Atualmente, o Partido Comunista Português (PCP) conta com a presença de um único deputado no Parlamento Europeu: o jovem advogado João Oliveira.
Diante dos desafios impostos por essa realidade, Opera Mundi conversou com o parlamentar às vésperas da visita do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, aos Estados Unidos, e do chefe de Estado francês, Emmanuel Macron, a Portugal.
O deputado falou sobre os efeitos da administração Donald Trump e como o novo governo estadunidense tem impactado as escolhas políticas dos países do bloco europeu.
Além das questões sobre a ascensão da extrema direita e do acordo econômico com o Mercosul, ele faz uma crítica contundente à União Europeia, lembrando o fracasso do apoio à guerra na Ucrânia, a corrida armamentista no continente e a possível fratura da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) com a ausência dos europeus nas negociações pela paz em território ucraniano.
Esses temas, considerados urgentes não apenas para seu país mas para o futuro da humanidade, estão entre as prioridades de seu trabalho em Bruxelas. João Oliveira também apontou as graves consequências que essa nova configuração geopolítica tem provocado no conflito de Israel contra Gaza, Cisjordânia, Líbano, Síria e outros países do Oriente Médio.
A respeito do não reconhecimento do Estado palestino em Portugal, o deputado pelo PCP criticou o atual governo do primeiro-ministro Luís Montenegro, membro da aliança conservadora entre o Partido Social Democrata (PSD) e o Centro Democrático Social (CDS).
Oliveira também comentou sobre a postura do Partido Socialista (PS) sobre essa situação. “É um discurso falso, cínico, hipócrita, de quem podia ter tomado decisões que contribuíssem para esse objetivo, mas não o quis fazer e hoje finge-se de arrependido”, argumentou.
Leia a entrevista completa na íntegra:
Opera Mundi: Como tem sido o desafio em atuar como único deputado do PCP no Parlamento Europeu?
João Oliveira: É um desafio grande estar sozinho diante de um contexto complexo. A situação no espaço da União Europeia é complicada. Do ponto de vista econômico e social é um peso imenso. A questão do militarismo e da guerra, hoje em dia, são prioridades quase que absolutas, deixando para trás todos os problemas sociais e econômicos que afligem os povos. E isso coloca naturalmente uma grande exigência em termos de intervenção, não apenas de denúncia dessas opções políticas, mas também de contraponto com aquilo que tem que ser a prioridade, que são as respostas para a melhoria da condição de vida, do desemprego, da habitação, da exclusão social, das desigualdades sociais e territoriais. Isso impõe muitas exigências à intervenção política no Parlamento, principalmente por eu ser o único deputado da minha legenda.
Tenho estudado tanto quanto posso as diversas matérias sobre as quais é preciso haver intervenção, mesmo sabendo de algumas limitações que são intransponíveis. Nas circunstâncias de ser o único deputado da minha delegação, o trabalho que temos feito a partir do coletivo e do apoio de outros camaradas que temos no Parlamento Europeu para transformar as nossas intervenções, julgo que tem sido, ainda assim, algo positivo.
Temos conseguido dar destaque àquilo que são as prioridades para o nosso país, dando uma expressão concreta dos interesses nacionais no Parlamento Europeu a partir dos embates que temos feito e das propostas que temos apresentado.
Supondo a guerra como “a continuação da política por outros meios”, você acredita que a partir dessa mudança de governo nos Estados Unidos chegaremos ao fim da guerra na Ucrânia?
Para já, acredito que a situação ainda é muito incerta. Há uma possibilidade da guerra na Ucrânia ter um fim, mas acho que estamos muito longe da solução de paz e de segurança coletiva que necessitamos para a Europa.
A nova presidência dos Estados Unidos está a gerir o conflito na Ucrânia como foi gerindo todos os conflitos, como outros presidentes e outras presidências dos Estados Unidos fizeram em outras guerras e outros conflitos, exclusivamente em função dos interesses norte-americanos. Não se pode olhar para as decisões de Donald Trump com a ilusão de que ele é uma pessoa empenhada na paz à escala global, nas soluções políticas para os conflitos e no respeito ao direito internacional. Não é nada disso. É apenas mais uma gestão do militarismo e da guerra em função dos interesses estadunidenses. Aliás, basta olhar para a proposta dele de expulsar os palestinos da Faixa de Gaza para a ocupação daquele território.
Percebemos que Trump está longe de ser um defensor da paz, dos povos e do respeito ao direito internacional. O que ele está fazendo na Ucrânia é gerir aquele conflito no ponto em que está hoje. Por trás das decisões e dos posicionamentos políticos, Trump está, sobretudo, com a intenção de distanciar a Rússia da China. Os Estados Unidos chegaram à conclusão que a tática que tinham montado de cerco à Federação Russa foi uma tática que falhou. Portanto, o objetivo é reorientar a sua tática para um outro sentido, que é o de alinhamento com o confronto estratégico que não é com a Rússia, é com a China.
Esse é o grande confronto estratégico e, neste momento, estão procurando criar as condições para que esse embate com a China possa ser feito em modo que permitam aos Estados Unidos os cenários mais favoráveis, sobretudo no confronto direto para o isolamento da China, sem que ela possa contar com aliados, minando a aproximação a um conjunto de outros países que, nos últimos anos, se aproximaram.
Basta olhar para as relações que se desenvolveram e que se aprofundaram no espaço do BRICS, e com outros países que se associaram ao bloco. Há hoje um conjunto de países que estão mais próximos da China nas relações comerciais, políticas e de outros tipos, do que estavam há quatro, cinco anos.
Enquanto observamos essa aproximação dos Estados Unidos com a Rússia, a União Europeia tem mantido o posicionamento sobre uma suposta defesa da Ucrânia. Você acredita que existem condições econômicas e materiais para garantir essa segurança?
Essa é uma boa pergunta e talvez seja uma das respostas de milhões de euros que temos tentado responder. A União Europeia tem tido uma posição de vassalagem e de subserviência às administrações norte-americanas. E aqui o que aconteceu a propósito da Ucrânia é revelador. Os Estados Unidos plantaram uma guerra na Europa, fizeram da Ucrânia um campo de batalha dos seus interesses geoestratégicos e arrastraram a União Europeia.
Os países europeus foram os que sofreram as consequências mais negativas desse conflito, não apenas em termos sociais, mas também econômicos. A Alemanha, que é a principal economia do bloco, está ainda hoje em uma situação de recessão, sentindo as consequências negativas desse conflito, inclusivamente do efeito bumerangue das sanções que foram impostas à Rússia, que tiveram um resultado contraproducente das economias da União Europeia e, particularmente, da economia alemã.
E como justificar agora esses prejuízos?
Com uma fortíssima propaganda feita a partir da União Europeia de que a guerra na Ucrânia era inevitável, precisava se prolongar “até a derrota militar da Rússia”, mesmo sabendo que esses objetivos eram inalcançáveis.
Toda a propaganda da União Europeia foi baseada nestes objetivos. O discurso belicista e militarista assumiu de fato foros de obsessão, quase de delírio, e hoje temos as opções políticas estratégicas da União Europeia com o militarismo à cabeça, com o discurso de que isso vai ser o motor de salvação. Ou seja, como uma economia onde a produção de equipamento militar, de armamento, munições, de tecnologia de uso militar e todo o tipo de aplicações militares são a prioridade, inclusive do ponto de vista econômico, industrial, orçamentário e financeiro. É essa a prioridade. Tudo o resto é secundarizado. Ora, isto é uma economia de guerra, e esta ideia não só é errada, como também é perigosa. É uma corrida armamentista.
Quando alguém corre aos armamentos, não fica a correr sozinho. Todos que estão à sua volta também vão correr. E, naturalmente, os Estados Unidos, deste ponto de vista, não querem perder a dianteira. Recentemente, Trump disse que seu país está disponível para oferecer os equipamentos militares e as munições que a União Europeia quer para alimentar o conflito na Ucrânia. Essa corrida dá uma ajuda enorme ao complexo militar norte-americano, que está fazendo um negócio bilionário com a venda de armas. Estas opções por parte da União Europeia são erradas do ponto de vista dos interesses dos povos, porque nenhum povo tem interesse em ter como prioridade o militarismo e a guerra.
Eu lembro das palavras da presidente da Comissão da União Europeia, Ursula von der Leyen, na última Conferência de Munique, quando dizia que ela própria iria propor a ativação da cláusula do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) para investimentos em defesa. Ou seja, para investir em habitação, saúde, educação, combate à pobreza e aumento dos salários e pensões, os países só podem fazer isso se estiverem dentro dos limites do déficit orçamental e da dívida pública que o pacto visa. Se quiserem gastar na guerra e no militarismo, esses gastos ficarão a cargo dos critérios do Pacto.
Isso revela até onde vai a opção da União Europeia com o militarismo e a guerra e até onde fica a secundarização das necessidades dos povos. Isso é profundamente errado e julgo que do ponto de vista social e político, é preciso fazer a denúncia do que essas opções significam, do erro e do perigo para o nosso futuro. Por isso, é preciso mobilizar as forças que estão ao nosso lado para derrotar essa ideia.
E como argumentar com aqueles que propagam o discurso de que a Europa precisa ter meios para se defender? Você teme que num futuro próximo Portugal envie tropas para a Ucrânia, por exemplo?
É preciso aprender com as lições da história naquilo que tivemos de mais dramático para o continente europeu. As corridas armamentistas e a solução de conflitos pela via militar foram dois exemplos trágicos com as duas guerras do século vinte neste território, com a destruição e as mortes que elas provocaram. Esse é o primeiro elemento que devemos ter presente para rejeitar a ideia do militarismo e da guerra como solução para conflitos e divergências entre povos e entre Estados.
Em segundo lugar, eu não tenho a ideia, nem a ilusão, de que seja um desarmamento isolado de alguém que vá garantir a sua segurança. Até faço referência à Constituição da República Portuguesa, que prevê a existência de forças armadas para cumprir um papel muito claro, que é o de garantir a independência e a soberania nacionais. É para isso que nós precisamos de ter forças armadas.
Claro, não podemos deixar de tê-las, mas elas precisam ser capazes de cumprir o desígnio constitucional de garantia da independência e da soberania nacionais. E isso tem uma exigência concreta de investimento público que precisamos fazer em equipamentos, bem como nas condições socioprofissionais dos militares e na sua capacidade operacional, visando a defesa nacional.
As forças armadas não deveriam participar de guerras de agressão contra os outros, nem na Ucrânia nem em lado nenhum. Há um enorme caminho a percorrer para construir as soluções de segurança efetiva e coletiva que precisamos no continente europeu do Atlântico aos (Montes) Urais e em todo o mundo. E a solução para garantir isso à escala global tem de ser através do respeito ao direito internacional e aos mecanismos que já existem.
E quais são esses mecanismos?
O desarmamento geral, simultâneo e controlado, a começar pelo desmantelamento dos arsenais nucleares, com uma perspectiva de redução da guerra, de contrariar a escalada dos gastos militares em escala mundial, da redução dos arsenais militares, particularmente aqueles altamente destrutivos. Para que esse caminho seja percorrido à escala global é necessário que se aprofunde os mecanismos multilaterais de cooperação internacional, nomeadamente no âmbito das Nações Unidas, e Portugal pode contribuir com inúmeras medidas. Não é a corrida aos armamentos que nos garante a nossa segurança.

Eurodeputado João Oliveira afirma que ‘Trump está longe de ser um defensor da paz, dos povos e do respeito ao direito internacional’
Como você avalia a presidência de António Costa no Conselho Europeu até o momento?
Quem tinha expectativas que Costa pudesse, por via da sua ação, inverter o rumo que as políticas da União Europeia têm tomado contra os interesses dos povos estará, neste momento, desiludido, porque criou-se uma ilusão que se vê. Desde o início, nós alertamos para essa circunstância. Como presidente do Conselho Europeu, ele até dá expressão àquilo que é a vontade e o sentido majoritário das opções políticas e dos governos dos países que integram o bloco europeu, e é isso que ele está fazendo.
Não houve até hoje, da parte de Costa, nenhuma ação ou medida de posicionamento que contrariasse essa prioridade ao militarismo e à guerra, que contrariasse essa secundarização dos problemas econômicos e sociais dos povos, que apontasse uma perspectiva de reforço da coesão social e territorial no espaço da União Europeia e uma abordagem de paz, cooperação e amizade com os povos para lá do espaço europeu. António Costa tem sido intérprete, ao nível do Conselho, dessas orientações políticas erradas, e isso naturalmente desiludiu muita gente que estava criando expectativas do que seria essa presidência que a mim não surpreende nem espanta.
O PCP afirmou que “a União Europeia não tem moral para falar de valores”. Falta aí uma autocrítica da esquerda europeia sobre esse apoio à guerra no momento em que o líder mundial da extrema direita fala sobre isso?
É verdade. Eu diria que isso é uma repetição da história. Nós tivemos nos últimos anos, particularmente das forças da socialdemocracia, uma repetição completa da capitulação do discurso de guerra e militarismo. E isso também foi a capitulação perante os problemas sociais, ou seja, essas forças abandonaram por completo a abordagem aos problemas sociais dos povos. Basta olhar para a Alemanha e aquilo que foi o governo do Partido Social-Democrata (SPD, por sua sigla em alemão) nos últimos anos, a subserviência a esses comandos que vinham do outro lado do Atlântico em relação à promoção da guerra, da ingerência e da confrontação.
O resultado é, novamente, tal como aconteceu no século XX, a socialdemocracia abrindo o campo à direita e à extrema-direita a partir desse posicionamento de abandono de bandeiras, projetos e políticas com um forte componente social da abordagem aos problemas dos povos, das desigualdades, das injustiças sociais. E o abandono das políticas identificadas com esses objetivos, acaba levando os povos à desilusão e ao descontentamento, deixando-os à mercê do discurso oportunista e calculista da extrema direita, que não tendo objetivos diferentes, acaba aproveitando para, de forma agressiva e violenta, impor o caminho de favorecimento dos interesses dos grupos econômicos e do capital, sem dúvida nenhuma.
Esses elementos são muito importantes e devem obrigar a socialdemocracia a fazer uma reflexão sobre os seus posicionamentos. De forma geral, a esquerda e todas aquelas forças que embarcaram no discurso militarista e da guerra nos últimos anos, que achavam que surfando a onda desse discurso evitariam, digamos assim, os descontentamentos, e por oportunismo conseguiram gerir o seu posicionamento, é bom que olhem para o contributo que deram para as forças da extrema direita e façam ainda uma inversão de marcha, pois a continuação disso pode nos conduzir a algo muito pior.
Você acredita que a retirada da Europa das mesas de negociações para o fim da guerra na Ucrânia sugere uma fragmentação na OTAN?
Não sei se chegará a tanto. Mas é preocupante a forma como a União Europeia, e os responsáveis pelos governos que compõem o bloco estão tentando se descolar desse discurso de Trump. Ou seja, se ele propõe a paz, nós temos que propor a guerra. Alguns governos da União Europeia entenderam que a forma de descolarem e se desmarcarem das posições de Trump, que propõe uma solução de paz imediata na Ucrânia, é apostar na continuação da guerra.
Ora, nem Trump está propondo a paz, nem a União Europeia deveria estar propondo essa continuação da guerra. Até porque ele não tem, rigorosamente, nenhuma solução de paz e de segurança coletiva para a Europa. Nem os povos da Europa têm interesse nessa posição militarista. Aquilo que verdadeiramente faz falta é uma posição consequente de exigência de uma discussão que envolva não apenas os países da Europa, mas também os outros países que integram a OTAN, nomeadamente os Estados Unidos.
A defesa da não continuação da guerra na Ucrânia é aquilo que as instituições da União Europeia deviam estar a exigir e deviam estar a contribuir a partir dos princípios da Conferência de Helsinki, que 50 anos depois continua a ser uma belíssima referência que nós temos para esse caminho que é preciso fazer.
A eleição na Ucrânia também seria um bom caminho para a paz, já que o mandato de Zelensky já expirou?
Naturalmente o povo ucraniano tem que estar presente. A expressão democrática da vontade do povo ucraniano é um dos elementos indispensáveis para a construção de soluções que possam ser efetivamente duradouras e estáveis. As vontades do povo ucraniano há muito tempo estão condicionadas. Aliás, desde 2014, depois do golpe de Estado e com as perseguições políticas que se têm vivido na Ucrânia, nomeadamente com a ilegalização do Partido Comunista da Ucrânia e com o impedimento a outras forças democráticas eleitas para o Parlamento ucraniano nas últimas eleições.
Essas não são, propriamente, as condições que garantam que se possa partir da atual situação para uma correspondência à vontade democrática expressa pelo povo ucraniano e as decisões que eles querem tomar para o seu futuro. Então, esse é um dos elementos que tem que estar presente. Não será o único, mas precisa ser colocado.
É possível afirmar que Putin venceu a guerra por ter mantido uma segurança militar na Rússia ou acredita que é cedo para fazer esse tipo de avaliação?
Há um elemento do ponto de vista militar que não deixa de ser relevante partindo de todo tipo de apoio financeiro que foi sendo destinado para derrotar militarmente a Rússia. Esse esforço fracassou porque esses objetivos não foram alcançados. Acredito que em qualquer conflito militar não se pode encontrar vencedores a não ser aqueles que fazem negócios com a guerra.
É muito difícil nós acharmos vencedores com a perda de vidas de ucranianos e de russos, com os milhões de refugiados, com as vidas destruídas, com o território fustigado pela destruição. Penso que nem mesmo o presidente russo tinha interesse em que aquele conflito tomasse as proporções que tomou. Mas essa é uma constatação a partir destes elementos e do ponto de vista político.
As intenções de desmembrar a Federação Russa e de derrotá-la militarmente não deixam de ter, do ponto de vista político, uma determinada capacidade de resistência que, nesta altura, deve ser valorizada por Putin. Mas, precisamos olhar com mais aprofundamento a partir da paz e das preocupações com a Europa, sem falar sobre ganhos imediatos.
Qual a ligação entre a guerra na Ucrânia e o conflito em Gaza? Há uma diferença na articulação de Joe Biden para Donald Trump?
É uma situação muito complicada, considerando não apenas o que se vive em Gaza, mas também na Cisjordânia, falando da Palestina, e juntando-lhe também os elementos de preocupação que estão muito presentes, a propósito, da situação de outros países do Oriente Médio, nomeadamente na Síria.
Com o tempo, ficou claro que Benjamin Netanyahu tem planos de reconfiguração do mapa do Oriente Médio, que nesses planos não entra nenhuma consideração de respeito pelos direitos do povo palestino, dentro do direito internacional, naquilo que se refere nomeadamente às resoluções das Nações Unidas. Esses elementos ficaram muito visíveis há um ano.
Talvez seja útil utilizar palavras que não são minhas. Aida Touma, uma deputada do Parlamento Israelita, do Knesset, dizia há pouco, numa iniciativa que nós organizámos no Parlamento Europeu, que Netanyahu aproveitou toda a dor e todo o sofrimento daqueles acontecimentos de 7 de outubro de 2023, para pôr em prática planos que ele já tinha de liquidação dos direitos nacionais do e do genocídio do povo palestino. Naturalmente, Netanyahu só podia fazê-lo com o apoio fortíssimo dos Estados Unidos. Não apenas do ponto de vista militar, mas também do financeiro. De resto, os Estados Unidos e Trump vêm a expressar, sem qualquer vergonha ou receio, os planos que têm sobre a ocupação do território da Faixa de Gaza e a expulsão dos palestinos desse território.
São intenções coloniais.
É revelador como a administração norte-americana está a gerir o militarismo e a guerra em função das suas próprias conveniências, com objetivo de redesenhar o mapa do Oriente Médio e, eventualmente, levar mais longe, naquela zona do território, as suas pretensões de controle e domínio daquele território, e nomeadamente procurando, se calhar, fazer da Síria aquilo que já fez da Líbia, desmembrando o Estado e repartindo o controle do território por zonas de influência que se possam dividir eventualmente entre Israel, Estados Unidos e a Turquia, em função da ocupação de determinadas zonas do território sírio.
A situação no Oriente Médio é de fato muito complexa, pois exige uma grande determinação e uma grande coragem, em primeiro lugar, na defesa dos direitos nacionais do povo palestino, do cumprimento e do respeito ao direito internacional, e de soluções que envolvam o respeito pela soberania dos povos de toda aquela região, incluindo também o povo sírio.
O governo português tem falado sempre na solução de dois Estados, mas nunca sequer reconheceu a Palestina. Por quê?
Infelizmente, é um discurso hipócrita da parte daqueles partidos que se têm alternado no governo, e não apenas do atual governo do PSD e do CDS, mas também do Partido Socialista. O PS, que hoje repete em declarações e em posicionamentos diversos a vontade de reconhecimento do Estado da Palestina, enquanto teve na Assembleia da República uma maioria que podia garantir essa decisão, não o fez, e recusou sempre as propostas que o PCP levou à discussão nesse sentido.
Portanto, é um discurso falso, cínico, hipócrita, de quem podia lá atrás ter tomado decisões que contribuíssem para esse objetivo, não o quis fazer, e hoje finge-se de arrependido e amargurado com a incapacidade dessas decisões poderem ser adotadas. Espero que, do ponto de vista social, haja força suficiente para impor ao atual governo decisões nesse sentido, que o governo também não quer tomar. Espero que se crie uma posição política suficiente para que o governo seja obrigado a avançar nesse sentido.
Acabamos de presenciar a ascensão da extrema direita no Parlamento alemão. Isso já havia acontecido na França e também em Portugal. Como você avalia esse fenômeno, considerando o grande número de votos da classe trabalhadora depositados nesses setores?
Essa é uma questão complicada, uma resposta muito complexa. Mas eu diria que há vários elementos que têm que ser tidos em consideração. O primeiro é o das dificuldades dos povos, ou seja, a degradação das condições de vida, o agravamento das desigualdades, das injustiças, das dificuldades na solução de problemas absolutamente prioritários e essenciais, como os da habitação, dos baixos salários, da pobreza e da exclusão social.
Tudo isso contribui para uma situação que, do ponto de vista econômico e social, é mais grave e não é com a barriga vazia que se cria consciência política. A agudização das dificuldades dos povos leva, do ponto de vista político, que haja mais dificuldades em pôr em perspectiva um caminho que seja, digamos assim, inspirador e motivador relativamente ao desenvolvimento da luta.
Com o aprofundamento dos problemas econômicos e sociais, é mais fácil as pessoas ficarem à mercê desse tipo de projeto e de forças reacionárias e antidemocráticas. Simultaneamente, há um elemento de desilusão com as forças ditas de esquerda que, na prática, desenvolvem políticas no sentido exatamente contrário, ou seja, políticas que em vez de darem resposta aos problemas dos povos se concentram apenas em garantir o favorecimento dos interesses do capital e dos grandes grupos econômicos. Portanto, esse elemento de frustração de expectativas, de desilusão, de descontentamento com a socialdemocracia também tem consequências com quem supostamente protagoniza essas soluções à esquerda.
Também há todo um manancial de instrumentos que o capital socorre para garantir, a partir dessa fragilidade, dessa vulnerabilidade das pessoas, àquele discurso reacionário da extrema direita, garantindo que isso tenha uma tradução do ponto de vista eleitoral. O capital faz as apostas no cavalo de corrida em função do cavalo de corrida que necessita. Se aquele que está a montar já está cansado, trata de apostar no outro. Nas circunstâncias em que os partidos tradicionais deixam de oferecer as mesmas garantias que ofereciam antes para a política que serve aos interesses dos grupos econômicos, eles naturalmente arranjam outros protagonistas para garantir que esse serviço possa ser feito à mesma.
Diante desse contexto e impondo uma forma mais violenta, mais agressiva, mais desrespeitadora dos direitos dos cidadãos e das regras do funcionamento dos regimes democráticos, socorre-se novamente à extrema direita como fizeram no século XX. E, portanto, tal como no século XX a extrema direita foi a expressão violenta e agressiva dos interesses do capital, também agora volta a ser no século XXI. É importante trabalhar para que a situação se inverta, sobretudo para que os trabalhadores não alimentem as forças que protagonizam e representam interesses exatamente contraditórios e antagônicos aos seus.
Quais são as vantagens e desvantagens do acordo entre União Europeia e Mercosul, e como isso atingiria Portugal diretamente?
Nós temos uma opinião muito desfavorável porque nos parece que há várias dimensões em que o tratado do Mercosul é negativo, em geral para os povos, mas em particular para o povo português. A verdade é que o acordo favorece os grandes interesses dos vários setores, o do agronegócio talvez seja o mais evidente, mas também dos grandes interesses econômicos em prejuízo dos pequenos produtores, dos pequenos agricultores, das pequenas e médias empresas.
Ele cria amplas margens de acumulação e de centralização do capital para o desenvolvimento do negócio das empresas multinacionais, particularmente da base europeia, não garantindo a correspondência com a atividade produtiva que é necessária para assegurar a situação das necessidades dos povos, particularmente no espaço europeu.
Isso abre um campo enorme de acesso das grandes empresas europeias ao mercado da contratação pública da América Latina, com a secundarização, digamos assim, do papel que as pequenas e médias empresas têm, ou seja, ao mesmo tempo que permite essas grandes vantagens para os grandes grupos econômicos, que têm condições de desenvolver a sua atividade em internacionalização, simplesmente secundariza o impacto que têm nas pequenas e médias empresas.
Esses grandes negócios que se abrem para as grandes empresas latino-americanas têm como contrapartida a entrada no espaço da União Europeia um conjunto de produtos a preços muito mais baixos. Os produtos que chegam aqui a esses preços vão ter um impacto muito negativo nas pequenas e médias empresas, nos pequenos agricultores, que são a esmagadora maioria do tecido econômico e produtivo do espaço da União Europeia e, particularmente, de um país como Portugal.
Para além de que introduzem elementos de fragilização e dúvida relativamente à segurança, que em alguns casos é o que está identificado em termos alimentares, em função de processos produtivos, de técnicas produtivas, de utilização de pesticidas, de adubos e de fertilizantes que, nos espaços da União Europeia, são proibidos, limitados ou condicionados, mas que em vários países da América Latina são praticamente liberados. Há vários elementos de preocupação que temos que identificar e limitar em relação ao acordo do Mercosul. A entrada em vigor pode ter consequências muito negativas para todos os países do bloco, em particular para um país como Portugal.
E por que ainda não está em vigor?
Por perceber a dificuldade em levar adiante um acordo dessa natureza, a Comissão Europeia está procurando contornar os elementos que podem obstaculizar, digamos assim, a entrada em vigor do Mercosul. Aquilo que se chama de “splitting”, ou seja, a divisão do acordo em dois. Um acordo comercial por um lado e um acordo político por outro, é a tática que a Comissão Europeia está tentando pôr em prática para conseguir superar o obstáculo que poderia ser a ratificação do acordo a nível nacional.
Ou seja, dividindo o acordo em dois e fugindo dessa exigência de ratificação nacional pelos Parlamentos Nacionais, a Comissão Europeia evita ter de se confrontar com o chumbo de algum país do Mercosul. Agora, se o acordo fosse assim tão bom, a Comissão Europeia não teria esses receios. A Comissão Europeia só está procurando pôr em prática esse tipo de mecanismos por ter a noção exata que o acordo do Mercosul é prejudicial aos povos, aos pequenos países da União Europeia, e, portanto, quer evitar que isso se transforme num problema político por via da rejeição do mesmo.