Há uma semana: Um 1º de maio sem aglomeração, mas de termômetro na mão
No Dia do Trabalho, acordei vermelha e meu hábito de medir a temperatura frequentemente gerou certo desespero; amigos e rituais caseiros tornaram tudo mais leve e até engraçado
Nesta pandemia de coronavírus, as coisas mudam tão rápido que a gente perde a noção do que aconteceu ontem, antes de ontem, há uma semana. O que choca pela manhã já é notícia velha à tarde.
Pensando nisso, Opera Mundi estreou a coluna “Notícias da Semana Passada”. O texto que você lê abaixo foi escrito há uma semana e publicado só agora.
Com esse "distanciamento temporal", procuramos mostrar o que estava ocorrendo na semana anterior e como a epidemia afetava nossas vidas. A ideia é responder: quem nós éramos na semana passada?
Hoje, publicamos o texto de Vanessa Martina Silva, jornalista e editora do site Diálogos do Sul:
Acordei vermelha. Já passava do meio-dia e estava com leve ressaca. Escovar os dentes, regar as plantas, limpar a caixa de areia da gata e completar o pote de comida dela: essa é a única rotina que eu consigo ter ao longo do dia.
No café da manhã, fogazza requentada e pão fofinho recém-assado. Para almoço, macarrão de ontem reciclado e, no jantar, pizza com massa feita em casa (deu ruim, ficou borrachuda dessa vez).
Eu geralmente trabalho nos Primeiros de Maio cobrindo os atos que ocorrem de Norte a Sul do país. Mas, desta vez foi diferente. Só havia um evento — unificado — e a publicação entraria automaticamente na página da Diálogos do Sul no Facebook.
Estou longe de ser exceção, mas tenho trabalhado tanto que sábado e domingo viraram dias comuns e as horas, o dia e a noite se misturam e se sobrepõem. Durmo e acordo tarde. Pelo menos a quarentena me deixa ter esse privilégio.
Estava vermelha. Resolvi testar a febre porque nunca se sabe, afinal, tive que ir ao mercado outro dia e a atendente estava gripada. 36,4. Super OK.
Foi inevitável abrir o WhatsApp e começar a responder mensagens do trabalho, mesmo me punindo internamente: “você está de folga, caramba!”. Alguns ajustes, uma checada nas publicações da página, mais algumas mensagens, uma espiada na audiência e pronto. Desliguei o computador e deixei o celular de lado.
Agora tinha um dia para fazer o que a maioria das pessoas está fazendo: ter tédio e ócio (im)produtivo. Peguei o último livro que comecei a ler - A Sangue Frio, de Truman Capote - e fui para a rede para fazer algo ser bem instagrável.
Porém, em um apartamento de 60 metros, um companheiro DJ e uma gata, esses momentos de retiro mental são mais difíceis. Na TV, estava passando a transmissão do ato do 1º de maio, tentei conciliar com o livro, mas foram muitas as distrações. Desisti. Claro, o melhor discurso foi o da ex-presidente Dilma Rousseff. #ForaBolsonaro!
Procurando algo no Youtube, descobri um novo tipo de Reality Show: casais aventureiros que percorrem o mundo em kombis que eles mesmo montam para que se transformem em Kombi home. Eles compartilham o passo a passo da transformação e até parece fácil ter uma. Abri a primeira de muitas cervejas e comecei a maratonar os canais.
Fiquei empolgadíssima e, como uma boa quarentener, comecei a pesquisar o preço de kombis antigas, drones, serra de cortar madeira, banheiro químico. Uma hora essa quarentena acaba e posso me tornar também uma aventureira a percorrer o Brasil. Fui marcando tudo como favorito (por sorte, só).
Eu estava muito vermelha agora. Medi novamente a temperatura: 36,9. Nossa, por pouco! Fiquei tensa.
Às 21h, LatinidaDJ iniciou uma live de aniversário para nossa amiga Letícia, no Instagram. Coube a mim fazer o gerenciamento da transmissão e saudar as pessoas. Foi divertidíssimo. Todos bailando nas salas de suas casas e eu, na minha.
Umas cervejas a mais e, em meio à empolgação, resolvi medir a temperatura novamente: 37. Busquei “37 febre coronavírus”. O doutor Google me disse que tudo bem, febre era acima de 37,3. Mas parecia que minha temperatura estava aumentando. Passou de tudo pela minha cabeça. Principalmente que eu ia morrer, já que já faltam vagas nos hospitais. O que fazer, como deixar meu testamento? Não deu tempo para resolver essas questões.
Migramos da live para uma festinha no Zoom e agreguei um casal de amigos queridíssimos, Victor e Jéssica. Mais música — um debate sobre robô aspirador em um grupo de amigos no WhatsApp. O pessoal foi saindo e a festa acabou ficando mais intimista. Conversamos sobre como cuidar das plantas, da rotina, do valor do frete para entrega de cerveja, destinos de viagens e o Victor me alertou: “não vai se internar, Vanessa!”, no momento em que expressei a preocupação que me angustiava. Foi um conselho sábio, eu mesma teria que acabar com o pretenso suposto começo de febre.
Fiz um plano mental e coloquei em execução. Primeiro, usei o rapé indígena Shawãdawa para limpeza interior — em meio a um ritural que inventamos para saudar a Pachamama enquanto ouvimos este som como mantra:
Feita a limpeza espiritual, fui tomar um banho terapêutico, como ensinado pelo professor doutor Hermógenes no livro “Yoga para Nervosos”, com choque térmico para ajudar a baixar a temperatura e velas para dar uma dramaticidade ao momento. Revigorante.
Para garantir o sucesso da empreitada, a saideira foi de chá de poejo da minha horta e com gengibre (do mercado). Eu continuava vermelha. Voltei a checar a temperatura: 36,7. UFA!
Chega de YouTube. Colocamos “Ortodoxa” na Netflix e, em meio a conversas sobre tradições e questões culturais, resolvemos dormir, já era 3h e, no dia seguinte, eu teria que acordar cedo para entregar este texto.
Sábado. Acordei sem febre e nem um pouco vermelha.
* É editora do site parceiro Diálogos do Sul. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM) da USP