Há uma semana: quando o vírus passar, a titia vai abrir a padaria, a praia, o parquinho
Em 15 de abril, precisava explicar para minha filha que, por conta da quarentena, não podemos brincar com o Chico, na casa ao lado
Nesta pandemia de coronavírus, as coisas mudam tão rápido que a gente perde a noção do que aconteceu ontem, antes de ontem, há uma semana. O que choca pela manhã já é notícia velha à tarde.
Pensando nisso, Opera Mundi estreou a coluna “Notícias da Semana Passada”. O texto que você lê abaixo foi escrito há uma semana e publicado só agora.
Com esse "distanciamento temporal", procuramos mostrar o que estava ocorrendo na semana anterior e como a epidemia afetava nossas vidas. A ideia é responder: quem nós éramos na semana passada?
Hoje, publicamos o texto da jornalista e atriz Lian Tai:
Goiânia, 15 de abril de 2020.
Vai completar um mês que pousei, junto com minha filha, em terras goianas. Olho o calendário e me dou conta: no plano B, estaria em São Francisco, visitando minha irmã; no plano C, acampando em Fernando de Noronha, com minha amiga Janaína. Do plano A já nem lembro. Passagens compradas e canceladas sucessivamente, não sei mais em que letra do alfabeto estamos. Que planos são possíveis quando o mundo que a gente conhecia deixa de ser?
Minha filha tem um ano e meio, não sei o quanto entende, ou como entende. Uso as palavras vírus e quarentena, para explicar por que não podemos brincar com o Chico, na casa ao lado. Uso a palavra medo, quando ela insiste em ficar na rua e sou atacada por pânico. E, se um mês atrás ela me perguntava pelo "paquinho" e pela "paia", hoje é ela quem me conta: "Paquinho fechado. Paia fechado. Padaía fechado". E completa pedindo a uma pessoa imaginária: "Abe, titia! Abe paquinho!"
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Ultimamente temos sonhado juntas: quando o vírus passar, isto é, quando houver uma vacina - é como lhe explico -, a titia vai abrir a padaria, a praia, o parquinho. Nós vamos brincar com o Chico, com a Bella, com a Isis. Seu pai vai levá-la ao parque de areia. - Há um mês que os dois brincam de pega-pega por videochamada, eu a perseguindo com a cara dele no celular. Há uma semana que ela pede que ele toque flauta, lá do Rio de Janeiro, enquanto ela mama, dizendo: "mamá de musa". O futuro distópico dos filmes, doce e triste. Tão hoje.
Estamos na casa dos meus pais e isso é um respiro. Os dois fazem home-office, enquanto subo e desço escadas atrás de Paz, que é o nome da minha filha. Subimos ao ateliê do avô, ela pinta quadros. Quando desce para mostrar sua primeira pintura, ele nem dá bola, com o olhar perdido na televisão. Ela não dá sinais de chateação, mas fico tão triste. Subimos para tomar banho e, quando voltamos, ele aparece fazendo festinha e elogiando a pintura da neta, retornado do transe. Meu pai anda deprimido com a ignorância da direita brasileira, que volta seu ódio contra a China. Diz que não quer mais escrever o livro que começou vorazmente, na esperança de explicar ao Ocidente sobre a cultura e a geopolítica de seu país natal. Diz que nada adianta, ninguém escuta. Ele não conhecia o ódio cego e surdo até então.
Janaína manda mensagem contando que teve uma crise de choro: a tia passou na porta de sua casa para levar comidas da roça, fez um gesto para abraçá-la, ela recuou. Depois entrou em casa e chorou copiosamente. Queria aquele abraço - ela disse. Leilane, que passa a quarentena na casa da mãe, diz que não a abraça desde que chegou. Ela sai para fazer compras e tem medo de voltar com o vírus. Lucélia, ao telefone, fala de Cambridge Analytics e de como os idiotas, representando o Capital, foram eleitos com mentiras e manipulação. Tem que haver algo que a gente possa fazer. São como vírus, os idiotas. Será que haverá uma vacina contra eles?
Nasce Cauã, filho da minha melhor amiga Júlia. Morre Moraes Moreira, compositor das canções da vida. Procuradoria-Geral da República pede ao STF abertura de inquérito contra o tosco ministro da Educação, por racismo - meu pai me conta, celebrando. Já o não menos tosco ministro da Saúde, que sempre se prestou a desmontar o SUS, virou herói, pelo mínimo de sensatez que é defender o isolamento social, em oposição ao presidente do teatro do absurdo que esse país se tornou. A nova classe coxinha, uma mutação assombrosa tal qual o novo coronavírus, vocifera contra reacionários tradicionais, como Dória e Caiado. Acusam a golpista Rede Globo de comunista. Recusam-se a fazer quarentena, dizendo que o vírus é farsa. Converso em pensamento com os coxinhas tradicionais e digo que eles criaram um monstro.
A Terra é redonda e o vírus mata! - quero gritar aos vizinhos, que fazem cultos em sua casa, quando não escutam música sertaneja no ultimíssimo volume. Diariamente chamo os seguranças do condomínio, que medem os decibéis e pedem para abaixarem o som. Em uma das vezes, o vizinho se aproxima, com o rosto entre as plantas que separam nossas casas, e me grita que o deixe em paz, pois nem nos conhecemos. E que eu vá tomar no cu, nessas palavras. Seu filho pequeno se aproxima e grita: "amanhã tem mais!" E tem. Fico estarrecida ao perceber que, em sua mente, sou eu quem incomodo. E penso que ele representa exatamente a elite brasileira, que vê seu privilégio como direito e o direito do outro como ofensa. Digo para minha filha, que acordou à meia noite com o som alto dele, que aquele é o vizinho crente hipócrita. Ela repete, docemente: "vizinho de pipoca".
Eu, que não acredito em meritocracia, fantasio que deveria haver uma meritocracia do vírus. Que ele matasse apenas aqueles que debocham dele e, tendo opção, furam o isolamento. Que ele matasse presidentes que saem pegando na mão do povo sem proteção, empresários que preferem ceifar vidas a ceifar parte de seus lucros e outros negacionistas de má-fé. Mas que essas pessoas coloquem em risco aqueles que não têm outra opção, senão seguir se expondo, ou os que fazem seu melhor para proteger a si e ao outro, é algo que me enoja. Não há justiça no vírus. E ele chega às favelas e também às aldeias indígenas - provavelmente pelas mãos dos garimpeiros. Não há justiça, não há. Olivaldi Borges é exonerado da direção de Proteção Ambiental do Ibama por combater o garimpo ilegal em terras indígenas. Não há nem a pequena possibilidade de justiça.
É preciso vestir máscara para sair à rua, o Ocidente reconhece, semanas depois de zombarmos delas, a despeito da experiência dos países asiáticos. Calculo cada movimento milimetricamente quando vou ao mercado e começo a sonhar com ele na noite anterior. É difícil sermos amáveis quando temos medo e nos perguntamos de cada pessoa que cruza nosso caminho se será ela que portará o vírus. Lamento pela mãe que deixei de ser, pela mãe que seria: confiante, que deixa a filha explorar o mundo livremente. Lembro a comoção que Paz causou, quase um ano atrás, na Vila de São Jorge, por engatinhar solta, tocando em tudo e perseguindo os cachorros. Um homem, emocionado, deu-lhe um quartzo rosa, que ela passou a segurar ao engatinhar, fazendo toc toc toc por todo lado. Peda rosa! - ela me pede hoje, quando toco no assunto.
Perdemos a pedra. Perdemos aquela possibilidade de mundo. E, qualquer que seja a nova normalidade, sabemos que ela será fundada sobre o medo. Um mundo pós-medo. Quem viver verá.