O Uruguai realiza neste domingo (27/10) o primeiro turno das suas eleições presidenciais, com a expectativa de que a Frente Ampla, maior coalizão de esquerda do país, termine como a mais votada, e com a possibilidade de eleger seu candidato, Yamandú Orsi, já no primeiro turno.
As últimas quatro pesquisas, todas elas publicadas na quinta-feira (24/10), mostram Orsi com uma intenção de voto variando entre 45% e 46%.
O segundo colocado é o candidato governista Álvaro Delgado, do Partido Nacional, representante de uma direita mais liberal, cujos percentuais que variam entre 24% e 25%. Já Andrés Ojeda, do conservador Partido Colorado, tem entre 18% e 15%. O quarto colocado é Guido Manini Ríos, da sigla de extrema direita Cabildo Aberto, com entre 2% e 4%.
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Opera Mundi conversou sobre o cenário deste primeiro turno no Uruguai com a analista política Nastasia Barceló, professora da Universidade da República (maior universidade pública do Uruguai), formada em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e doutora pelo Programa de Pós-Graduação Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM) da Universidade de São Paulo (USP).
Segundo a acadêmica, a Frente Ampla deve ser o partido mais votado da jornada, mas será muito difícil superar os 50% dos votos, necessários para eleger Orsi já neste domingo.
“Se o Uruguai tivesse o sistema eleitoral da Argentina, no qual é preciso 40% dos votos e superar o segundo colocado por mais de 10%, seria inclusive muito provável, mas na regra uruguaia, e com o panorama que as pesquisas indicam agora, acredito que deve haver um segundo turno, com o candidato da Frente Ampla como o mais votado e as candidaturas de direita disputando a segunda vaga nessa disputa”, comenta a professora.
Leia a entrevista com Nastasia Barceló na íntegra:
Opera Mundi: Qual é o tamanho do favoritismo da Frente Ampla nestas eleições? É possível uma vitória já no primeiro turno?
Nastacia Barceló: É um favoritismo grande. Se compararmos as pesquisas mais recentes com o cenário prévio ao primeiro turno de 2019, que foi a última eleição presidencial, o candidato da Frente Ampla (Orsi) aparece com até oito pontos que o daquele então (Daniel Martínez).
Ainda assim, uma vitória já no primeiro turno é muito difícil, já que é preciso superar os 50% dos votos válidos. Se o Uruguai tivesse o sistema eleitoral da Argentina, no qual é preciso 40% dos votos e superar o segundo colocado por mais de 10%, seria inclusive muito provável, mas na regra uruguaia, e com o panorama que as pesquisas indicam agora, acredito que deve haver um segundo turno, com o candidato da Frente Ampla como o mais votado e as candidaturas de direita disputando a segunda vaga nessa disputa.
Quem é Yamandú Orsi? Caso seja presidente, teríamos uma Frente Ampla mais progressista ou mais moderada, em comparação aos governos de Tabaré Vázquez e Pepe Mujica?
Ele é um professor do ensino médio, essa é a sua formação, e além disso ele milita há mais de 30 anos no Movimento de Participação Popular (MPP), que pertence à Frente Ampla e que é o setor liderado pelo ex-presidente Pepe Mujica (2010-2015).
Tanto ele quanto o partido representam uma esquerda bem no estilo uruguaio, talvez mais moderada, que promoverá mudanças de inclinação mais progressista em algumas áreas, mas sem tantas transformações na estrutura econômica, como as que aconteceram na Bolívia ou na Venezuela, em outros momentos históricos. Em comparação com Tabaré e Mujica, um governo dele creio que vai seguir mais ou menos a mesma linha.
Orsi foi governador de Canelones, que é um departamento (província) que faz parte do que podemos chamar de Grande Montevidéu, e que é o segundo do país com maior número de eleitores. Terminou sua gestão com uma aprovação muito alta e o apoio à sua candidatura vem desse governo que foi muito bem avaliado.
Esta pode ser a última eleição presidencial no Uruguai com Pepe Mujica, devido ao câncer que ele anunciou recentemente. Nesse sentido, o papel dele nesta campanha pode ser decisivo? Sua figura ainda é forte entre a população uruguaia?
O próprio Pepe tem dito isso, que esta deve ser sua última eleição. Ele tem participado de alguns atos de campanha da Frente Ampla, inclusive uma que aconteceu no último fim de semana, que foi um ato multitudinário promovido pelo MPP.
Os relatórios médicos informam que o câncer foi totalmente retirado, mas o tratamento de radioterapia foi bastante desgastante. Temos que lembrar que Mujica já tem quase 90 anos, passou por situações muito duras em sua vida, incluindo tortura e prisão por 12 anos durante a ditadura, além de possuir doenças autoimunes, são condições de saúde bastante delicadas.
Ainda assim, ele fez questão de ir ao ato do MPP, a imprensa de direita tentou usar isso para dizer que era um abuso da sua saúde por interesses políticos, mas a verdade a decisão é de estar nos atos é do próprio Mujica, e ele tem sido bem enfático nos seus discursos, dizendo que é também uma forma de ele se despedir, o que cria um clima bastante emotivo, todo mundo chora ao ouvir ele dizendo isso.
Isso tem um impacto no Uruguai, reforça a campanha da Frente Ampla e acho que também comove todos aqueles que são do campo progressista, na América Latina e no mundo.
Caso a Frente Ampla não vença no primeiro turno, uma possível união das candidaturas de direita no segundo turno, pode colocar o favoritismo da esquerda em risco?
Creio que a transferência de votos, mesmo entre dois partidos de direita, não é automática, seja do Partido Colorado para o Partido Nacional, ou o contrário. Então, vai depender de quantos votos terá Orsi no primeiro turno.
Se ele alcançar mais de 45%, é bastante possível buscar o percentual que falta entre os eleitores que votam na direita no primeiro turno. Em 2019, Martínez teve 39% dos votos no primeiro turno, e no segundo conseguiu 49%. Perdeu, mas ficou com 10% dos votos que foram para a direita no primeiro turno.
Também há muitos eleitores da direita que no segundo turno, em vez de votar no outro candidato do setor, preferem anular ou votar em branco.
Que avaliação você faz do mandato de Luis Lacalle Pou, que termina seu governo em março de 2025?
Para analisar melhor o governo do Lacalle Pou é preciso dividi-lo em dois momentos. Seu primeiro ano foi em 2020, quando ele demonstrou um controle bastante satisfatório da pandemia de covid-19. Apesar das dificuldades, o Uruguai acabou superando a crise sanitária com relativa estabilidade, o país fez o isolamento no momento correto, trouxe vacinas, não aderiu ao negacionismo, e além desse acerto também é bem avaliado pelos investimentos em infraestrutura, especialmente em rodovias e no Porto de Montevidéu.
Porém, também houve promessas de campanha que não foram cumpridas pela coalizão de direita que se formou no segundo turno de 2019, que reunião o Partido Nacional, o Partido Colorado e o Cabildo Aberto, que é o partido de extrema direita. Entre elas está a de não cortas os gastos públicos, especialmente o gasto social, o que resultou no aumento nos níveis de pobreza, com destaque para a pobreza infantil, cujo crescimento seja talvez a questão mais crítica no Uruguai nos dias de hoje.
Também houve promessas não cumpridas com relação à Educação. O governo promoveu uma reforma educativa sem fazer consultas aos professores e às comunidades escolares. O resultado foram cortes no orçamento para a Educação, no orçamento da Universidade da República.
Do ponto de vista das relações internacionais, Lacalle Pou não conseguiu abrir novos mercados, e ao mesmo tempo tenta se afastar do Mercosul, o que foi muito negativa para a questão da integração regional, ao mesmo tempo em que tentou, e não conseguiu, se aproximar de países de fora da região.
A posição nas pesquisas do candidato do Partido Nacional, Álvaro Delgado, reflete o que foi o mandato de Lacalle Pou?
Não completamente. A popularidade de Lacalle Pou, sua imagem pessoa, positiva, e bem maior que a popularidade do seu governo ou que as intenções de voto que as pesquisas indicam para o candidato governista. Nesse sentido, o apoio à candidatura de Delgado parece refletir mais a opinião das pessoas ao governo do que a popularidade do presidente, mesmo ele tendo sido talvez o ministro mais alinhado com o mandatário.
As pesquisas indicam também que houve uma pequena queda na avaliação do Partido Nacional, no qual estão Lacalle Pou e Delgado, algo que também está relacionado à queda nas condições de vida e na desvalorização dos salários, da perda de direitos trabalhistas e da reforma da previdência promovida por este governo e que foi bastante impopular.
Que papel podem desempenhar o Partido Colorado e seu candidato, Andrés Ojeda, que aparecem em terceiro lugar nas pesquisas?
Ojeda é visto pela sociedade como um candidato jovem, com uma plataforma na qual ressaltam algumas pautas direcionada a esse público, com foco na questão da saúde mental e no bem-estar animal. Seu programa não apresenta maior profundidade no que diz respeito a políticas públicas.
É uma figura muito conhecida nos meios de comunicação e sua equipe de marketing sabe trabalhar bem a promoção da sua figura pessoal. Até por isso, tende a ser um candidato que tende a conquistar mais votos em um setor mais despolitizado da sociedade.
Uma possível vitória da Frente Ampla no Uruguai pode fortalecer a esquerda na América Latina? E o contrário, uma derrota da coalizão progressista e continuidade da direita no poder, podem aumentar a influência do setor integrado por Javier Milei e Jair Bolsonaro?
Acho que sim. O Uruguai pode ser um país pequeno geográfica e demograficamente, mas tem um simbolismo do ponto de vista das políticas públicas, devido aos avanços que foram promovidos no país, tanto no Século XX como neste início de Século XXI.
Temos um dos estados laicos mais antigos do mundo, um movimento social muito forte, partidos políticos muito fortes, um exemplo de construção de unidade da esquerda – já são mais de 50 anos de uma esquerda unida e forte, não apenas em termos eleitorais, mas também em capacidade de governar.
Uma possível vitória da Frente Ampla que inclua a conquista de maiorias parlamentares suficientes seria uma boa notícia para a América Latina. Seria muito importante para o continente ter o Uruguai do lado progressista.