Após 25 anos de negociações, a União Europeia e o Mercosul anunciaram o fim das conversas para o acordo comercial entre os blocos econômicos da Europa e América do Sul.
O anúncio foi feito pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e os presidentes dos países do Mercosul, reunidos em Montevidéu, no Uruguai, na última sexta-feira (06/12).
O fim das negociações teoricamente supera impasses ambientais e protestos contra a extrema direita no Brasil sob a Presidência de Bolsonaro, contudo beneficia setores questionáveis, como o agronegócio brasileiro a indústria europeia, segundo a análise do professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC) e integrante do Observatório da Política Externa e de Inserção Internacional do Brasil, Giorgio Roman Schutte.
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Opera Mundi: Como começaram as negociações entre o Mercosul e a União Europeia há 25 anos? Qual era o cenário daquela época, comparando com o atual?
Giorgio Romano Schutte: As negociações começaram no governo de Itamar Franco (1992-1995) quando tinha a ideia da Área de Livre-Comércio das Américas (ALCA). O governo brasileiro avaliou na época que a ALCA iria acontecer de qualquer jeito, naquela política brasileira de apostar em relações com várias potências.
Então, a ideia era, além da ALCA, abrir um acordo também com a União Europeia. Na época tinha inclusive uma certa ingenuidade de achar que os europeus eram ‘mais bonzinhos’ ou ‘menos duros’, e prestavam mais atenção aos interesses sociais e do Brasil. Então, a própria ALCA não avança, e [as negociações] com a UE também não, porque se perderam em outras questões, e o interesse diminuiu.
Depois, no governo Lula, começa uma recuperação. Mas em 2004, quando o acordo está na mesa, o governo avaliou que a proposta era muito mais interessante para os europeus que para os brasileiros. Havia pautas como compras governamentais e uma série de políticas que o Brasil queria implementar e não seria possível, ou muito seria complicado. Então, o Brasil nega, e de fato depois implementou políticas industriais, que resultaram em avanços entre 2004 e 2008 .
Após isso teve a Dilma, e quando ela cai [e seu vice-presidente Michel Temer assume] uma das principais pautas na área internacional era esse acordo. Depois, o Mauricio Macri na Presidência da Argentina e pró-tempore do Mercosul, também defendeu esse acordo, porque queria usá-lo em sua campanha de reeleição.
A União Europeia achava muito interessante aproveitar a presença de liberais no poder do Brasil e da Argentina para fechar esse acordo, porque era extremamente favorável a ela, generosa com os interesses dos europeus.
Mas acontece que a opinião pública europeia tem uma reação forte contra o Brasil sob Bolsonaro, entendendo-o como um destruidor do meio ambiente. Então, a Europa queria esse acordo, mas não com o Bolsonaro.
Nesses anos, os interesses contrários dos agricultores na França começaram a se organizar melhor. Com a vitória do Lula, a União Europeia tinha certeza da assinatura porque reconheceram e apoiaram a vitória dele e tiveram até representantes que o visitaram na prisão.
Lula pediu para esperar e renegociar com os europeus, mas eles não queriam por causa da demora. O Brasil pressionou e eles aceitaram renegociar alguns pontos, mas ficou claro que não teria acordo, ficaram nervosos e observaram o cenário da guerra na Ucrânia, o avanço da China, e viram que era melhor fazer algumas concessões além do agronegócio, na economia, exportação, tecnologias, e indústria.
Quais são as principais modificações e resultados alcançados com a versão final do acordo em comparação com o que foi discutido nesses 25 anos? Quais são os principais pontos do acordo alcançado?
O Itamaraty faz questão de dialogar com os críticos que estavam desconfiados de que o acordo iria acentuar a desindustrialização e só beneficiar o agronegócio. Mas um dos principais pontos que eu destacaria seria a importação de carros elétricos. Outra questão é poder regular a exportação de minerais críticos, algo totalmente em sintonia com que está acontecendo no mundo.
Quais grupos mais se beneficiam por este acordo?
Não há dúvida de que quem se beneficia desse acordo no Brasil é o agronegócio, e quem se beneficia na Europa é a indústria.
A oposição de países como a França ainda pode interferir no documento?
A tramitação é bastante complexa porque na União Europeia há três tipos de políticas comunitárias que são de competência exclusiva da comissão de políticas dos estados nacionais. O comércio é 100% competência da União Europeia, mas esse acordo, da forma que como foi negociado originalmente, envolvia também competências de estado nacionais. Então, você precisava do apoio do acordo do escopo da aprovação de todos os parlamentos dos 27 países.
O truque da União Europeia, ou da Comissão Europeia no caso, foi dizer que há questões nesse acordo que são apenas de competência do bloco. Ou seja, o Parlamento francês não tem nada a dizer, e essa é a primeira batalha. Agora, para o apoio da maioria qualificada, depende de quem a França conseguirá mobilizar para a oposição, levando em consideração que Macron está fraco e o governo do seu primeiro-ministro, Michel Barnier, caiu.
Após essa etapa, o acordo vai passar para uma revisão técnica, para checar se tem conflito com a legislação existente, e isso é muito complexo. Depois, vai ter que traduzir para as línguas oficiais da União Europeia, e isso leva um bom tempo, neste período, as coisas podem mudar, como já aconteceu. Demora para entrar em vigor, duvido que isso aconteça ainda no governo Lula.
Quais serão os impactos desse acordo para a América do Sul, e para o Brasil especialmente?
A questão geopolítica pesou. O Brasil ganha uma liderança. Do ponto de vista político, o Brasil e seu plano de apostar no Mercosul sai fortalecido, e isso estimula também a posição da negociação do Brasil com a China e com os Estados Unidos.
Como a União Europeia se beneficia neste acordo?
A União Europeia está bastante perdida com a guerra na Ucrânia, com Trump nos Estados Unidos, com a China, além da questão complicadíssima da migração. Então também é um golaço para a Comissão Europeia, além de importante para a indústria da Alemanha ter uma perspectiva.
O presidente Lula anunciou o Mercosul Verde, para conciliar o desenvolvimento econômico com responsabilidade ambiental, segundo suas palavras. Essa é uma ação que responde às exigências ambientais europeias que travaram o acordo por tanto tempo?
A Comissão Europeia cria esse acordo em 2019, e ainda é o mesmo. Eles apenas não queriam assinar com Bolsonaro, com o argumento da questão ambiental. Eles enrolaram até o Lula ganhar, pois ele concorda com a pauta ambiental, mas defende que não devemos receber lições da Europa sobre como ser ambientalmente sustentáveis, então sugere o Mercosul Verde.