Há uma semana: covid-19 e os indiferentes que Gramsci odiou
Em 27 de abril, aniversário de 83 anos da morte de Antonio Gramsci, lembremos do texto em que o militante operário italiano expressa um significado preciso daquilo que ele definiu como algo que 'atua poderosamente na história'
Nesta pandemia de coronavírus, as coisas mudam tão rápido que a gente perde a noção do que aconteceu ontem, antes de ontem, há uma semana. O que choca pela manhã já é notícia velha à tarde.
Pensando nisso, Opera Mundi estreou a coluna “Notícias da Semana Passada”. O texto que você lê abaixo foi escrito há uma semana e publicado só agora.
Com esse "distanciamento temporal", procuramos mostrar o que estava ocorrendo na semana anterior e como a epidemia afetava nossas vidas. A ideia é responder: quem nós éramos na semana passada?
Hoje, publicamos o texto do jornalista Alexandre Linares:
São Paulo, XXVII.IV.MMXX
Hoje faz 83 anos da morte de Antonio Gramsci. É dele um dos textos que mais gosto. “Os Indiferentes” foi escrito em fevereiro de 1917. Texto em que o militante operário italiano expressa um significado preciso daquilo que ele definiu como algo que “atua poderosamente na história”:
Odeio os indiferentes. Como Friederich Hebbel, acredito que 'viver significa tomar partido'. Não podem existir os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes.
A indiferença é o peso morto da história. É a bala de chumbo para o inovador, é a matéria inerte em que se afogam frequentemente os entusiasmos mais esplendorosos, é o fosso que circunda a velha cidade e a defende melhor do que as mais sólidas muralhas, melhor do que o peito dos seus guerreiros, porque engole nos seus sorvedouros de lama os assaltantes, os dizima e desencoraja e às vezes, os leva a desistir de gesta heroica.
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A indiferença atua poderosamente na história. Atua passivamente, mas atua. É a fatalidade e aquilo com que não se pode contar; é aquilo que confunde os programas, que destrói os planos, mesmo os mais bem construídos; é a matéria bruta que se revolta contra a inteligência e a sufoca. O que acontece, o mal que se abate sobre todos, o possível bem que um ato heroico (de valor universal) pode gerar, não se fica a dever tanto à iniciativa dos poucos que atuam quanto à indiferença, ao absentismo dos outros, que são muitos. O que acontece, não acontece tanto porque alguns querem que aconteça quanto porque a massa dos homens abdica da sua vontade, deixa fazer, deixa enrolar os nós que, depois, só a espada pode desfazer, deixa promulgar leis que depois só a revolta fará anular, deixa subir ao poder homens que, depois, só uma sublevação poderá derrubar. A fatalidade, que parece dominar a história, não é mais do que a aparência ilusória desta indiferença, deste absentismo. Há fatos que amadurecem na sombra, porque poucas mãos, sem qualquer controle a vigiá-las, tecem a teia da vida coletiva, e a massa não sabe porque não se preocupa com isso. Os destinos de uma época são manipulados de acordo com visões limitadas e com fins imediatos, de acordo com ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos, e a massa dos homens não se preocupa com isso. Mas os fatos que amadureceram vêm à superfície; o tecido feito na sombra chega ao seu fim e então parece ser a fatalidade a arrastar tudo e todos, parece que a história não é mais do que um gigantesco fenômeno natural, uma erupção, um terremoto, de que são todos vítimas, o que quis e o que não quis, quem sabia e quem não sabia, quem se mostrou ativo e quem foi indiferente. Estes então zangam-se, queriam eximir-se às conseqüências, querem que se visse que não deram o seu aval, que não são responsáveis. Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas nenhum ou poucos põem esta questão: se eu tivesse também cumprido o meu dever, se tivesse procurado fazer valer a minha vontade, o meu parecer, teria sucedido o que sucedeu? Mas nenhum ou poucos atribuem à sua indiferença, ao seu cepticismo, ao fato de não ter dado o seu braço e a sua atividade àqueles grupos de cidadãos que, precisamente para evitarem esse mal combatiam (com o propósito) de procurar o tal bem (que) pretendiam.
A maior parte deles, porém, perante fatos consumados prefere falar de insucessos ideais, de programas definitivamente desmoronados e de outras brincadeiras semelhantes. Recomeçam assim a falta de qualquer responsabilidade. E não por não verem claramente as coisas, e, por vezes, não serem capazes de perspectivar excelentes soluções para os problemas mais urgentes, ou para aqueles que, embora requerendo uma ampla preparação e tempo, são todavia igualmente urgentes. Mas essas soluções são belissimamente infecundas; mas esse contributo para a vida coletiva não é animado por qualquer luz moral; é produto da curiosidade intelectual, não do pungente sentido de uma responsabilidade histórica que quer que todos sejam ativos na vida, que não admite agnosticismos e indiferenças de nenhum gênero.
Odeio os indiferentes também, porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Peço contas a todos eles pela maneira como cumpriram a tarefa que a vida lhes impôs e impõe quotidianamente, do que fizeram e sobretudo do que não fizeram. E sinto que posso ser inexorável, que não devo desperdiçar a minha compaixão, que não posso repartir com eles as minhas lágrimas. Sou militante, estou vivo, sinto nas consciências viris dos que estão comigo pulsar a atividade da cidade futura que estamos a construir. Nessa cidade, a cadeia social não pesará sobre um número reduzido, qualquer coisa que aconteça nela não será devido ao acaso, à fatalidade, mas sim à inteligência dos cidadãos. Ninguém estará à janela a olhar enquanto um pequeno grupo se sacrifica, se imola no sacrifício. E não haverá quem esteja à janela emboscado, e que pretenda usufruir do pouco bem que a atividade de um pequeno grupo tenta realizar e afogue a sua desilusão vituperando o sacrificado, porque não conseguiu o seu intento.
Vivo, sou militante. Por isso odeio quem não toma partido, odeio os indiferentes.
Escrito para uma publicação chamada La Città Futura, da juventude socialista Italiana, o texto mostra-se profundamente atual e possui uma beleza poética. Li ele pela primeira vez numa adaptação em forma de poesia na contracapa de A Quinzena, uma ferramenta importante de clipping do movimento sindical, político e popular do antigo Centro de Documentação e Pesquisas Vergueiro, uma entidade de origem católica que funcionou por anos entre a Rua Vergueiro, a Av. Brigadeiro Luiz Antônio e por fim na Rua Santo Antônio, no Bixiga. Fundado pelo frei dominicano italiano Giorgio Callegari o CPV era um lugar ímpar. Suas raízes na esquerda católica o faziam um lugar heterodoxo e amplo. Lá sempre havia pessoas de diferentes grupos.
Lembro-me de ter ido lá a primeira vez e ter sido impactado por um arquivo gigantesco. Ainda estavam num prédio na Av. Brigadeiro Luiz Antônio. Um lugar atulhado de jornais, revistas, panfletos e livros. Um paraíso do conhecimento social. Depois, com uma última ajuda vinda da Itália, compraram um prédio onde funcionou os últimos anos no Bixiga. Lá eu ia para pegar publicações e comprar livros artesanais baratos da esquerda. Li Rosa Luxemburgo pela primeira vez numa pequena edição de bolso de Socialismo e as Igrejas, editado pelo próprio CPV. Posteriormente, fiz a digitação/transcrição da pequena brochura para o Arquivo Marxista na Internet que incorretamente afirma que sou seu tradutor.
Numa época que parece fazer parte de outra era histórica, aquele espaço era quase um Google do conhecimento das lutas sociais brasileiras.
Gostava de ir lá para conversar. Era uma espécie de centro cultural da esquerda operária heterodoxa. Era um bom lugar para se bater papo. Leonor Marques era sempre gentil com os visitantes. Luiz, sempre paciente, contava a história do espaço. Lembro-me de uma jovem companheira japonesa com um sorriso muito bonito. Minha memória falha e não me recordo de seu nome. Conheci lá o companheiro Leonardo Pinho, hoje dirigente da Unisol, entidade nacional de economia solidária. Na época, era ativista do trotskismo de tradição boliviana. A última vez que vi aquele espaço que teve um papel importante em minha formação, seu conteúdo estava sendo encaixotado. Mudava-se de casa. Seus mais de 400 metros passaram a fazer parte do grande Arquivo Edgard Leuenroth.
Tudo vem a memória pensando nesse meu contato com o pensador italiano. Por ali conheci os textos de Emílio Gennari que dialogava com sua coruja Nádia. Gennari foi quem, após o levante zapatista em Chiapas, traduzia os comunicados libertários das comunidades indígenas mexicanas.
Escrita automática
Chego até aqui partido do pensador italiano num método de caminhada pelas memórias inspirado pelo poeta surrealista francês Benjamin Péret. Anticlerical, libertário e internacionalista. Casou-se com uma artista brasileira, conviveu com modernistas e por aqui viveu e militou até ser expulso pelo regime Getúlio Vargas por atividades subversivas. Daqui partiu para se juntar à revolução espanhola. Lembro-me disso pois encontrei cartas de Péret ao amigo André Breton sobre o processo revolucionário espanhol que guardo para um dia ter tempo para traduzi-las.
A informação em época de covid-19
Assisto ao Jornal Nacional. Entre a crise política nacional e a epidemia sobra pouca coisa no telejornal. Olho para uma reportagem sobre a perda de milhares de testes mal armazenados. Pessoas que ficaram sem saber se tiveram a doença. Mortos que no seu óbito estará a informação de “Síndrome Respiratória”. Não há dúvida que as milhares de covas abertas pelo prefeito Covas serão uma grande vala da irresponsabilidade governamental para com a população. Em uma crise como essa, tal como na guerra, a primeira vítima é a verdade. Sem dúvida será necessário no futuro uma Comissão Verdade do Coronavírus.
Escola em tempos de coronavírus
Hoje foi um dia de cão. O governo do estado estabeleceu o retorno das aulas numa “modalidade não presencial”. Quer garantir as horas do ano letivo. Sem a paciência e a calma, a burocracia quer mostrar serviço e não se preocupa com o aprendizado em si.
Olho para o secretário da Educação e vejo um tucano nato. Ao menos conduzindo alguns eventos ele tem mais clareza que o séquito de assessores que, pelo jeito, ficam querendo resolver tudo ao mesmo tempo agora.
O sindicato corretamente questiona o expediente. Alunos querem algum sistema de aprendizado. Obviamente que nenhuma aplicação massiva vai funcionar do jeito adequado no primeiro momento. Mas é necessário explicar isso para professores que, apavorados pelo próprio atraso com a tecnologia, afinal recebendo 12 reais por hora-aula, não sobram muitos recursos para acessar novas tecnologias e nem tempo para aprender.
Minha atividade de volta as aulas já tem 115 entregas. Amanhã é o prazo final para entrega de minha atividade citada. Creio que o número deve aumentar um pouco. Talvez, na melhor das hipóteses chegue ao resultado de 50%. Indicador importante no meu microcosmos. Viveremos um aprofundamento da desigualdade educacional.
Alunos com suporte familiar, disposição de estudo e foco vão persistir e superar as adversidades. Mas uma parcela será profundamente marginalizada do acesso ao aprendizado. Simplesmente por não possuir referências ou pontos de apoio.
O melhor aprendizado é sempre uma combinação do esforço individual e do trabalho coletivo. O coletivo estimula, empurra e incentiva. Na situação em que vivemos há chances de uma enorme regressão à condição anterior a obrigatoriedade do Ensino Médio aos jovens. Um prejuízo enorme. Volto ao assunto nos próximos escritos.