Política x sociedade: o paradoxo da mulher em Moçambique
Política x sociedade: o paradoxo da mulher em Moçambique
Lídia Sitoe e Ana Rita Sithole são moçambicanas com condições de vida completamente diferentes. Por meio de suas histórias, é possível delinear o paradoxo vivido em Moçambique quando o assunto é a situação da mulher na política e na sociedade. Enquanto algumas poucas ocupam altos cargos oficiais, a grande maioria é refém de uma estrutura machista, que as priva da educação. Resultado: 70% dos 11 milhões vivendo em extrema pobreza no país são do gênero feminino.
6h15 da manhã. O sol começa a nascer em Changalane, pequeno vilarejo a 80 km de Maputo, capital nacional de Moçambique, mas Lídia, de 60 anos, já está acordada a mais de uma hora trabalhando em sua “machamba” – maneira como moçambicanos nomeiam suas próprias plantações. A moradora da região aprendeu o ofício aos 12 anos, quando passou a cuidar das tarefas de casa ao abandonar de vez a escola primária.
Opera Mundi
Maioria das moçambicanas que vive no campo está em situação de extrema pobreza, segundo dados oficiais
“Era difícil estudar quando eu era nova porque meus pais falavam todo o tempo que minha obrigação mesmo era ajudar minha mãe a cozinhar, lavar roupa e trabalhar na machamba para conseguirmos ter comida suficiente para todos. Por isso, abandonei a escola, não havia tempo de me dedicar a aprender”, conta em seu idioma local, o shangana.
Meio-dia. A sessão da Assembléia da República termina e a deputada Ana Rita Sithole, já em seu quinto mandato, vai almoçar ao som de chamadas no celular de colegas da oposição se desculpando pelas discussões acaloradas do dia. Política experiente, atuando na área desde a luta pela independência de Moçambique, conquistada em 1975, a deputada nunca leva para o lado pessoal os debates.
“A maior conquista feminina nos últimos anos foi a participação em órgãos onde decisões são tomadas, em todos os níveis. Antes, os homens conseguiam evitar que denunciássemos o que estava acontecendo de errado, mas hoje as mulheres têm mais voz para dizer o que pensam e propor soluções para a melhoria de suas condições de vida”, afirma.
Leia mais:
Lula e Chávez defendem união entre África e Unasul
Moçambique comemora 35 anos de independência de Portugal
Cepal: mulheres latino-americanas trabalham mais e ganham menos
Entrevista com Mia Couto: Democracia moçambicana pede autocrítica
Pequenos agricultores são chave para desenvolvimento rural nas Américas
Pequenos produtores de Cuba dobram produtividade e usam 70% menos fertilizantes industriais
Se, por um lado, a presença feminina em cargos de liderança do governo em Moçambique é uma das maiores do mundo, por outro, as mulheres ainda sofrem com uma estrutura social repressiva, na qual a liberdade de escolha e o direito à educação são garantidos prioritariamente aos rapazes.
Presença política
Enquanto no Brasil a presença de mulheres no parlamento não passa de 10%, a Assembleia da República Moçambicana possui um total de 40% de representatividade feminina. Pela primeira vez, inclusive, o órgão é presidido por uma mulher, Verônica Macamo, respeitada entre os colegas e símbolo da luta pela emancipação feminina no país. Nos ministérios, cerca de um terço entre ministros e vice-ministros são dirigidos por mulheres.
A presença da mulher na política moçambicana tem origem distante, juntamente ao nascimento de Moçambique como uma nação independente de Portugal. Os movimentos de libertação que chegaram ao auge nos anos 1970, culminando na oficialização da independência do país e criação da República de Moçambique, possuíam o apoio geral da população e a trazia para perto da luta.
Opera Mundi
Deputada Ana Rita Sithole: "maior conquista feminina nos últimos anos foi a participação em órgãos onde decisões são feitas"
Inspirados pela linha de pensamento socialista, os líderes inconfidentes pregavam a igualdade entre todos, sem discriminação quanto à idade, cor, tribo, religião e sexo. Nesse contexto, por exemplo, as mulheres possuíam sua própria facção dentro da Frelimo (Frente de Libertação Moçambicana) – partido atualmente no poder –, a chamada OMM (Organização das Mulheres Moçambicanas).
“Tivemos dirigente militares mulheres durante as lutas. Temos heroínas vivas que foram do exército, dirigentes. A OMM criou cada vez mais condições para envolver a mulher nas tarefas de governança nacional, independentemente das convicções políticas de cada uma”, conta Sithole.
Trinta e cinco anos depois da conquista da independência e 20 anos após o tratado de paz que colocou fim à guerra civil que estourou no país após a saída dos colonizadores portugueses, a representatividade das mulheres na política ainda pode ser fortemente observada.
Parte disso se deve ao cunho histórico do envolvimento feminino nas mobilizações populares, mas políticas internas contribuem, como o estabelecimento de cotas para mulheres dentro de partidos como meio de garantir uma percentagem mínima presente desse grupo. Essa medida foi uma das formas encontradas para combater o machismo ainda parte do meio político em Moçambique.
“Já senti muita discriminação nos meus 20 anos como deputada, porque para os cargos de chefia, de tomada de decisão, dificilmente uma mulher é indicada. É uma experiência nova ter a presidente da assembléia uma mulher. Mas creio que isso não é condição suficiente, porque os homens fazem barreiras”, opina Sithole.
A ideia de que toda mulher enfrentará mais dificuldades na política por causa de preconceitos antigos não é partilhada por todas. Maria Elias Jonas, atual governadora da província de Maputo, a mais importante econômica e politicamente no país, conta que nunca experimentou discriminação em sua carreira, porque vê as coisas de outra forma.
“Nunca sofri preconceito por ser mulher de maneira alguma. Acredito que isso se deve também porque nunca diferenciei homem de mulher, então nunca vi esse tipo de discriminação contra mim”, diz.
Segundo ela, a participação feminina na política é fundamental para a igualdade de gênero, uma vez que, historicamente, foram as mulheres que lutaram e melhoraram sua própria situação. Na economia, na sociedade e na política, “todas as conquistas das mulheres foram por méritos próprios”.
A Coordenação para a Mulher no Desenvolvimento do Fórum da Mulher, organização não-governamental muito respeitada no meio, por outro lado, afirma que é importante ter mulheres no poder, mas isso não é suficiente. Acima de tudo, segundo eles, as representantes femininas devem ter como pauta principal a questão de igualdade de gênero e devem “acima de tudo, lembrar-se de que são mulheres e, como tal, devem ser representantes das necessidades e das expectativas das outras mulheres que não tem oportunidade de se fazerem ouvir”.
Desigualdade de gênero
O grande paradoxo da intensa participação política feminina em Moçambique é a situação desprivilegiada em que se encontram grande parte das mulheres comuns no país em suas vidas cotidianas.
As maiores desigualdades de gênero são observadas nas zonas rurais mais afastadas da capital do país, Maputo. Entre as 7,5 milhões de mulheres morando nessas áreas, mais de seis milhões são analfabetas. Além disso, cerca de 90% dos trabalhadores agrícolas são mulheres, mas 85% das explorações agro-pecuárias são controladas por homens.
Opera Mundi
Associação de agricultoras moçambicanas: mobilização feminina surge como caminho para a luta pela igualdade de gêneros
O analfabetismo, que assola 52% da população de 22 milhões de moçambicanos, se faz muito maior entre as mulheres também, atingindo uma taxa de 67% entre elas, enquanto entre os homens a porcentagem é de 36%. Como consequência da falta de base educacional, 70% dos 11 milhões vivendo em extrema pobreza no país são do gênero feminino.
O vice-ministro da Educação Arlindo Chilundu explica que a desigualdade de gênero nos números em relação à educação se deve, principalmente, por fatores culturais e tradicionais, que influenciam na vida das famílias e na formação das meninas.
“A participação de meninos e meninas é igual na pré-escola, mas isso muda na puberdade. A partir daí, muitas meninas casam e têm filhos muito cedo, abdicando da educação para cuidar da família. Outras vezes, os próprios pais querem ter a menina dentro de casa para ajudar nas tarefas domésticas ou a coloca para trabalhar na agricultura”, esclarece.
No último caso, segundo ele, as meninas são vistas como força de trabalho. Pela tradição de pouca valorização da educação feminina, quem vai à escola são os rapazes, enquanto as filhas ficam ajudando dentro de casa e na agricultura.
Iniciativas
Por conta disso, muitas organizações não-governamentais buscam se voltar justamente à ideia básica de garantir a educação das meninas. A Fundação Lurdes Mutola, por exemplo, criada pela única atleta moçambicana campeã olímpica Lurdes Mutola, dá bolsas de estudos para aquelas estudantes que se destacam nos esportes e implementa programas nas zonas rurais para tentar amenizar o problema.
“É na educação onde começam as desigualdades. Dar acesso à escola traz uma força mais real à mulher moçambicana. É bem diferente da força falsa de um governo com grande representatividade feminina, o que tem um significado insignificante na realidade do país”, declara o diretor adjunto da ONG, Gabriel Fossati-Bellani.
Segundo ele, as meninas que completam a escola primária – o que corresponderia ao ensino fundamental brasileiro – se formam sem nenhuma perspectiva econômica e social, se voltando novamente à família. Por isso, aquelas que são tocadas pelo apoio de organizações da área passam a ter a escolha de se dedicar ao que a tradição demanda ou ir atrás de novas oportunidades de vida.
Siga o Opera Mundi no Twitter
Patentes na OMC é uma derrota para os países do Sul Global
Pandemia de covid-19 reativou a debate sobre a quebra de patentes para medicamentos e vacinas. Apesar de sua união em torno do tema, países subdesenvolvidos sofreram uma derrota
No dia 17 de junho, saiu fumaça branca das chaminés da Organização Mundial do Comércio (OMC). A entidade, responsável pela regulação de patentes internacionais, anunciou que chegara a uma conclusão sobre as vacinas contra o coronavírus. Tratava-se do pedido de isenção do acordo TRIPS – sigla em inglês para Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio. Firmado na virada do século, tal compromisso obriga os países-membros da OMC a adotar padrões mais rigorosos de proteção patentária. Consequentemente, encarece o acesso às inovações tecnológicas, inclusive no setor farmacêutico. Mas a decisão final foi amplamente criticada por ativistas da saúde e movimentos populares em todo o mundo, já que a OMC rejeitou a isenção total do TRIPS.
Em 2020, diante da disseminação do novo coronavírus, África do Sul e Índia protocolaram a proposta de isenção do Acordo, que obteve amplo apoio dos países em desenvolvimento e de baixa renda – com exceção do Brasil. A nova decisão foi saudada pelo Secretariado da OMC e por representantes de países ricos como um resultado sem precedentes, mas ativistas condenam que, na prática, a decisão não atende as necessidades mínimas da maior fatia do mundo. “Houve um esvaziamento da proposta pelos países mais ricos. O texto perdeu totalmente sua força, não trouxe nada novo”, explica Felipe Carvalho, Coordenador Regional da Campanha de Acesso do Médicos Sem Fronteiras ao Outra Saúde.
A conclusão do órgão concedeu uma exceção temporária à restrição das quantidades de vacinas que podem ser exportadas sob licença compulsória; diagnósticos e tratamentos não estão incluídos e devem obedecer ao limite de exportação durante o tempo de licença compulsória – decretada durante emergências sanitárias, como é o caso da pandemia. Além disso, a concessão vale apenas para responder à covid-19 e não tem validade diante de outras crises de saúde. O acordo final não inclui o compartilhamento de segredos comerciais e know-how de fabricação, o que prejudicará a produção de vacinas com tecnologia avançada por países de baixa renda – como é o caso dos imunizantes de RNA.
Carvalho conta que o problema é abordado com frequência em reuniões escpecais da OMS e da ONU. “Existe um consenso entre especialistas e órgãos multilaterais de que as patentes causam constantes crises de acesso e inovação na saúde”. Em maio, o The Guardian divulgou que a Pfizer lucrou 25,7 bilhões de dólares só no início de 2022 – mais da metade do valor está relacionado à venda de vacinas contra a covid-19. Tim Bierley, ativista do Global Justice Now, denunciou ao jornal britânico que apesar do apelo da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de outras organizações, a farmacêutica seguia se recusando a compartilhar a tecnologia de produção do imunizante. O diretor da OMS, Tedros Adhanon, afirmou em 2021 que a pandemia estava sendo prolongada por uma “escandalosa desigualdade” diante do acúmulo de doses de imunizantes por países ricos enquanto países pobres não conseguiam avançar em sua meta de vacinação em massa.
“Desde a criação do acordo TRIPs nós temos um cenário de constantes crises de acesso a medicamentos essenciais”, conta Felipe. Ele relembra o caso emblemático da epidemia de HIV/AIDS, na década de 1990. “Em 1996 surgiu a primeira terapia para a doença. As pessoas pararam de morrer e passaram a conviver com o vírus. Mas essa terapia não chegou nos países onde o cenário era mais grave”, explica. O ano de 1996 foi também quando o acordo TRIPS entrou em vigor, após sua criação em 1994 e preparação em 1995. “A partir daí se criou uma coalizão na sociedade civil, da qual fazemos parte, chamada Movimento de Luta pelo Acesso a Medicamentos. A pergunta era: por que os preços eram tão altos e o tratamento se tornava inacessível para milhões de pessoas? Nos aprofundamos no sistema de patentes e entendemos que o monopólio era a causa”, relembra.
Apesar do TRIPS possuir cláusulas que permitem flexibilizações, elas são de difícil utilização devido a dois fatores principais: sua não-incorporação completa em leis de países-membros e a pressão que as farmacêuticas exercem sobre as decisões da OMC. Na década de 1990, diante da grave situação vivida na África do Sul – país com maior número de mortes pela AIDS na época – o governo então liderado por Nelson Mandela aprovou uma das medidas previstas no TRIPS para importar genéricos. Na ocasião, Mandela sofreu o processo de 39 farmacêuticas que se opuseram à decisão tomada para conter a crise de saúde pública. Apesar da derrota das corporações na justiça, “esse é um exemplo de como essas empresas e seus países-sede tentam barrar as normas legítimas existentes no TRIPS”, exemplifica Carvalho.
A OMC é uma instituição formada por 164 membros e opera com base na tomada de decisões por consenso. “A OMC falhou em fornecer uma isenção. O acordo coloca os lucros à frente das vidas e mostra que o atual regime de propriedade intelectual falha em proteger a saúde e promover a transferência de tecnologia. Essa não-renúncia estabelece um mau precedente para futuras pandemias e continuará a colocar vidas em risco” declarou Lauren Paremoer, médica e integrante do Peoples’ Health Movement na África do Sul.
A Health Action International, referência no trabalho para expandir o acesso a medicamentos essenciais, argumentou em nota que a decisão da OMC impõe obstáculos ao licenciamento compulsório, uma das poucas flexibilidades existentes no TRIPS, em troca de uma abertura tímida para a facilitação da exportação de vacinas. Outras entidades representantes da sociedade civil já denunciaram a atuação dos países ricos e vêm aumentando a pressão sobre os governos. O objetivo, segundo seus porta-vozes, é que sejam tomadas medidas concretas para desafiar as regras de monopólio farmacêutico da OMC e garantir mais acesso a medicamentos e tecnologias.