Quinta-feira, 10 de julho de 2025
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“O exílio moldou minha vida de uma forma que eu não escolhi, mas que eu também escolhi. Herdei o exílio do meu pai no momento em que nasci, o exílio palestino. Mais tarde, porém, escolhi meu próprio exílio quando fugi da ditadura síria para a Europa. Tenho o exílio herdado e o exílio escolhido, e os combinei”. Essa é uma reflexão de Ghayath Almadhoun, poeta sírio-palestino que conversou com Opera Mundi durante sua passagem pelo Brasil para o lançamento de seu livro Você deu em pagamento o meu país (editora Ars et vita).

Almadhoun tem 45 anos de idade. Ele nasceu em 1979, na cidade de Damasco, na Síria, fruto do encontro de sua mãe, síria, e de seu pai, um palestino deslocado durante a Nabka, que foi preso por Israel e separado totalmente de sua família em Gaza. Este é seu exílio herdado.

Para fugir do regime sírio, ele foi para a Suécia, onde depois de anos conseguiu uma cidadania. Somente com a cidadania de um país europeu, ele conseguiu voltar para o local de sua origem, a Palestina. Este é seu exílio escolhido.

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“Minha avó ficou sozinha em Gaza até morrer em 2012. Nós nunca a conhecemos. Fiz o possível para ter um passaporte sueco, para poder visitá-la antes de seu falecimento. Mas ela morreu antes de eu me tornar um cidadão sueco. Todos podem ir à Palestina, exceto os palestinos”, relata.

Almadhoun, que se autodescreve como “um poeta que perdeu dois países”, nasceu e cresceu sabendo o que é a ocupação israelense. Mesmo assim, se considera como “um homem livre” porque, apesar de sua identidade de exílio e refúgio, “Israel nunca tocará a alma dos palestinos”.

Leia a entrevista na íntegra

Opera Mundi: Ao longo de sua carreira, você passou por diversos países. Como você, seu trabalho, e sua identidade são normalmente recebidos nos países? No Brasil tem sido diferente?

Ghayath Almadhoun: Faço parte da cultura árabe, que hoje em dia está dividida em 22 países, onda há muita diversidade. O que nos une é o idioma. Então, eu vim de um lugar onde não preciso dos outros idiomas, como inglês, espanhol e francês. Não preciso ser traduzido. Para mim, é suficiente ter 500 milhões de falantes de árabe em 22 países com muita diversidade.

Eles o amam no Líbano, o odeiam na Palestina, você é um best-seller no Iraque, convidado no Marrocos, escrevem contra você na Líbia… E você vai de feira de livros em feira de livros de forma sistemática e organizada durante o ano inteiro.

Há muitos clichês, especialmente na Europa, sobre ser árabe e muçulmano. Eu chamo de caixa de Pandora, e nela você pode colocar as coisas que são problemáticas, e eu tenho muitas delas. Então, falando do mundo ocidental agora, se abrirmos essa caixa, a primeira coisa que eles descobrem é que sou imigrante. E há pessoas que não gostam disso porque eu estou “competindo” com elas. Portanto, você não é tão bem-vindo por ser imigrante. Há outra coisa nessa caixa que é o fato de você ser refugiado, fui como refugiado político para a Suécia. E as pessoas que te odeiam como imigrante são diferentes das pessoas que te odeiam como refugiado. Além disso, você é muçulmano no lugar mais islamofóbico do mundo, a Europa. Portanto, as pessoas que são contra você como imigrante e como refugiado são diferentes das pessoas que são contra você por ser muçulmano. E então você é árabe, e então você é palestino. Todas as pessoas que o odeiam nessa categoria, agora têm outra. Há pessoas que o odeiam só porque você é palestino, porque ‘ameaça Israel’, ‘é antissemita’, e todos esses clichês. E então, eu sou um homem. Ser um homem muçulmano já é uma outra coisa. Então, se pensarmos nisso, sim, quando viajo, recebo muitos clichês, muitos mal-entendidos, concepções e coisas assim.

Mas isso não é importante. O que é importante, por exemplo, é que estou muito feliz por esse livro ter chegado ao Brasil e não a Portugal. Para mim, há uma grande diferença entre Portugal e o Brasil. Prefiro um país como o Brasil, com diversidade e multiculturalidade, e toda essa nação reunida em um só grande país.

Você acha que podemos perder a essência da sua autoria na tradução do árabe para o português? Se sim, o que fazer para preencher este vácuo?

Neste livro há dois livros e meio. E a tradução em si é uma coisa muito problemática, porque ou ela coloca os holofotes no autor ou o remove completamente da obra. Há muitos poetas excelentes de muitas nações que foram traduzidos para outros idiomas e foram totalmente destruídos. A tradução foi ruim, a outra nação achou que eles eram terríveis e parou de traduzi-los. Portanto, como dizemos, a tradução é muito problemática. Pode fechar a porta para você, como poeta, para sempre em um país.

E eu estava muito preocupado porque esta é a primeira vez que estou traduzindo para o português. Agora, depois que cheguei aqui e fiz a turnê, vi as críticas nos jornais e me comuniquei com as pessoas, comecei a entender que fizeram um ótimo trabalho e parece que a minha poesia chegou ao português. E isso é realmente um alívio, porque abre para você e para mim um mundo novo, totalmente novo. Então, posso dizer que no Brasil fui recebido maravilhosamente bem até agora.

Eu não acredito na tradução de poesia de forma alguma. Sou até contra a tradução de poesia. Não há como traduzir poesia. De jeito nenhum. Tente traduzir qualquer música que você goste em português para o inglês e ela será prejudicada. Mas nós precisamos disso. Nós, como seres humanos, com culturas diferentes, precisamos nos comunicar.

O que eu quero dizer a vocês é que neste livro, não há sequer uma única palavra escrita por mim. Nem mesmo uma palavra. Este é outro livro escrito em outro idioma. A poesia que escrevi foi escrita em outro livro, em outro idioma, o árabe. Portanto, essa poesia não é minha. Mas ao mesmo tempo é 100% minha.

Não há como traduzir poesia, mas há uma maneira melhor do que a outra. Existe um bom tradutor e um tradutor ruim. Quando você traduz você perde a música, as metáforas do idioma, o conhecimento de um grupo, as piadas que eles entendem, a história deles, o contexto dos sons, tudo se perde. Mas, no final, traduzir é a única maneira de se comunicar.

Às vezes penso que as pessoas e as nações são loucas porque traduzem poesia. Para mim, elas são loucas. ‘Por que você está traduzindo letras, músicas e poesias de outras nações que não fazem sentido em sua língua?’, questiono. Mas há algo por trás disso. Há uma conexão entre você, me entrevistando, e eu, respondendo, por causa desse livro. E eu me considero muito sortudo porque traduzi para muitos idiomas, e muitos deles foram bem-sucedidos.

Obra de poesias ‘Você deu em pagamento o meu país’, de Ghayath Almadhoun
Duda Blumer

Quais são suas expectativas sobre a forma que o público brasileiro receberá sua obra? O que você mais espera que os brasileiros compreendam sobre sua arte, que é um relato de vida?

Eu gostaria que o livro chegasse aos leitores e isso não é fácil com a poesia. Mas eu adoraria que esse livro chegasse de forma a construir uma nova relação com os jovens escritores palestinos de hoje em dia.

No Brasil, as pessoas não entendem o que acontece na Palestina. Não entendem como Israel controla e bloqueia tudo ou por que nenhum outro país faz um movimento enfático para romper o bloqueio ou enfrentar Israel. Isso é algo somente dos brasileiros? E no final das contas, há o que entender ou é apenas algo tão desumano que apenas foge da racionalidade humana?

Acho que o Brasil está em uma situação muito melhor do que muitos países que visitei. A maioria dos brasileiros tem uma ideia sobre a ocupação da Palestina e dos árabes, em comparação com os países que visitei, que não têm nem ideia.

Isso significa que Israel é realmente forte e muito apoiado. Eles são apoiados pelo mundo ocidental e seu exército, que são os líderes deste planeta. É possível ver isso quando Israel bombardeia o Irã e os Estados Unidos bombardeiam com eles. Portanto, eles não são apoiados apenas economicamente. Eles são apoiados pelo poder, pela mídia, pelo dinheiro, pelas armas, a ponto de todos esses países fortes e gigantescos se posicionarem contra o direito palestino. A ponto de se você tentar reivindicar seu direito como palestino, será pressionado e acusado de antissemita e será silenciado.

A maioria da ala de extrema direita em todo o planeta é a favor de Israel. Desde Modi, na Índia, até a polícia e o exército no Brasil, passando por qualquer pessoa como Trump. A direita é a favor de Israel. Mas quero lhe dizer uma coisa: os intelectuais são a favor da Palestina. Pessoas de QI [Quociente de inteligência] alto são a favor da Palestina. Somente pessoas de baixo QI são a favor de Israel, a maioria das pessoas que são a favor de Israel são nazistas, racistas, de direita, e não bem educados. Eu sou muito feliz porque essas pessoas não são a favor da Palestina, mas sim de Israel. Elas realmente merecem isso.

Você pode nos contar sobre a história de sua família?

Minha família é de uma cidade chamada Ashkelon, ocupada por Israel em 1948. Meu pai é mais velho que Israel. Ele tinha seis meses de idade quando Israel foi criado. Eles empurraram minha família de Ashkelon e foram parar no que se tornou o campo de refugiados de Khan Yunis. Eles construíram uma tenda lá, um local que não existe mais porque foi totalmente demolido pelos ataques israelenses. Meu avô paterno morreu imediatamente, ele tinha 33 anos. Minha avó cuidou das crianças.

Israel intensificou a guerra de 1967, a Guerra dos Seis Dias, quando ocuparam Gaza, a Cisjordânia e Jerusalém Oriental da Palestina. Ainda ocuparam a Síria, o Sinai do Egito e parte da Jordânia. Nesse período, Israel cresceu dez vezes ao seu tamanho inicial. Naquela época, meu pai tinha 18 anos. Eles o prenderam com outros 2,5 mil jovens palestinos e os levaram pelo deserto do Sinai por quatro dias sem comida. Foram até o canal de Suez, eles os colocaram em um barco e os jogaram para o Egito. Mas deixaram minha avó em Gaza, e meu pai nunca mais a viu.

Meu pai acabou indo para a Jordânia e depois para a Síria, onde conheceu minha mãe. Minha mãe é síria e eu nasci em Damasco. E minha avó ficou sozinha em Gaza até morrer em 2012. Nós nunca a conhecemos. Fiz o possível para ter um passaporte sueco para visitá-la antes de seu falecimento, mas ela morreu antes de eu me tornar um cidadão sueco. E é muito triste que eu e meu irmão fomos os únicos da minha família que pudemos ir à Palestina. Todos podem ir à Palestina, exceto os palestinos. Portanto, precisei ser um cidadão sueco para ir para lá.

Depois que me tornei cidadão sueco, visitei a Palestina cinco vezes. Na primeira vez, fui preso pelos israelenses por seis horas e meia de interrogatório. Na segunda vez, talvez cinco horas, na terceira vez, quatro horas, depois uma hora e, novamente, cinco horas. Eles perguntavam coisas estúpidas como ‘por que sua família deixou Ashkelon?’. Eu ria, mas eles continuavam sem entender, fazendo a mesma pergunta idiota. Eles repetiam, toda vez que eu ia, eles repetiam essa pergunta 100 vezes. E eu sempre dizia a eles: “Vocês são estúpidos? Vocês os expulsaram!”

Israel é um Estado bárbaro. Nunca pensei que haveria um Estado bárbaro em nossa época. Matar essa quantidade de crianças é bárbaro. Bombardear civis por mais de um ano e meio não é civilizado. Matar a maior quantidade de jornalistas da história não é civilizado.

Na guerra do Vietnã, em 20 anos de guerra, de ambos os lados, vietnamitas e [norte-]americanos, 63 jornalistas foram mortos. Na Segunda Guerra Mundial, a mais mortal da história, com 60 milhões de mortos, incluindo as duas bombas atômicas contra o Japão, foram 67 jornalistas mortos. Se você juntar os 63 da guerra do Vietnã e os 67 da Segundo Guerra, são 130. Israel matou 250 jornalistas em um ano e meio. É a maior quantidade de jornalistas mortos na história. O mesmo aconteceu com as crianças, com os profissionais de saúde e com os funcionários das Nações Unidas. Israel bateu um recorde e precisa de 100 mil anos para que outra nação venha, os derrote e supere seus números. Estou muito feliz pelo fato de Israel estar em primeiro lugar no ranking das piores coisas em tudo. É um país totalmente incivilizado.

Israel está prejudicando o amor que as pessoas têm pela cultura judaica e pelo povo judeu. Está prejudicando tudo o que sabemos sobre o judaísmo. Israel é o oposto dos judeus que estavam vivendo na diáspora e que criaram para nós essa maravilhosa cultura, arte, música, filosofia, economia, física e tudo mais. Israel danificou tudo isso em 70 anos.

Se alguém lhe disser que o que está acontecendo não é genocídio, diga sobre minha família. Diga que conheceu um palestino cuja família sofreu um genocídio. Perdi cerca de 400 primos somente nessa guerra. Portanto, é como se fosse algo além da imaginação. Gaza está sendo totalmente demolida.

Poeta sírio-palestino Ghayath Almadhoun em São Paulo, no lançamento do livro ‘Você deu em pagamento o meu país’
Duda Blumer

O que o exílio significa para você?

As pessoas entendem mal o exílio porque muitas pessoas durante a história foram punidas e enviadas para o exílio. Mas o exílio não é apenas uma punição. O exílio tem um lado maravilhoso, que é fazer de você uma pessoa de fora. É o oposto da pessoa que nunca muda de endereço, nasce e morre no mesmo lugar. Ser uma pessoa de fora significa ser testemunha e ver as coisas de ângulos diferentes e ser capaz de criticar mesmo quando não lhe é permitido criticar porque você é de fora. O olho de quem está de fora é o olho do artista. É o que precisamos para poder descrever as coisas à distância.

Os artistas e escritores europeus e ocidentais aproveitaram o exílio porque foram forçados a fugir do fascismo, do nazismo, da SS [polícia nazista] e da Gestapo [polícia secreta da Alemanha nazista], fugindo de Franco [ditador espanhol entre 1939 a 1975]. E, de repente, depois da Segunda Guerra, a situação se tornou pacífica e não havia mais ditadura na Europa. E assim houve uma falta de exílio. Os artistas europeus e ocidentais começaram a sofrer por estarem em seu lugar. Então, inventaram a bolsa de estudos, a residência, o intercâmbio e assim por diante, apenas para cobrir a falta de exílio.

Enquanto isso, nós, pessoas que viemos do terceiro mundo, que ainda sofremos com a ocupação e a ditadura, estamos nos divertindo muito. Nós realmente gostamos disso. Nós vamos, vemos, testemunhamos, escrevemos, nos envolvemos. Não estamos isolados da realidade. Tocamos na ferida, dizemos a verdade ao poder e somos intelectuais orgânicos. E o exílio desempenha um papel muito importante nisso.

Portanto, o exílio moldou minha vida de uma forma que eu não escolhi, mas que eu também escolhi. Herdei o exílio do meu pai no momento em que nasci, o exílio palestino. Mais tarde, porém, escolhi meu próprio exílio quando fugi da ditadura síria para a Europa. Tenho o exílio herdado e o exílio escolhido, e os combinei.

Não se esqueça de que sou um poeta que perdeu dois países. A Palestina e a Síria. Aquele que não tinha memória, mas herdou a memória de seu antepassado, a Palestina, e o lugar onde ele tem memória e experiência, que é a Síria. E a combinação disso é terrível, mas também muito boa. Então, é como se fosse algo que uso em meus textos.

Muito falamos sobre a ocupação israelense em Gaza, mas não podemos esquecer dos avanços israelenses contra a própria Síria. Você nasceu em Damasco, como essas tentativas de conquista de territórios sírios se deram ao longo dos anos. Como você compreendia isso enquanto crescia?

No mesmo ano que Israel ocupou o Alto Jordão [área que abrange a região do Rio Jordão], em 1967, ocupou Gaza e tirou meu pai de minha avó. Então, eu vejo Israel como um câncer. Esse câncer está crescendo. Eles ocuparam o Líbano, a Síria e a Jordânia. Não sei como descrever o Irã, mas é uma combinação do mesmo projeto racista. É um estado de apartheid, eles têm estado em Gaza há 16 anos, então se tornou pior do que um gueto, há ocupação, há bombardeio, há fome. Nada na história poderia ser pior do que Israel, de jeito nenhum.

Em seu livro Você deu em pagamento o meu país, você se descreve como um homem livre. Você se considera um homem livre?

100%. Definitivamente, sou um homem livre. A ocupação não pode ocupar sua alma como um superpoder. Eles podem forçá-lo fisicamente, mas sua alma é livre. Israel nunca tocará a alma dos palestinos, dos 17 milhões de palestinos. Israel poderia ocupar a terra, e nós voltaríamos e a libertaríamos. A Palestina será livre do rio até o mar. E todos serão bem-vindos para serem cidadãos palestinos, como eram antes. A Palestina será livre e voltará a ser um país para todos, se for judeu, cristão, muçulmano ou ateu. E não os trataremos da mesma forma que eles nos trataram.

Em seus trabalhos você articula bastante sua opinião sobre a responsabilidade da Alemanha em relação à Palestina. E você também mora em Berlim, pode falar um pouco sobre isso?

Acho que a Alemanha foi um dos principais motivos pelos quais perdemos nosso país. Quando o movimento sionista começou a pensar em deixar os judeus irem para a Palestina, eles não tiveram sucesso. As pessoas estavam indo para todos os lugares, menos para a Palestina.

A Inglaterra fez a Declaração de Balfour em 1917, uma ideia profundamente antissemita para se livrar dos judeus. Naquela época, eles não sabiam que em 25 anos Adolf Hitler chegaria e faria sua solução final. Portanto, a Inglaterra tem sua própria solução final. ‘Fizemos a promessa da Declaração de Balfour em 1917. Ocupamos a Palestina em 1918. Deixamos todos os judeus virem de barco. E, dessa forma, nos livramos de todos os judeus da Europa. Nós lhe daremos o dinheiro, o apoio e as armas. Nós iremos e ocuparemos a Palestina. Deixaremos que vocês venham para nos livrarmos de vocês’, pensaram.

Mas o que aconteceu? Os judeus não foram para a Palestina. E quando o antissemitismo começou a se tornar óbvio e o ataque contra os judeus começou a crescer após o golpe nazista, você acha que os judeus foram para a Palestina? De forma alguma. Eles foram para os Estados Unidos. E isso começou a crescer e crescer até a Noite dos Cristais em 1938 [considerado o início do que levaria ao Holocausto, quando os nazistas destruíram símbolos e propriedades judaicas]. E você acha que eles foram para a Palestina? Não, de forma alguma. Eles foram para os Estados Unidos. A população de judeus palestinos cresceu de 1% para 3 ou 4%, no máximo. A maioria estava indo embora. Mesmo quando as câmaras de gás e a matança começaram, eles não vieram. Eles foram para os EUA.

A necessidade de criar um Estado judeu começou a se tornar real depois de 1945, quando a guerra terminou e as pessoas viram o Exército Vermelho abrindo o campo de concentração, o que aconteceu em Auschwitz. Naquele momento, começaram a pensar seriamente na criação de Israel.

A maioria dos judeus veio para a Palestina após a criação de Israel, principalmente vindos dos países árabes, do Iraque, do Iêmen e do Marrocos. O que eu quero dizer é que a Alemanha é a verdadeira razão por trás desse Estado. Eles matam os judeus e nós pagamos o preço. Há uma longa história de antissemitismo, da qual todos os europeus participam. O povo europeu matando os judeus europeus. E nós, como palestinos, pagamos nossa terra como solução para essa longa história de antissemitismo e racismo.

E agora a Alemanha tenta repetir a história de uma maneira diferente. Eles foram maus com os judeus desde o início da história até 1945. E de 1945 até agora, eles são maus com os palestinos. Isso significa que eles são sempre maus. Eles não pensaram que por serem maus com os judeus, deveriam aprender com a história.

Agora eu consigo entender 100% como eles conseguiram fazer isso com os judeus, eles são muito unidos. Sua cultura é muito voltada para a supremacia branca. Eles tentam até mesmo tirar o mérito do Holocausto. Quando a África do Sul decidiu levar Israel à Corte Internacional de Justiça (CIJ), eles quiseram levar o crédito pelo Holocausto. Dizem: “Não é genocídio. Nós sabemos o que é genocídio porque cometemos o Holocausto”. Essas pessoas são loucas. Isso é totalmente insano. Eles estão fazendo isso de novo. Em vez de dizer “Nunca Mais” [bordão em memória do Holocausto] para todos, é “Nunca Mais” para um grupo. Agora, eles silenciam defesas de cessar-fogo e contra o bombardeio de crianças em Gaza, alegando que são falas antissemitas. Portanto, a Alemanha está sistematicamente, de forma organizada, silenciando e apagando todas as vozes palestinas e todas as que tentam dizer “parem com o genocídio”.

E isso não é como no passado, é pior. Porque esse silenciamento na época nazista era previsível, isso é o que se espera da ditadura e do totalitarismo. Mas o que acontece agora, acontece na democracia, em um mundo livre, quando todas as pessoas têm liberdade de expressão e desfrutam de regras democráticas, enquanto os palestinos não estão incluídos.

“Nus senão pelos nossos sangues e os restos carbonizados dos nossos corpos, pedimos desculpas a todos os olhos que não se atreveram a olhar diretamente para as nossas feridas para não ficarem arrepiados, e pedimos desculpas a todos que não conseguiram terminar o jantar depois de terem sido surpreendidos pelas nossas imagens frescas na televisão…”. Este é um trecho da sua obra. Você acha que a descrição poética do genocídio pode ajudar o mundo a entender a situação que o povo palestino está sendo submetido?

Isso eu realmente não sei. É muito confuso porque quando escrevo poesia, escrevo poesia. Mas minha poesia é um reflexo de minhas memórias, minha experiência e minha vida. Parece política, mas não é. É minha vida. Não sou contra as coisas políticas, mas quando escrevo poesia, escrevo sobre mim, sobre minha família, sobre meus sentimentos, sobre minha experiência, e isso aparece como aparece porque há algo errado em minha vida. Estou refletindo algo exatamente como um poeta brasileiro reflete sua vida. Não há diferença entre nós. Mas o resultado é diferente. Portanto, de forma direta, nunca pensei que estivesse tentando dizer algo político. Mesmo que tudo ao nosso redor seja político, do gênero à classe, à economia, a tudo. Mas nunca pensei que estivesse tentando dizer algo político. Estou tentando falar sobre mim. Sem dúvida, os palestinos são vítimas, mas não jogam a carta da vitimização. Eles são pessoas muito orgulhosas e separam as coisas umas das outras. Somos muito mais orgulhosos do que você pode imaginar. Mesmo que seja difícil, em circunstâncias difíceis, falar sobre a própria vida. Portanto, acho que, a partir dessa perspectiva, vejo a poesia, a minha poesia como qualquer outra poesia do mundo. A questão é que está relacionada à minha vida. Um dia, se eu tiver uma vida normal, a reflexão talvez seja diferente.

Novamente sobre suas descrições. Elas são capazes de criar imagens em nossas cabeças, e essas imagens, honestamente, são muito similares às que vemos atualmente em Gaza. Ao mesmo tempo, você relata que suas memórias, na verdade são de seu pai sobre a Nabka. Como é possível que tal descrição sirva para dois tempos históricos separados por décadas? O mundo não mudou? O povo palestino continua esquecido?

Sim, em primeiro lugar, [o ex-primeiro-ministro de Israel David Ben-] Gurion diz que a primeira e a segunda geração se lembrariam, já a terceira geração se esqueceria. Esse era o sonho dele, é claro. Nós somos a quinta geração agora e estamos mais conectados à Palestina do que a geração anterior a nós. E a geração que virá depois de nós será mais ainda.

Veja, o palestino e o judeu têm muitas semelhanças, às vezes, eles são idênticos. O judeu e o palestino vieram de um único homem árabe, chamado Abraão. Portanto, o judeu e o palestino são árabes que vieram de um árabe. Número dois, ambos somos povos semitas que viemos de Sam, o filho de Noé. Portanto, quando você diz que é antissemita, significa que é antijudeu e antiárabe. Número três, temos o mesmo DNA. Quatro, nós dois viemos do mesmo país, a Palestina. Portanto, tudo é comum entre nós, e se eles não esqueceram a Palestina em 2000 anos., nós não a esqueceremos em 75 anos. Vamos libertar a Palestina do rio até o mar.

No Brasil, as pessoas solidárias ao povo palestino exaltam a resistência e a insistência em não deixar sua terra. Isso é tudo o que deveríamos ver?

Não, acho que é mais do que isso. Acho que a Palestina é uma questão de justiça para todos. A Palestina é importante porque nos mostra como é a injustiça neste mundo. Ela é a medida, a escala que mede o funcionamento deste planeta, é a bússola da justiça. Se quiser saber se este planeta é bom ou ruim, olhe para a Palestina. Isso mostra como o imperialismo e o capitalismo funcionam, porque o mundo imperialista e capitalista são a favor de Israel. As propagandas dos grandes jornais e dos grandes canais de TV são a favor de Israel, as gigantescas fábricas de armas são a favor de Israel. Israel tem a terra, os palestinos não têm. Israel tem o poder, os palestinos não têm. Israel tem o exército, os palestinos não têm. Israel tem armas, os palestinos não têm. Israel tem o Washington Post, o New York Times, a CNN, a Palestina não tem. Israel tem tudo. Eles têm 15.000 prisioneiros palestinos. Eles podem decidir. Se é a solução de um Estado ou de dois Estados, se é a paz ou a guerra, eles podem decidir. A bola está do lado deles. Eles podem fazer o que quiserem. Podem nos matar a todos. Podem nos colocar sob cerco, como em Gaza. Portanto, quando as pessoas dizem que não devemos fazer a paz ou algo assim, isso não tem nada a ver com a Palestina. A Palestina não tem nada. É preciso falar com Israel. Para mim, prefiro a solução de um Estado único porque é a única maneira em que acredito. Mas se for uma solução de dois estados, é bom. Se for a solução de sete, 29 ou 643 mil estados, tudo bem. O mais importante é que as pessoas tenham direitos iguais. Não é importante o tipo de solução quando todas as pessoas são iguais. Não se pode colocar as pessoas sob um comando, com um muro, em um gueto, bombardeando-as, sem educação, não permitindo que viajem ou que alguém vá até elas, proibindo tudo e ainda querendo que o mundo o apoie, e se alguém disser não, é antissemitismo. Não é assim. Não funciona assim. Israel é um Estado terrível.

Não é incomum que a literatura seja afastada do jornalismo por sua subjetividade e sentimentalismo. Mas honestamente acredito que seu trabalho é muito mais próximo do relato fiel que a notícia diz querer passar. O que você pensa sobre isso? Como a imprensa brasileira pode aprender sobre a cobertura da Palestina com seu relato?

Acho que isso é o mesmo quando um palestino lê a literatura do Brasil. A questão política muda. Os estados mudam. Os impérios desaparecem. Mas os locais permanecem. A situação na Palestina mudará. Ela não permanecerá ocupada para sempre, da mesma forma que a situação no Brasil vai mudar.

As pessoas podem aprender umas com as outras de diferentes maneiras. Uma delas é a arte, algumas pessoas leem jornais, outras leem romances, outras aprendem sobre os lugares por meio de filmes e documentários. Não importa a maneira. O mais importante é que nossa mensagem chegue.

Acho que fiz minha poesia, antes de tudo, por alegria. Eu gosto de poesia, de literatura, de escrever. É como se fosse a única coisa que faço. Não escrevo artigos como outros poetas, não escrevo críticas ou ensaios, não dou aulas. Só escrevo poesia e gosto muito disso. Então, quando ela chegou, fiquei ainda mais feliz, porque tive a primeira felicidade de escrever. E quando chega ao leitor, isso me deixa feliz e, quando chega a um leitor em outro idioma, é ainda melhor.

Gostaria que um país como o Brasil, que é 100 vezes maior do que a Palestina, conseguisse encontrar um lugar para a questão palestina dentro dessa cultura maravilhosa, mesmo que a Palestina seja muito, muito pequena. Um país como o Brasil poderia ter um papel importante no apoio aos direitos dos palestinos, especialmente sendo um país gigantesco. Não apenas em tamanho, mas em economia. É uma das maiores economias do mundo. Portanto, espero que o Brasil, como se espera dele, como um país maravilhoso, esteja sempre apoiando a justiça palestina.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, demonstra muito apoio ao povo palestino em seus discursos. Mas, em suas ações, é questionado sobre o que está efetivamente fazendo contra Israel. Você acha que romper as relações com Israel seria uma solução?

Sim, acho que todos os países deveriam pressionar Israel. [O ex-ministro da Defesa israelense Yoav] Gallant e [o primeiro-ministro de Israel, Benjamin] Netanyahu são criminosos de guerra, de acordo com o CIJ. Estou sentado à sua frente e 400 pessoas da minha família foram mortas. Então todos devem fazer alguma coisa, devem boicotar Israel, dizer a verdade, gritar nas ruas, dizer isso na mídia. Há uma criança sendo morta a cada segundo por uma bomba de mil quilos, bombas de uma tonelada em civis em suas tendas. Acho que sim, definitivamente ele deveria fazer algo.