Jan Rocha: a jornalista que, na ditadura, mostrou o que Bolsonaro quer esconder até hoje
A prazerosa leitura dos despachos da jornalista da BBC deveria ser obrigatória nas escolas do Brasil inteiro
O texto a seguir é o posfácio do livro Nossa Correspondente Informa (Ed. Alameda, R$ 86), da ex-correspondente da BBC no Brasil Jan Rocha, que será lançado virtualmente nesta sexta-feira (08/10), às 18h, neste link. A obra traz algumas das reportagens da jornalista inglesa entre 1973 e 1985, período em que acompanhou a política brasileira e publicou, lá fora, informações que a ditadura militar censurava.
A jornalista Natália Viana escreveu o posfácio que reproduzimos abaixo.
Como se pode imaginar um momento histórico a partir do futuro? Com a proliferação de imagens, stories, vídeos, lives e chats online sobre quase tudo, provavelmente o desafio para as gerações futuras será dissociar entre a infinitude de construções possíveis de narrativas sobre o atual momento, se um dia o pretenderem desvendar.
Mas o que deve fazer a juventude dos dias de hoje, que nasceu e cresceu nessa superexposição digital, para imaginar o passado? O tempo de apenas meio século atrás, quando nosso país vivia sobre uma brutal ditadura militar, durante muito tempo não ganhou cobertura relevante nos nossos jornais. Na sanha dos acordos pela redemocratização, o Brasil decidiu deixar o passado de lado e tentar não olhar para ele.
Nem foi tema de conversas do dia a dia enquanto esses millenials cresciam, exceto para um pequeno grupo de interessados. As notícias daquela época não estão na internet, exceto em alguns sites para quem sabe procurar.
Por isso, agora, quando a disputa sobre esse mesmo passado ganha protagonismo no discurso do grupo político no poder – durante o governo do ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro –, fica ainda mais difícil para os jovens compreender do que falamos, afinal, quando falamos da ditadura.
Quando Bolsonaro assumiu a presidência em 2019, ele inaugurou no Brasil uma maneira de governar apostando em um discurso histriônico, as ações voltadas para o caos, confusão e criação constante de conflitos. Essa maneira de governar baseia-se em uma “guerra cultural”, entre verdade e mentiras deslavadas, criadas para manter engajada a base bolsonarista, parcela da sociedade que prefere acreditar que combate um inimigo comum, seja ele qual for. Isso lhes dá valor e propósito. E esse propósito suplanta qualquer evidência, inclusive científica – por exemplo, o uso desbragado da cloroquina como remédio de “tratamento precoce” contra a pandemia de covid-19, cuja ineficácia foi mundialmente atestada.
Chamada pelo filósofo Marcos Nobre de “esfera pública alternativa” , essa verdadeira máquina de deturpar os fatos utilizando as redes sociais, criar cisões e incitar o ódio tem sua raiz no negacionismo histórico sobre o período militar.
Durante os 21 anos de ditadura, o controle supremo da imprensa garantia que eventos como a tortura e os desaparecimentos de opositores do regime raramente chegassem à capa dos jornais e menos ainda à escalada do Jornal Nacional. Empregava-se uma variedade de estratagemas de acordo com o fato ou a publicação que se queria suprimir: do assassinato de jornalistas à manutenção de um censor plantado dentro de grandes redações; da obrigação para redações de médio porte de enviar suas edições até a PF em Brasília para censura prévia, encarecendo o custo de cada publicação, que tinha de produzir de duas a três vezes mais conteúdo do que aquele que efetivamente ia às bancas, à recolha de tiragens inteiras – que também causava gigantescos danos econômicos; do empastelamento de redações às constantes auditorias nas contas das publicações. Não podemos esquecer, ainda, da complacência de certos donos de veículos que apoiavam o regime.

Reprodução
A prazerosa leitura dos despachos de Jan Rocha deveria ser obrigatória nas escolas do Brasil inteiro
A raiz do negacionismo atual não se refere apenas à negação dos crimes e abusos cometidos pelo regime militar: a eloquente cegueira de Bolsonaro se estende a todos os aspectos negativos daquela época, seja a corrupção que grassava, seja o arrocho salarial e a carestia, sejam as grandes obras falidas e mal executadas, ou as horrorosas disputas de poder dentre os próprios militares e as tentativas de golpes e contragolpes durante o próprio regime. Como definiu Elio Gaspari, numa coluna publicada pela Folha de S.Paulo em 13 de maio de 2018, “aquilo que parecia ordem era uma enorme bagunça”.
É exatamente essa lacuna que o livro de Jan Rocha preenche. Essa notável jornalista, correspondente da BBC e de jornais como The Guardian na segunda metade do período ditatorial, reportava tudo de importante que acontecia no Brasil para o mundo exterior: da precariedade dos trens do Rio de Janeiro à vacinação atrasada contra a meningite; das acusações de corrupção em empresas estatais – como a Companhia de Desenvolvimento do Piauí (Codepi), o Conselho de Energia do Rio de Janeiro (Celf), a Superintendência Nacional da Marinha Mercante (Sunamam), o serviço nacional de saúde (Inamps), a Companhia Brasileira de Alimentos, entre outros – às primeiras articulações nacionais dos povos indígenas.
Como escrevia para veículos estrangeiros e, principalmente, tinha inteligência e coragem para driblar as pressões e censuras que poderia sofrer, Jan contou para o mundo, muitas vezes, o que era proibido de se dizer no Brasil. Aqui, aqueles que acompanhavam a nossa turbulenta política buscavam nas ondas curtas da BBC (sintonizadas por grande parte dos aparelhos de rádio da época) informações sobre a realidade do país. Sua atuação admirável rompeu diversos silenciamentos e marcaram a vida política no e sobre o país.
A prazerosa leitura dos despachos de Jan Rocha deveria ser obrigatória nas escolas do Brasil inteiro. Com seu texto conciso, preciso, bem apurado, Jan Rocha dá uma verdadeira aula de como o jornalismo pode ser criativo e poderoso ao mesmo tempo. Será uma lição e uma novidade para aqueles que já nasceram na época em que o jornalismo nacional, impactado pelas mudanças ocorridas nos EUA, submeteu-se às amarras de um punhado de fórmulas usadas para descrever as inumeráveis nuances da realidade, dentre as quais a mais odiosa é sem dúvida nenhuma o lead, que determina que toda reportagem deve começar com Quem? Onde? Como? Quando? E por quê?
Nos textos da correspondente da BBC, cabe a ironia fina, o absurdo, a observação apurada e até o humor. Cabem frases como “o povo brasileiro deu um pontapé estrondoso nos dentes daqueles que gostam de dizer que eles ainda não são politicamente maduros para poder retornar a processos políticos mais normais” – sobre as eleições gerais de 1974, uma vitória acachapante da oposição –, histórias como a do julgamento político de um homem acusado de subversão por tocar o hino nacional em sua rabeca, o que seria “um instrumento inadequado”, e manchetes como “Geisel empossado não promete nada”.
Certamente este livro é para todas as idades, mas porque eu aposto nos jovens? Retomo ao tema da fragmentação do espaço de discussão pública, que confunde e cria realidades paralelas avidamente defendidas por grupos políticos opostos. Mais do que isso: a juventude de hoje vive sob o signo da desesperança em um modelo capitalista que não titubeou em vender seu futuro ao trocar as proteções trabalhistas pela uberização do trabalho, à qual todos estão fadados em um ou outro momento, pela absoluta ausência de espaços políticos em um cenário em que os líderes – da direita à esquerda – envelhecem na sua soberba, sem permitir caminhos para novas lideranças, e de um premente colapso climático, sanitário e ambiental que lhes ameaça roubar o futuro.
Mas, a eles, digo: ler como o Brasil saiu de uma enorme encruzilhada, que quatro décadas atrás corroía todos os aspectos da vida cotidiana, e conseguiu consolidar valores e instituições democráticos – ainda que falhas, ainda que fracas – proporciona, sem dúvida, um alento. Uma geração só aprende a construir o futuro se se animar a conhecer o passado.
Também é alentador conhecer a história de algumas das pessoas que trabalharam tão arduamente, arriscando-se para que o país saísse da armadilha do autoritarismo que, como todo governo ditatorial, queria apenas uma coisa, preservar-se para sempre.
E Jan Rocha registrou essas histórias. Gente hoje pouco lembrada, como a advogada Eny Moreira, que no dia 13 de março de 1975, ao defender um preso político ligado à Ação Libertadora Nacional (ALN) dentro de um Tribunal militar em São Paulo, “declarou que o acusado havia sido torturado para forçar uma confissão, e denunciou as ‘atrocidades’ cometidas contra presos políticos”. Em resposta, “o presidente da corte, um tenente-coronel, mandou-a ‘Calar a boca’, e parar de ser irrelevante”. Ou aqueles que ficaram para a história, como Ulysses Guimarães, chamado por Jan Rocha de “Dom Quixote brasileiro” quando lançou a sua “anticampanha” em uma “antieleição” em 1974 para presidente, pois já se sabia quem ia ganhar: o general Ernesto Geisel.
O despacho da correspondente da BBC informa que a prometida transmissão ao vivo pela TV da convenção do MDB foi censurada pouco antes do evento. E, mesmo assim, Ulysses seguiu rodando o país em sua “anticampanha”, usada, principalmente, para denunciar a farsa das eleições nacionais. E isso tudo sem cobertura da TV ou rádio. E, claro, sem Whatsapp, Facebook, Twitter ou Instagram.
Quinze anos depois, Ulysses Guimarães presidiria o processo constituinte mais bonito e democrático realizado no país. Foram quase dois anos de intensos debates e participação ampla de grupos da sociedade. O resultado, a Constituição de 1988, chamada também de “Constituição Cidadã”, que até hoje toca todos os aspectos da vida brasileira – inclusive a do jovem leitor.
Jan Rocha é inglesa e veio para o Brasil em 1969, onde foi correspondente da rádio BBC e do jornal The Guardian. Fundadora da ACE, Associação dos Correspondentes Estrangeiros. Atualmente tem um blog no site do Latin America Bureau, onde escreve principalmente sobre política brasileira.
O lançamento do livro será nesta sexta (08/10), às 18h. Veja o cartaz do evento: