Há uma semana: Eu também vi um mundo novo nascer?
Em 30 de março, imaginava que uma segunda-feira em um apocalipse seria diferente. Influência demais de filmes de ficção distópica
Nesta pandemia de coronavírus, as coisas mudam tão rápido que a gente perde a noção do que aconteceu ontem, antes de ontem, há uma semana. O que choca pela manhã já é notícia velha à tarde.
Pensando nisso, Opera Mundi estreou a coluna “Notícias da Semana Passada”. O texto que você lê abaixo foi escrito há uma semana e publicado só agora.
Com esse "distanciamento temporal", procuramos mostrar o que estava ocorrendo na semana anterior e como a epidemia afetava nossas vidas. A ideia é responder: quem nós éramos na semana passada?
Hoje, publicamos o quarto texto, do professor de humanidades e assessor de imprensa Alexandre Linares:
São Paulo, 30 de março de 2020.
Trabalhei das 8 horas da manhã até as 23h30. Mas ainda assisti o Conexão Repórter do SBT até mais de 1 hora da madrugada. Trabalhei as últimas 36 horas intensamente.
Sempre imaginei que uma segunda-feira num apocalipse seria diferente. Influência demais de filmes de ficção distópica.
No dia de ontem, domingo (29/03), vi lampejos de um mundo Mad Max. Motociclistas rasgavam a Av. do Estado, uma das vias marginais de São Paulo. Ela margeia o rio Tamanduateí que liga os córregos e cursos d'água da região de Mauá no Grande ABC até desaguar no Tietê. Motociclistas rasgavam a via em alta velocidade empinando. Lembrou-me Mad Max.
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Mas em Mad Max não havia luta de classes, não havia resistência. Nem na maioria dos filmes de apocalipse existe resistência coletiva. Talvez um ponto fora da curva seja o filme "O Mensageiro" (The Postman, 1997) onde Kevin Costner e Tom Petty dentre outros reconstroem a sociedade dilacerada pela guerra a partir dos serviço público dos Correios.
Qual o mundo surgirá? O comunicador científico Atila Iamarino, na sua entrevista agora pouco no Roda Viva, da TV Cultura, afirma que o mundo mudará. Sem nenhuma dúvida.
As relações sociais vão mudar.
Será que a decadência e decomposição do Império Romano passou por um processo similar de percepção? Como terá sido a sensação daqueles que viveram as mudanças? As invasões bárbaras e o desenvolvimento social que levou ao feudalismo me parecem lembrar o que vivemos.
A revolução industrial fez isso. Mudou o mundo. Mas para a maioria da sociedade a luta pela sobrevivência não permitia pensar no assunto. Vender a força de trabalho e buscar sobreviver nas engrenagens da industrialização como combustível humano na acumulação capitalista.
Seremos uma sociedade que ensinará as crianças a viverem como se estivéssemos em um submarino ou módulo espacial? Isso lembra tantas outras distopias da ficção. A série "The 100" ou o filme "Expresso do Amanhã" (“Snowpiercer”, 2013) onde a luta de classes e a luta pela sobrevivência.
Temos um governo de destruição nacional. E não haverá “união nacional” contra o Coronavírus com aqueles que construíram o golpismo e a destruição dos direitos. A fome voltou ao povo por conta de muitos desses que hoje se apresentam como oposição a Bolsonaro. E agora a peste cobre a nação brasileira na terra onde o Sistema Único de Saúde (SUS) foi dilacerado pelas organizações sociais da saúde que devoram o orçamento público e enriquecem máfias de jalecos brancos de diferentes origens e colorações.
No centro da epidemia, na cidade de São Paulo o orçamento não está sendo destinado para garantir a segurança dos profissionais de saúde e reforçar as estruturas hospitalares públicas. Nada disso. O dinheiro vai para o bolso de um enorme esquema que envolve uma organização social de um hospital de luxo que devora os recursos que deveriam garantir equipamentos de proteção individual, os chamados EPIs e a outros insumos básicos como álcool e álcool em gel para os hospitais públicos. Num hospital da zona leste de São Paulo, os pacientes de covid-19 se amontoam. Enquanto isso, os políticos e a organização social deste hospital de luxo fazem vídeos de relações públicas no Pacaembu e no Anhembi com drones.
O Brasil de Bolsonaro, Doria e Bruno Covas pode até aparecer diferente na retórica. Mas a prática é o critério onde a verdade se manifesta de forma concreta: nenhum deles se importa com o povo. Na cidade de São Paulo, mais de 300 pessoas, servidores da prefeitura, têm aquilo que as enquadraria nos vários grupos de risco para covid-19. Pessoas que fazem tratamentos quimioterápico e radioterápico, idosos, portadores das diversas doenças como hipertensão, diabetes, problemas cardíacos, renais e outros como soropositivos. Pessoas que têm o direito à vida. Como o próprio prefeito tem direito de viver. Mas que estão sendo obrigadas, diferente dele próprio, a ir para locais onde a vida deles estão em risco.
Uma destas trabalhadoras escreve para o sindicato onde sou jornalista. Suas palavras dilaceram minha alma. Nela, ela diz:
“Venho pedir socorro a vocês (...) Tenho DPOC GRAU III, uma doença pulmonar e a minha está grave... Sou auxiliar de enfermagem no hospital na zona leste da cidade onde se tornou referência para coronavírus. Não posso cuidar de pacientes com coronavírus, com os problemas dos equipamentos de proteção individual (EPIs) vou me contaminar e vou MORRER!!! Devido ao pânico que estou, ao estresse e à tortura psicológica que ando passando esses dias estou deprimida, com crise de ansiedade, e muito medo de morrer... Não durmo À noite e não sei mais o que fazer... Já expus meu problema para o médico do trabalho da unidade, minha chefia e ninguém vai me ajudar... Concordam que não posso trabalhar cuidando de coronavírus, mas ninguém vai me ajudar… Já cheguei até pensar em fazer um seguro de vida no nome dos meus filhos, e desistir de lutar, pegar logo essa doença e morrer de vez…”
Respiro fundo. Penso que ela não pode fazer o mesmo. Meus olhos lacrimejam. Escrevo algumas linhas para fazê-la ficar firme. Penso na responsabilidade da cada palavra. De como fazer a vida e a esperança vencerem o desespero e o medo. Busco extrair forças para transformar em esperanças. Recebo de volta um:“Muito obrigada. Deus te abençoe.”
Respiro fundo novamente. E penso na luta que está por vir. Não há filmes sobre isso. Ou bem poucos. É uma história para ser escrita por nós.
Quem viveu momentos assim? John Reed fez seu livro México Insurgente (Boitempo) mostrando um povo se levantando com Pancho Villa, Emiliano Zapata e os irmãos Flores Magón entre tantos revolucionários mudando uma nação. Em seu clássico Dez dias que abalaram o mundo (Várias edições), ele mostra a revolução dos Sovietes, o assalto aos céus. Lembro de um título de outro belo livro de John Reed, Eu vi um mundo novo nascer, de contos e reportagens, incluindo a revolução.
Mas fazer um mundo novo exige mão na massa.
Para isso, o desafio será dar fim a esse governo infecto de alto a baixo por aqui. Proteger a população, os trabalhadores da saúde, recuperar o serviço público de saúde fortalecendo o SUS e acabando com o repasse de recursos para as dragas de recursos públicos da organizações sociais. Defender os empregos e a renda de quem trabalha. E muitas outras lutas. Enfrentar a barbárie do capital e abrir o caminho da emancipação humana.
Será fácil? Essa semana começou.