Há uma semana: a liberdade de locomoção versus o direito coletivo à saúde
Em 18 de abril, já havíamos decidido fechar as entradas da cidade de Conde. Mas não imaginávamos a batalha judicial que teríamos pela frente
Nesta pandemia de coronavírus, as coisas mudam tão rápido que a gente perde a noção do que aconteceu ontem, antes de ontem, há uma semana. O que choca pela manhã já é notícia velha à tarde.
Pensando nisso, Opera Mundi estreou a coluna “Notícias da Semana Passada”. O texto que você lê abaixo foi escrito há uma semana e publicado só agora.
Com esse "distanciamento temporal", procuramos mostrar o que estava ocorrendo na semana anterior e como a epidemia afetava nossas vidas. A ideia é responder: quem nós éramos na semana passada?
Hoje, publicamos o texto de Renata Martins Domingos, secretária de Saúde da cidade de Conde, na Paraíba:
Conde (PB), 18 de abril de 2020.
Sábado. Não acordei tão cedo quanto no sábado anterior, mas às 7h me levantei porque teria mais um dia de trabalho em Conde. Tinha me programado pra acordar mais cedo para ir à padaria comprar o pão a pé e de máscara, para fazer algum exercício físico, mas fui vencida pelo cansaço e pelo hábito de não fazer exercícios físicos regulares.
Tomei meu café com leite da manhã com dois ovos mexidos, me arrumei, e segui a mesma rotina de arrodear a casa para tentar evitar contaminações. Todos dormiam. Havia projetado que voltaria por volta das 14h.
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O carro da Secretaria de Saúde já me esperava em frente de casa. Eram 8h10. Entrei e fui ajeitando o que faltava. Lembrei que havia esquecido minha máscara de pano, mas segui, porque seria entrevistada às 8h30 (já estava atrasada) por uma equipe de tevê que iria tratar das barreiras sanitárias.
Como relatei em 11 de abril passado, realizamos barreiras sanitárias com equipes da Secretaria de Saúde e da Guarda Civil Municipal, que abordavam os carros e mediam a temperatura das pessoas. Findo o feriado, fizemos uma reunião da Comissão de monitoramento da covid-19 em Conde e avaliamos a medida. Julgamos que a aceitação da população foi excelente, que as visualizou como uma forma de cuidado e prevenção de disseminação do coronavírus. Nesse sentido, ter decidido por as implantar no feriado foi decisão administrativa correta.
As equipes de trabalhadores da Saúde superaram as expectativas, tendo demonstrado muito apreço, comprometimento e orgulho do trabalho executado nas barreiras sanitárias, embora tenham o feito sob sol forte. Assustou e preocupou muito a quantidade de veículos que adentraram na cidade, embora a recomendação no âmbito nacional, estadual e nos municípios da região metropolitana de João Pessoa, incluído Conde, seja a do isolamento social. As quantidades de automóveis que adentraram na cidade foram aumentando a cada dia do feriado, culminando na estimativa de 10.000 (dez mil) carros no domingo! Também houve dificuldade no monitoramento dos sintomas das pessoas cujas temperaturas foram aferidas como acima de 37,8°, o que torna praticamente inviável a investigação do desenvolvimento da febre e outros sintomas que possam indicar a suspeita de contaminação pela covid-19.
Diante dessa avaliação da forma pela qual instalamos as barreiras sanitárias em Conde, os membros da Comissão, liderados pela prefeita Márcia Lucena, decidiram, por maioria de votos, por manejar essa nova medida administrativa de forma a fechar as entradas da cidade neste final de semana para pessoas que não fossem seus moradores, seus trabalhadores ou fornecedores, já que ele se constituiria em outro feriadão (Tiradentes). Não tive nenhuma dúvida de que essa seria a melhor alternativa pra cidade, nem tão pouco a prefeita! Turistas e veranistas deveriam esperar a recomendação do isolamento social acabar para vir às suas casas na cidade.
Ciente da responsabilidade que está nas nossas mãos, Lucena não titubeou em decidir pelo fechamento das entradas da cidade.
Elaboramos os relatórios sobre essa primeira experiência, planejamos o trânsito, discutimos que documentos seriam requisitados, como seria feita a abordagem, enfim, a Prefeitura de Conde se preparou para a nova medida. Ela começou ontem cedo. Avisamos os meios de comunicação, e na sexta já começamos dando entrevistas justificando as razões do fechamento. Foi uma medida acertada, porque começar na sexta e ter a divulgação dos principais canais de tevê e das rádios fez com que a circulação de carros fosse pequena. Também ressalto a receptividade da população com a medida, que mais uma vez se sentiu cuidada e dos próprios trabalhadores dos meios de comunicação que nos entrevistaram, que elogiaram as ações da gestão.
Mas, como nem sempre se ganha nessa guerra, como disse Elis na sua música, tivemos uma surpresa no fim da tarde. Às 15h37 de ontem, recebi a visita de um oficial de justiça comunicando-me que o decreto tinha sido suspenso por uma antecipação de tutela, uma irmã quase gêmea da famosa “liminar”. Isso significava que as barreiras sanitárias só poderiam ser feitas da primeira forma que planejamos, sem cercear o direito de ir e vir dos cidadãos, que nas palavras da decisão, criava distinção entre brasileiros iguais em direitos. Pensei: quem será que reclamou das barreiras sanitárias impeditivas? E estava lá escrito: Trata-se de AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE MEDIDA LIMINAR ajuizada pelo Ministério Público Estadual em face o Município do Conde! Quase tive um treco, apesar de saber que isso poderia acontecer. Como advogada de formação, tinha ciência de que algum proprietário de casa de veraneio poderia reclamar da medida. Mas não imaginei que o Ministério Público, atuando como defensor da lei, fosse ter a iniciativa dessa demanda. Explico.
Esse mesmo Ministério Público vive oficiando a Secretaria de Saúde, realizando audiências, ajuizando ações com vistas a exigir o direito à saúde de moradores de Conde. São pedidos para fornecimento de cadeira de roda motorizada, medicamentos fora da Relação Nacional de Medicamentos (Rename) e outras tantas demandas, que nos desdobramos pra viabilizar ou informar as dificuldades que temos para isso. E nessa hora da pandemia, do direito de ir e vir ter sido mitigado pela Organização Mundial da Saúde como recomendação para todos os países do mundo como forma de garantir o direito à saúde, vem o Ministério Público e coloca o direito individual acima do coletivo?! E mais, tem seu pedido atendido pelo mesmo Poder Judiciário local, que também exige da Secretaria de Saúde a garantia do direito à saúde em várias dimensões para toda a população!
Perdemos parte dessa guerra, como diz a música, porque durante a maior parte deste sábado, as barreiras sanitárias não puderam barrar os turistas e veranistas que adentraram na cidade! Nesse sentido, o Ministério Público e o Poder Judiciário de Conde responsabilizaram-se, com suas ações, no que pudesse vir a acontecer com a população de Conde em função da proliferação do coronavírus durante todo esse período.
Passei o sábado trabalhando em Conde com a chefe do Departamento de Atenção Básica, inserindo os valores das emendas parlamentares recebidas do deputado Gervásio Maia, do Partido Socialista Brasileiro (PSB), no sistema do Fundo Nacional de Saúde. Mais de 3 milhões de recursos para a Atenção Básica e para a luta contra a covid-19. Cheguei desanimada na Secretaria por conta da decisão judicial da suspensão, mas ao longo do dia, cadastrando as emendas, fui me animando pensando no tanto que poderemos melhorar nossa rede de serviços com esses recursos.
Durante os trabalhos, perguntei algumas vezes ao Procurador do Município se havia retorno sobre o recurso interposto contra a decisão judicial. Passamos a tarde e noite de sexta debatendo sobre as alegações justificadoras da medida, procurando meios de justificar o que é mundialmente justificado: a mitigação do direito de ir e vir em função de ser esta a melhor forma de prevenção contra a covid-19.
No comecinho da noite, ainda na Secretaria de Saúde, recebo a ligação do procurador da área contenciosa da Prefeitura. Atendo a ligação do celular: conseguimos? Ele: sim! Conseguimos!! O desembargador do Tribunal de Justiça da Paraíba suspendeu a liminar!
Começamos a gritar na Secretaria, eu e a companheira do trabalho no sábado!!! Comuniquei a decisão nos grupos de WhatsApp da gestão, especialmente o da Saúde, pro meu companheiro de vida, pros amigos advogados lá do Centro Acadêmico XI de Agosto, pros amigos do colégio de São Paulo, pros meus amigos secretários de Saúde mais próximos, pras minhas irmãs, por meu pai. Fiz festa! Ufa! Conseguimos reestabelecer a medida a qual entendemos que, num feriado prolongado, dada a caraterística turística da cidade, seria uma das melhores formas de evitar o deslocamento das pessoas e a possível disseminação do coronavírus.
E o desfecho da decisão judicial lavrada pelo desembargador João Bendito da Silva, que restabeleceu o fechamento das entradas da cidade no feriado prolongado, explicita muito bem o que está em jogo pra gestão da cidade de Conde, comandada pela guerreira prefeita Lucena:
“Registre-se, por fim, que o Município do Conde é nacionalmente conhecido no meio turístico. As belas praias e belezas naturais localizadas em seu território são sistematicamente exploradas pelo Poder Público, que reconhece o turismo como a principal fonte de emprego e renda da população local. As medidas disciplinadas pelo Decreto Municipal nº 238/2020 ferem de morte, ao menos momentaneamente, o exercício da principal atividade econômica dos munícipes. Se, a despeito dessas circunstâncias, o agravante lança mão de postular em juízo pela manutenção da vigência da legislação restritiva, entendo que, para este, o bem-estar da população local (coletividade) é prioridade para Administração Pública neste momento, ainda que haja perda de receita tributária com o turismo.”
É isso: queremos preservar a vida e o bem-estar da população condense, garantindo o direito à saúde diante dessa temerosa realidade da pandemia da covid-19.
Renata Martins Domingos é secretária de Saúde da Prefeitura de Conde, na Paraíba.