Na redação da Folha de S.Paulo, em que trabalhei de 1994 a 2000, dificilmente alguém terá más lembranças de João Batista Natali, morto neste sábado (21/12), aos 76, vítima de um câncer no cérebro.
Antigo na casa, Natali era “repórter especial”, categoria na Folha que reunia jornalistas encarregados de tarefas especiais, não necessariamente ligadas ao dia a dia do jornal, ex-editores que haviam perdido poder e nomes importantes na história do jornal, mas que estavam a caminho a demissão.
Natali não se enquadrava em nenhuma delas. Era um repórter especial realmente especial. Ia trabalhar animado todos os dias, conversava com os jovens, aconselhava os mais velhos. Cobria o dia a dia e do dia a dia trazia matérias especiais, que publicava nas editorias de Política, Internacional, Cotidiano e Ilustrada.
Admirador de música erudita que tentava amealhar novos adeptos todos os dias, convencendo outros jornalistas a se arriscarem no tema.
Vou contar alguns episódios com ele, que acabam dizendo mais do sujeito do que tentativas forçadas de generalização.
Certa vez, ele estava como ombudsman interino do jornal quando um estagiário da minha equipe (aliás, um dos melhores com quem trabalhei na Folha) escreveu um texto com problemas pesados, pois fazia uma discussão sem profundidade da questão do incesto.
Natali não citou o caso na crítica interna, mas o chamou para conversar e explicou-lhe porque aquele pequeno texto tinha tantos problemas, do ponto de vista jornalístico, antropológico e filosófico.
Também como ombudsman, elogiou a cobertura especial que coordenei, como pauteiro da Ilustrada, de um megashow do U2 no Brasil. Natali não era muito informado sobre rock e pop, e chamava a banda de “u-dois”, mas o elogio era correto e sincero: jornalisticamente, aquela cobertura foi um arraso.
Em 1999, candidatei-me a correspondente da Folha na França e tinha de passar por uma prova de línguas – no caso, em francês. Eu sabia o básico, mas na hora de conversar com Natali, o examinador, que fizera pós-graduação em Paris, travei absolutamente. Não saiu uma palavra da minha boca. Achei que tinha rodado, mesmo sendo o candidato único.
Para minha surpresa, não apenas foi indicado para o posto como, para os colegas que fizeram prova de inglês, foi exigido um curso intensivo antes de embarcarem para Nova York e Londres. Pedi, discretamente, o mesmo para melhorar o meu francês, o que foi concedido.

João Batista Natali faleceu neste sábado aos 76 anos
Quando voltei, tive dificuldades em me readaptar à redação. Fui conversar com ele, que insistia para que eu aguentasse o tranco das rejeições e bloqueios que estava vivendo. Natali virou para mim e falou algo que devo ter demorado mais uma década para incorporar: “você precisa se assumir como intelectual”.
Disse também que, caso eu achasse que estava mesmo num beco sem saída da carreira, que eu devia me preparar para sair da Folha, e não jogar tudo para o alto. Segui seu conselho, até porque não vinha como conselho de alguém experiente, mas como conversa de um colega no melhor sentido do termo. Em dois meses, mudei-me para o Estado de S.Paulo.
Natali seguiu na Folha por muito tempo, e nosso contato tornou-se rarefeito. Soube, por novos estagiários, agora no Opera Mundi, que ele tivera tensões com alunos como professor da Faculdade Casper Líbero.
A essa altura, já estávamos com as relações abaladas por postagens nas redes sociais. Natali foi daquelas pessoas profundamente identificadas politicamente com os tucanos que embarcou nos ataques cruéis e injustos contra os governos do PT e, sobretudo, Dilma Rousseff.
Nunca entendi direito como ele embarcou nesta canoa furada, mas sempre me lembrava da solidariedade de classe discreta que ele mantinha para com os colegas na redação da Folha. Mas Natali não foi até o fim: não caiu no bolsonarismo, mesmo que disfarçado, que animou boa parte da sua geração.
Houve ainda o episódio da covid: ele quase foi uma das vítimas da doença difundida com o apoio do governo Bolsonaro. Em que pese as divergências políticas anteriores, na época recente, festejei publicamente sua recuperação.
Agora, lamento profundamente sua morte e sinto a perda de um grande colega.