Caxemira, 'Guerra da água' e ataques: entenda conflito entre Índia e Paquistão
Florência Costa, correspondente por sete anos na Índia, explica disputa de sete décadas e que teve uma nova escalada de tensão
A disputa entre a Índia e o Paquistão pelo território da Caxemira, que dura sete décadas, teve um novo capítulo nesta semana. No escopo da “Operação Sindoor”, a Índia atingiu nove alvos no território do Paquistão, em resposta ao ataque perto de Pahalgam, na região indiana de Jammu e Caxemira, ocorrido em 22 de abril.
“Isso não acontecia desde 1971”, destacou a jornalista Florência Costa, correspondente no país por sete anos. “Desta vez, Índia mandou a mensagem de que não dá mais”.
Os ataques contra os hindus na Caxemira foram reivindicados pela Frente de Resistência (TRF), uma organização pouco conhecida, surgida em 2019 e declarada organização terrorista pelo governo indiano, em 2023.
Para a Índia, o grupo é apenas uma fachada do grupo armado Lashkar-e-Taiba (Let, Exército dos Justos, em português). Islamabade, por sua vez, nega a participação no ataque.
Em entrevista ao Opera Mundi, a jornalista e autora de Os Indianos (Contexto, 2012) traz detalhes sobre o conflito e apresenta um contexto histórico das disputas na região. Confira:
Opera Mundi: em meio décadas de disputa entre o Paquistão e a Índia pela Caxemira, qual o diferencial dos recentes ataques na região?
Florência Costa: No dia 22 de abril, houve um ataque na Caxemira, em Pahalgam, um resort de turismo muito visitado. Foi inesperado. Pahalgam é um ponto importante para a religião hindu. É onde se inicia a peregrinação em direção à Caverna Amarnath, um Templo da divindade Shiva, a 4 mil metros de altura. Essas montanhas são consideradas sagradas. Em 2024, um grupo de peregrinos já havia sofrido um ataque terrorista. A religião está muito presente.
Desta vez, homens armados entraram e atiraram contra os hindus no local. Como havia muitos turistas, eles perguntaram quem era muçulmano e quem era hindu, pedindo para as pessoas comprovarem que eram mulçumanas rezando. Eles foram mortos diante de suas esposas e filhos.
Foi o pior ataque contra civis desde 2008, quando 10 terroristas entraram de barco em Mumbai e mataram 166 pessoas. A diferença fundamental é que, desta vez, a Índia reagiu. A resposta da Índia demonstra que o país cansou e que não vai revidar somente nos campos de terroristas da Caxemira ocupada pelo Paquistão, mas no próprio território do Paquistão.
É a primeira vez, desde a guerra de 1971, que os ataques acontecem em outros territórios do Paquistão. Dessa vez, a Índia passou a mensagem de que não dá mais, porém, não no sentido de que vai haver uma guerra nuclear, como alegam os paquistaneses.
Importante observar que a resposta indiana não aconteceu sem antes o governo Modi consultar outros países. A Índia é um estado responsável. Modi conversou com líderes no mundo inteiro, não foi algo da cabeça dele. Após o ataque, o Exército indiano postou no X: ‘justiça foi feita. Jai Hindi’, quer é significa ‘Vitória para a Índia’.
Como você avalia a reação da Índia?
A Índia tinha que reagir, não havia a menor possibilidade de não reação, mesmo que o governo não quisesse. A população está enfurecida e protestando. Civis foram mortos. O clima na mídia indiana e da população está muito emocional.
Logo após o ataque em 22 de abril, o presidente Modi afirmou ‘nós vamos perseguir os terroristas até os confins da terra’. O próprio nome da Operação é muito simbólico. Sindoor é uma marca de pó vermelho que as indianas usam na raiz do cabelo e que significa que você é uma mulher casada. Operação Sindoor faz referência às mulheres que estavam lá e que viram seus maridos serem mortos.
A reação da opinião pública foi muito forte. Ao mesmo tempo, há toda uma preparação da população, com exercícios militares, contra possíveis ataques.
Hoje, a Caxemira indiana tem uma população de cerca de 14 mil a 15 mil pessoas e se considerarmos a região ocupada pelo Paquistão, com 6 mil, temos 20 mil pessoas em um território aproximadamente da dimensão do Piauí. Há rios que cruzam ali e que vão para o Paquistão, daí o movimento da Índia de represar essas águas.

Arquivo pessoal
O Paquistão nega ter cometido os ataques e qualquer envolvimento com a Frente de Resistência (TRF).
Eles sempre negaram os ataques. Seis dias antes, o chefe das Forças Armadas do Paquistão, Syed Asim Munir Ahmed Shah, que foi chefe do serviço secreto indiano e é um general linha dura, descreveu a Caxemira como a ‘veia jugular do Paquistão’, ou seja, uma região vital para a identidade do país.
O Paquistão é um Estado cliente. Inclusive analistas paquistaneses importantes usam o termo ‘um Estado falido’ para se referir à situação do país. Sua economia é inacreditavelmente inferior à da Índia, que já se tornou o quarto maior PIB do mundo hoje. Ela ultrapassou o Japão e a previsão é de que se torne o terceiro PIB mundial em dois anos. Hoje, o primeiro é os Estados Unidos, seguido da China e da Alemanha, aí vem a Índia.
O Paquistão, por sua vez, é um país muito pobre, com grave crise econômica. É uma ditadura de 40 anos. Todos os primeiros-ministros do Paquistão acabam saindo, de uma forma ou de outra, antes do mandato. Alguns são assassinados, outros presos.
O caso mais conhecido é do último primeiro-ministro civil, Imran Khan, que está preso há dois anos sob uma acusação de lawafare, muito semelhante ao que vimos no Brasil. Ele estava em Moscou quando eclodiu a Guerra na Ucrânia. Foi capitão do críquete e é uma espécie de Pelé do esporte, o mais popular tanto na Índia, quanto no Paquistão, devido à herança britânica.
O grande inimigo dele é o atual chefe das Forças Armadas do Paquistão, que mandou prendê-lo. Quando isso aconteceu, a população foi às ruas para protestar. O Exército paquistanês é muito questionado hoje. Isso demonstra como os governos militares podem ser desastrosos.
Neste sentido, o Paquistão é diferente da Índia que, após a independência em 1947, criou instituições democráticas. É um país que faz favores militares para outras potências, servindo a outros interesses. Ele tem fronteiras com a Índia, o Irã e o Afeganistão e esses três países sofrem com terrorismo.
Existia um temor em relação à escalada de um conflito entre duas potências nucleares. Como você avalia esse risco?
O Paquistão sempre usa o blefe da arma nuclear. ‘Vai ter guerra nuclear se a Índia reagir’, mas a Índia vai aceitar todos os ataques e não vai reagir? Não existe isso. Se houver escalada nuclear é o fim do mundo. Tanto que temos conflitos com potências nucleares, veja a Guerra na Ucrânia, e isso não acontece.
O primeiro teste nuclear da Índia foi em 1974, o do Paquistão em 1998. Por isso eles são potências nucleares. O Estocolmo Peace Report Institute (SIPRI) menciona 172 ogivas indianas e um número semelhante de ogivas paquistanesas. De certa forma, a nuclearização faz com que as partes se retenham um pouco.
A população paquistanesa também está nas ruas por causa do ataque desta semana. Há uma grande incógnita sobre como o conflito vai seguir. Isso vai se tornar uma nova Cargil ou vai virar mais um ataque? Ninguém sabe. A Caxemira para os paquistaneses é uma questão de identidade nacional, de sobrevivência. E para a Índia também. Nenhum lado vai abdicar disso.
Qual a posição da China, da Rússia, dos Estados Unidos sobre o conflito?
A China não entra em guerras externas. Ela é a maior potência comercial da Índia, não irá misturar as coisas. Ela tem uma histórica postura de neutralidade. Pequim entrou em guerra com a Índia em 1962. Os chineses venceram e ficaram com a região de Aksai Chin. Ela tem um importante corredor econômico com o Paquistão, onde há um porto. Então, ela se mantém neutra sempre que acontecem esses ataques. E, agora, tem a questão do BRICS, que é muito importante para a Índia.
Em geral, o Ocidente e, em particular os Estados Unidos, sempre usou o Paquistão para os seus objetivos durante a Guerra Fria. A China não faz esse tipo de coisa. A política dela é diferente e isso, em boa parte, a faz ser o país que é.
A Índia também mantém uma relação estratégica com a Rússia, que é um parceiro fiel desde a Guerra Fria. É uma relação muito importante, histórica e estável porque os russos sempre ajudaram a Índia. Durante a guerra de 1971, os Estados Unidos apoiaram o Paquistão, que fez vários favores pagos contra a então União Soviética.
Hoje, a Índia estabelece uma relação estratégica com os Estados Unidos, que são importantes economicamente. Ela está em todas as frentes.

Governo da Índia
Quais os principais grupos armados que ameaçam a paz na região?
Existem hoje cerca de 500 mil a 700 mil tropas da Índia e 200 mil tropas do Paquistão na região da fronteira chamada de ‘Linha de Controle’. É um dos lugares mais quentes do mundo militarmente.
São três principais grupos terroristas. Um está sediado na Caxemira indiana e os dois outros no estado do Punjab do Paquistão, que tem territórios nos dois países. O Punjab é o estado econômico e politicamente mais importante do Paquistão.
Na Caxemira, o principal grupo é o Hizbul Mujahideen (HM), que significa Força dos Mujahideen. Os dois outros grupos em Punjab são o Jaish-e-Mohammed (JeM), que significa soldado de Mohammed, e o Lashkar-e-Taiba (LeT), Exército dos Puros, que fez um dos maiores ataques lá. Eles são citados no ataque de 22 de abril.
Toda vez que tem um ataque, a Índia reage atacando esses pontos de treinamento. Vários ataques desta semana na Caxemira foram nos pontos do HM e campos de treinamento do Let e do JeM. Mas houve outras localidades desta vez. Desde 1971, a Índia não atacava profundamente dentro do Paquistão. Isso é um diferencial.
Qual o histórico dessa disputa entre Índia e Paquistão pela Caxemira?
Tudo começa em 1947, com a independência da Índia, realizada de modo turbulento pelos britânicos. Naquele momento, houve um deslocamento de 10 milhões de pessoas, com milhões de mortes. Os hindus do Paquistão foram para a Índia e os mulçumanos da Índia foram para o Paquistão. Esse processo foi uma tragédia e é ainda um trauma. Foi um pacto doloroso que resultou em três países, o Paquistão, a Índia e o Bangladesh.
Já em 1948, aconteceu o primeiro conflito com militantes paquistaneses na Caxemira, que não aceitavam que a região ficasse com a Índia. Durante o domínio britânico, vários estados indianos eram governados por nobres, os chamados marajás. A Inglaterra não tinha uma influência tão forte nesses territórios como em outros.
A Caxemira era um desses estados, ela era governada por Hari Singh. Quando o Paquistão invadiu o território, ele fez um acordo com o governo indiano para se proteger dos ataques e a região ficou com a Índia. É esse acordo que o Paquistão não aceita. Em 1948, a ONU entrou nas negociações e foi decidido que dois terços do território da Caxemira ficariam com a Índia e um terço, com o Paquistão.
E continuaram os conflitos?
Eles nunca pararam. Em 1965, teve uma infiltração sangrenta de militantes do Paquistão durante três semanas, seguida por um acordo de paz. Em 1971, aconteceu a guerra mais importante, que resultou na criação de Bangladesh, na época, Paquistão oriental.
No final dos anos 80, começou o período da insurgência. Com o fim da guerra da União Soviética no Afeganistão (1979 a 1989), os mujahidin, apoiados pelo Paquistão, foram para a Caxemira com armamento dos Estados Unidos e deram início a vários atentados, sempre reivindicando a ida da Caxemira para o Paquistão.
Em 1999, houve o conflito de Cargil, que é muito importante, porque foi o primeiro conflito depois da nuclearização dos dois países. Em 2001, aconteceu o ataque terrorista em Nova Deli, quando 20 homens armados entraram no Parlamento italiano.
Outro ataque terrorista aconteceu em 2006 em uma linha de trem em Mumbai, capital financeira da Índia, levando à morte de mais de 200 pessoas. Dois anos depois, 10 homens saíram de barco em direção a Mumbai e atacam vários pontos, entre eles o icônico hotel Taj Mahal.
Em 2019, aconteceu um outro ataque na Caxemira. Foram colocadas bombas em comboios militares e 40 soldados indianos foram mortos. Isso aconteceu pouco antes da eleição do Nerenda Modi. Aí tivemos o ataque aos peregrinos e este, agora, em 2025.
A reação da Índia se dá, portanto, neste contexto. O Paquistão nunca assume os ataques, afirmando que não são ataques do Estado, mas de grupos armados. E a Índia tenta apresentar as evidências, mas as potências mundiais sempre colocam panos quentes. Agora, no entanto, foi a gota d´água para a Índia.
