilombola está sofrendo enquanto não há uma resposta das instituições. O Mali está dentro do Brasil”, pontua.
(*) Pedro Teixeira é estudante de jornalismo e participa do projeto Repórter do Futuro, da Oboré