Há uma semana: estamos vivendo o maior experimento psicológico de todos os tempos
Em 29 de abril, completavam-se exatamente 50 dias do lockdown total na Itália, e governo anunciava uma reabertura gradual. Mas essa abertura, mesmo lenta, dá medo
Nesta pandemia de coronavírus, as coisas mudam tão rápido que a gente perde a noção do que aconteceu ontem, antes de ontem, há uma semana. O que choca pela manhã já é notícia velha à tarde.
Pensando nisso, Opera Mundi estreou a coluna “Notícias da Semana Passada”. O texto que você lê abaixo foi escrito há uma semana e publicado só agora.
Com esse "distanciamento temporal", procuramos mostrar o que estava ocorrendo na semana anterior e como a epidemia afetava nossas vidas. A ideia é responder: quem nós éramos na semana passada?
Hoje, publicamos o texto da correspondente de Opera Mundi na Itália, Janaina Cesar: :
Bassano del Grappa, 29 de abril de 2020.
Enquanto preparava a janta e a TV me fazia companhia, escutava as notícias do telejornal esperando ouvir um farelo sobre o que está acontecendo no Brasil e nada, nem uma palavra. Mudei de canal e o mesmo aconteceu nos outros telejornais. Fiquei perplexa, pois ontem, quando o Brasil ultrapassou a casa dos 5.000 mortos pelo coronavírus, ouvimos Bolsonaro dizer: “E daí? Não faço milagres”. Estava iniciando um processo de emputecimento mental decorrente de tudo o que está acontecendo em meus dois países, o Brasil e a Itália, onde moro há 15 anos, até que fui interrompida por minhas filhas, que haviam entrado na cozinha para preparar a mesa e acabaram mudando de canal. Naquela fração de segundos eu amei a existência do canal de desenho.
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Pensando bem, essa tem sido uma semana estranha e o fator psicológico do isolamento começa a pesar. Olho para o que está acontecendo hoje no Brasil e vejo a Itália de semanas atrás. Nós aqui estamos no futuro de vocês aí e, mesmo assim, uma parcela dos brasileiros nega o perigo dessa maldita doença. Prefere seguir Bolsonaro em suas sandices. Esse senhor que ridicularizou o Brasil internacionalmente hoje me causa medo. Não é um medo dele em si, mas o medo do que seremos nós no futuro, de como nosso país será visto pelos outros quando estes começarem a afrouxar suas restrições, dando os primeiros passos para o retorno à normalidade. Se bem eu ache que aquela vida que um dia tivemos não voltará mais.
Hoje faz exatamente 50 dias que a Itália entrou em lockdown total, mas algumas das restrições iniciaram no final de fevereiro (fechamento das escolas, parques, bibliotecas). O tempo parece não passar. Eu nem estava no país quando, na noite do dia 9 de março, o primeiro ministro Giuseppe Conte, em rede nacional, anunciou aos italianos que “não dava mais tempo” e que o país iria parar. Naquele dia, a Itália contava 463 mortos. Eu, “perdida” no meio do Pará, tinha ido com uma equipe da TV italiana fazer uma reportagem e ficamos completamente em pânico com a notícia. Após voos cancelados e uma semana de cão, conseguimos embarcar de volta para casa.
Domingo agora, dia 26, Conte fez seu enésimo pronunciamento e surpresa: o país, em teoria, está pronto para iniciar a fase 2. A reabertura não será da noite para o dia como queriam os empresários, mas gradual. Começará dia 4 de maio e irá até setembro, quando finalmente ocorrerá o retorno à escola. O ano letivo aqui vai de setembro a junho. O atual terminará online. E, se devo ser sincera, não está sendo essa maravilha que estão contando por aí. A experiência que temos em casa é um tanto desordeira.
No final de fevereiro, as lições eram enviadas via e-mail ou WhatsApp para os pais. Com o passar das semanas, a escola disponibilizou uma nuvem complicadíssima onde as lições eram carregadas pelas professoras e somente agora em abril é que as lições online realmente iniciaram na escola de minhas filhas. Além de ter começado tarde, as aulas se reduzem a 50 minutos, duas vezes por semana. O pouco tempo disponível acaba gerando uma ansiedade nos pequenos, pois eles querem falar, participar e, muitas vezes, não conseguem porque aula trava ou cai a linha.
Mas, voltando ao afrouxamento das restrições, a partir do dia 4 poderemos praticar esportes, ir ao parque, a funerais e visitar parentes próximos, mas sozinhos e mantendo a distância de segurança. Precisaremos ainda carregar conosco a autocertificação explicando para onde estamos indo. Bares e restaurantes abrirão dia 18 e cabeleireiras, só dia 1º de junho. Vou ter que esperar ainda um mês para dar uma tinta nos 4 dedos de raiz do meu cabelo que está gritando por socorro.
Essa história dos salões de beleza já deu muito pano para manga aqui no país. Tanto que, no final de março, Antonio Tutolo, prefeito de Lucera, uma cidade que fica na região da Puglia, sul da Itália, fez um vídeo emputecido denunciando um “giro” abusivo de cabeleireiras que iam clandestinamente na casa de suas clientes dar conta das madeixas desordenadas. Dizia ele: “Mas vocês entendem que no lugar do laquê a cabeleireira pode te trazer o vírus?”
Diante ao drama, existe também a comédia. Ou o realismo mágico de Fellini. Uma parte do decreto de domingo levantou uma grande polêmica relacionada à palavra “congiunti” (congênere) usada para distinguir a categoria de pessoas que poderiam ser visitadas. O governo logo esclareceu que são parentes, cônjuges, coabitantes e qualquer pessoa a quem você esteja vinculado por um relacionamento emocionalmente estável. Se por acaso você havia acabado de conhecer aquele boy fantástico pouco tempo antes da quarentena, sinto muito, mas não tem nada que possa ser feito a não ser esperar ou pedir ele em casamento.
Brincadeiras à parte, a decisão do governo italiano de afrouxar gradualmente o isolamento está correta. Nesta semana, publicaram o relatório que foi entregue ao premiê Conte, em que o Instituto Superior de Saúde, em conjunto com o Comitê Técnico-Científico, descrevem vários cenários possíveis para a fase 2. No pior deles, se tudo reabrisse agora, imediata e indiscriminadamente, a saúde do país explodiria. O relatório traz dados que vão além do colapso do sistema sanitário: seria seu fim. Abrindo tudo agora, incluindo as escolas, em junho, seriam necessários 151 mil lugares nas UTIs. Num período de oito meses, 431 mil pessoas poderiam ser internadas, isso sem contar os mortos.
Sabem, essa abertura, mesmo lenta, dá medo. Aliás, medo é uma palavra que há alguns dias está fazendo parte do meu vocabulário. Como várias amigas daqui, estou tendo crises de insônia, fico angustiada com o afrouxamento, medo de dar tudo errado e termos que nos isolar de novo por mais dias. Tenho medo de pensar que nossa vida será destinada à paranoia contínua. Tenho medo de não voltarmos à normalidade que um dia conhecemos. Por exemplo, em nome do bem comum, isto é, da saúde coletiva, aceitamos restrições de nossas liberdades individuais, mas, e se a emergência continuar, essas restrições podem ser estendidas? E até quando?
Sobre o medo que me aflige, li hoje uma interessante matéria de Annamaria Testa, que foi publicada na edição desta semana da revista Internazionale, onde ela fala como um terço da população foi envolvida (involuntariamente) no maior experimento psicológico de todos os tempos. “A psicologia social estuda a interação entre seres humanos e os fatores que podem orientar o seu comportamento. Um dos instrumentos usados são os experimentos sociais, que consistem em colocar indivíduos sozinhos ou em grupos em novos contextos, sem algum aviso prévio ou instrução sobre como devem reagir”, escreve Annamaria. “Os países, legitimamente, se preocupam em conter o vírus, mas pouco ou nada fazem para mitigar o impacto psicológico do isolamento, que pode causar insônia, ânsia, depressão, por exemplo”.
Caiu com uma luva esse artigo. Bom, enquanto reflito sobre ele, percebo que o meu estoque de máscaras que trouxe do Brasil está acabando. O governador aqui do Vêneto, região onde moro, por duas semanas, distribuiu gratuitamente 5 exemplares para cada família, mas estas já acabaram também. Vou usar as de pano que uma brasileira fez e me deu de presente. Não a conhecia, ela mora aqui na cidade, confecciona as máscaras em casa e distribui para quem não tem. Um belo gesto. Me fez ficar bem.